quarta-feira, maio 31, 2006

Rua 1º de Dezembro

A Rua 1º de Dezembro, na baixa lisboeta, é uma rua sem grande história para mim. Uso-a apenas como passagem para a Rua do Carmo e para o Chiado que se inventa cada dia mais bonito, cada dia mais feliz. Nada me detém ali. Nem as lojas de filatelia onde em criança ía com o meu pai comprar selos para a minha colecção que agora jaz no fundo de um qualquer caixote, nem sei muito bem onde, nem o imenso supermercado de produtos naturais que oferece curas milagrosas para a queda do cabelo e para a celulite, nem a entrada íngreme para o Café Nicola onde prefiro entrar pela porta soalheira que dá para o Rossio, nem as sapatarias, nem os músicos de rua que entre cães e garrafas de vinho, abrem sorrisos à esmola de quem por lá passa.
Na semana passada, os meus passos apressados calcorreavam-na como sempre, como se ali já não estivessem, quando uma cena me fez estacar o passo e a respiração. Sentado quase à porta do "Celeiro" um pedinte negro de idade incerta bebia vinho tinto e cantava uma canção qualquer sobre felicidade que lhe dava um ar ainda mais miserável do que se entoasse canções de tristeza e amargura.
Emocionado pelo canto tão angustiado daquele homem de barba por fazer, outro pedinte que conheço há muitos anos dos meus constantes passeios ao Chiado, acercou-se do homem, baixou-se, disse-lhe uma ou duas palavras inaudíveis para mim e fez que se ía afastar.
Mas o homem de tez escura não parava de cantar e não parava de cantar aquela canção tão triste que falava de felicidade. Então, o outro pedinte que já ía para se afastar na mira de encontrar a generosidade de alguém que lhe desse mais umas moedas, voltou atrás, meteu a mão no bolso das calças, tirou de lá as moedas que tinha, algumas castanhas, mas também muitas amarelas, e enfiou-as no chapéu do mendigo-cantor. Só depois se afastou.
O homem de barba por fazer há tantos dias nem se mexeu. Continuou naquela toada que só ele mesmo podia escutar. E o outro já ía longe, indiferente ao seu gesto generoso já quase não se via, na pressa de recuperar o dinheiro que a sua emoção atirara para o fundo do chapéu que repousava sobre a calçada da Rua Primeiro de Dezembro, rua a que eu nunca dei a menor importância.
Este pedinte generoso não é português. Sempre que se me dirigiu, fê-lo em língua estrangeira, mas tornou-se irmão daquele português que cantava na rua, tornou-se meu irmão...
Quantas vezes lhe neguei esmola? ... Quantas vezes vi negarem-lhe esmola?... Por pressa ... Por desleixo ... Porque o dinheiro poderá ser usado em droga ou em álcool ... O que é que nós temos a ver com isso? ... As dependências que possa ou não ter são problema dele. O meu é não virar as costas a quem pede ajuda. Se quem pede me estiver a enganar, isso é um problema que ele e a sua consciência terão que tratar. E, se calhar, o dinheiro que eu não dei porque imaginei que fosse para a droga, era apenas para partilhar com o pedinte negro que canta uma canção angustiada sobre a felicidade.
Na Rua 1º de Dezembro. Uma rua com grande história para mim!

Tiago Torres da Silva, "Manhãs de Insónia", in Jornal de Letras, de 24-6/06/2006, p.40

terça-feira, maio 30, 2006

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"A leitura está no limiar da vida espiritual; pode introduzir-nos nela: não a constitui."
PROUST, Marcel, "O prazer da leitura", Teorema, Lisboa, 1997, p.38
(Foto em www.trekearth.com)

segunda-feira, maio 29, 2006

De novo ...

Voltei a encontrá-la ontem à noite.
Saí mais uma vez pelas ruas da minha cidade à procura de alguma frescura. A noite estava quente e as ruas cheias de vida. Quando me sentei no café não a vi de imediato. Um grupo de gente nova conversava alto sobre viagens de verão e monopolizava as atenções gerais. Só depois a descobri. Sentava-se desta vez no outro canto da sala. O mesmo cabelo apanhado, os mesmos olhos claros e as mãos nervosas. Na mesa, um café e o telemóvel. Apoiava o queixo nas mãos e os olhos, ora se perdiam nervosos em volta, ora se imobilizavam num ponto fixo que eu não conseguia alcançar. Bebia o café em pequenos golos. O pacote de açúcar por utilizar deslizava entre o seus dedos numa acrobacia interminavelmente repetida. Bem iluminada agora, via-lhe os cabelos claros e ondulados e as rugas vincadas na testa e ao canto dos olhos. De tempos a tempos olhava o telemóvel como se esperasse uma chamada que não vinha.
As conversas do grupo de jovens não pareciam interessar-lhe pois nem um olhar lhes dirigia. Eu tentava olhá-la, agora discretamente, receosa que me surpreendesse de novo. Pude fazê-lo à vontade quando tirou da mala um bloco e uma caneta e começou a escrever. Primeiro hesitante, pensava demoradamente e debruçava-se sobre o papel fazendo deslizar a caneta quase sem a levantar. Depois ganhou velocidade e nem os olhos erguia do pequeno caderno. Que pena não saber o que escrevia ...
Algum tempo depois vi-a olhar o relógio. Arrumou caderno e caneta, pagou e saíu. Acompanhei a sua silhueta vagarosa e esguia até que desapareceu na noite.
Na mesa agora vazia apenas a sombra permaneceu.

domingo, maio 28, 2006

Domingo à tarde

Sentada à minha frente, observo-a. Ocupou a mesa do canto junto à grande janela. Pediu café e abriu o jornal. Folheia-o lentamente mas demorando-se pouco em cada artigo, como se lesse apenas os títulos principais. De vez em quando levanta o olhar que se perde na observação das pessoas que passam apressadas lá em baixo na rua, ou nos pombos que pousam na grande janela mesmo ao seu lado. Não sei se os observa ou se apenas se perde em pensamentos que não imagino.
Quando o telemóvel tocou estremeceu claramente. Tocou duas vezes apenas. Ela olhou o visor e marcou um número. Recostada na cadeira esperou que atendessem. Frente a ela observo a sua expressão calma. Vejo o sorriso que se começa a desenhar no rosto. Não ouço o que diz mas o que ouve adoça-lhe a expressão. As palavras pronuncia-as baixinho mas os seus olhos falam uma alegria mansa que se espraia pelo rosto.
O jornal espera, aberto sobre a mesa, ainda meio lido. Agora a conversa tem mais pausas. Há silêncios da parte dela. São mais as vezes que sorri e escuta.
Gostava de saber com quem fala. O que diz. Do que sorri ou porque gesticula com pequenos e eloquentes gestos de mãos. Mãos pequenas de unhas curtas arredondadas. Na mão esquerda um anel de fantasia. Na direita, uma aliança. Gostaria de saber ... por curiosidade apenas.
Os minutos passam e a conversa prolonga-se. Já lá vai quase uma hora.
Por momentos voltou a olhar o jornal. Passou duas páginas rapidamente, aposto que sem as ler.
Por momentos o seu olhar escureceu, marcou-se mais o ricto da sua boca. A mão crispou-se no ar, como se a conversa não lhe agradasse. Como se uma nuvem lhe tivesse toldado o sorriso.
Por momentos o nosso olhar cruzou-se. Por tempo demasiado. Mas ela não me olhava. Via através de mim algo que não eu, concentrada nas palavras que lhe chegavam.
Momentos depois desligou. Ficou imóvel alguns minutos com o olhar perdido algures. A respiração compassada e profunda revelava-se nos movimentos do seu peito. As mãos pousadas no colo e o jornal à espera - aberto ainda sobre a mesa.
O meu olhar dificilmente se desviava dela. Tentava ler os seus gestos e os seus olhos. Perceber para além do seu olhar, o que lhe ía no pensamento. Uns olhos claros e transparentes que quase me deixavam ver o que lhes ía dentro.
Distraída, olhava-a insistentemente e só tarde demais percebi que me olhava atentamente.
Agora era mesmo para mim que olhava, intrigada talvez com a minha insistência.
Sorri-lhe timidamente e ela retribuiu o sorriso.
Quando se levantou e saíu, rapidamente a mesa foi ocupada. Outros rostos. Outras vidas.
Algo dela porém ficou em mim. O seu olhar. As suas mãos. A sombra que junto a ela seguiu.

Se eu chorar choras comigo?

Se eu chorar choras comigo?
Dás-me a mão, sentas-te comigo no escuro
Como se eu fosse criança que tenhas de consolar?
Se eu chorar guardas-me as lágrimas?
Abres a tua mão acaricias-me o rosto
E escondes as lágrimas no bolso
Para que as não volte a chorar?
Se eu chorar choras comigo?

Encandescente, Edições Polvo, p.27

sábado, maio 27, 2006

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"Esperar pelo melhor e preparar-se para o pior: eis a regra."

PESSOA, Fernando, "Aforismos e afins", Assírio & Alvim, Lisboa, p.27

sexta-feira, maio 26, 2006

Bjs, abçs e passou-bem

Nada substitui o contacto pessoal. O toque, o cheiro, a espontaneidade do gesto. Por telefone, já nos começamos a esconder: “Estás estranho?”, “Não, estou apenas constipado...”. Contudo, continuam a exigir-se reacções imediatas. Por escrito, tudo muda. Há tempo para encontrar as palavras certas e embelezá-las com cornucópias, ponderar o discurso, descobrir a forma ...
Escrevem-se coisas que não se dizem ou que se dizem apenas nos filmes e por aqueles que têm presença de espírito. Os novos meios de comunicação interpessoal criaram espaço para vários meios-termos, que adulteram esta dicotomia entre o oral e o escrito: a escrita rápida dos SMS ou das mensagens do mesenger, na maioria dos casos, assemelha-se a uma transcrição fonética.
A tal ponto que existem códigos para aproximar a velocidade da escrita à da fala.
Escreve-se dd tcl (de onde teclas?). k (que), kk (qualquer), tb (também), kolmi (liga-me), lol (rir alto), * (beijinho), [ ] (abraço) :p (deitar a língua de fora), fds (fim-de-semana). :) (sorriso), ;) (piscar o olho).
É um lugar comum dizer que estes meios estão a destruir a língua portuguesa. Mas será assim tão preocupante? Antes, nas escolas, aprendia-se estenografia. Uma série de normas que permitem tirar apontamentos rapidamente. E quem dominava a técnica retirava grandes vantagens, sobretudo em professores de discurso acelerado. Por outro lado, também já se tinha inventado uma escrita simplificada para os telegramas, abdicando de artigos e preposições, tentando não danificar a clareza da mensagem. O que a maioria dos adultos preocupados não se apercebeu é que os adolescentes inventaram e dominam um eficaz sistema estenográfico. E, nesta matéria, são todos alunos aplicados.
Nos e-mails, à partida, há mais tempo para preparar a resposta. Podem-se escolher as palavras, corrigir a ortografia e reflectir sobre o conteúdo. Contudo, regra geral, o tempo disponível é menor do que numa carta e a mensagem mais curta.
Um ponto comum entre todos estes meios é a tentativa de compensação da distância física. Face a face, os discursos frequentemente se atropelam e, muitas vezes, falta a coragem para a intimidade. No e-mail as pessoas tendem a aproximar-se. Por vezes, de tal forma, que os encontros ao vivo e a cores se tornam constrangedores. Há exemplos claros, mesmo a nível profissional. Recebo e envio muitas mensagens que terminam com “um abraço”. Obviamente nunca abraço nenhuma destas pessoas quando por acaso as encontro. Quando muito dou-lhes um passou-bem.

Manuel Halpern, “O homem do Leme”, in Jornal de Letras de 10-23/2006, p. 43

quinta-feira, maio 25, 2006

Um cravo para o Fernando Bizarro

quarta-feira, maio 24, 2006

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"Aqueles que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós"
Amado Nervo

terça-feira, maio 23, 2006

Náufrago

Agora morto oscilas
Ao sabor das correntes
Com medusas em vez de pupilas.

Agora reinas entre imagens puras
Em países transparentes e de vidro,
Sem coração e sem memória
Em todas as presenças diluído.

Agora liberto moras
Na pausa branca dos poemas.
Teu corpo sobe e cai em cada vaga,
Sem nome e sem destino
Na limpidez da água

Sophia de Mello Breyner Andresen

Hoje morreu o nosso amigo Fernando Bizarro do Fraternidade.
São em sua homenagem as palavras de Sophia.
No meu coração permanecerá a sua presença sempre amiga.

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"Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios."

PESSOA, Fernando, "O livro do desassossego", Novis, p.169

segunda-feira, maio 22, 2006

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"(...) No fundo, porém, o azul nunca é uma côr exacta. Apenas uma lembrança, em nós, da água que já fomos."

COUTO, Mia, "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra", Caminho, Lisboa, 2002, p.20

domingo, maio 21, 2006

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"... dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um homem dorme nos braços de uma mulher e a sua alma se transfere de vez."

COUTO, Mia, "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra", Caminho, Lisboa, 2002, p.46

(Foto em www.trekearth.com)

sábado, maio 20, 2006

O prazer de arriscar

"... os riscos que a maioria de nós vive nos dias de hoje são outros e a nossa sobrevivência coloca-se em termos não tão radicais como o da luta constante entre a vida e a morte. Tem antes a ver com escolhas, decisões, opções, dedicação a tarefas, desejos e sonhos. Mais adaptados às nossas circunstâncias, alguns dos nossos desafios podem não ser espectaculares mas, se bem vividos, dão-nos sensações tão gratas como triunfo, euforia, auto-estima, prazer, alegria, satisfação e orgulho. (...) Arriscarmo-nos pode significar ter a coragem de renunciar, de nos enganarmos e humildemente voltarmos atrás nas nossas decisões, e de fazer escolhas que possam desagradar aos outros. São riscos construtivos e essenciais no nosso processo de maturidade.

Renunciar . Não significa apenas "deixar cair", desistir, fugir às responsabilidades, ser vencido pelo medo, baixar os braços. Em muitos casos renunciar prende-se justamente com a coragem, nomeadamente no sentido de abandonar uma situação estável e segura por outra mais escorregadia mas que sentimos ser uma resposta a um desejo profundo da nossa natureza. (...)

Errar. Para fazer um caminho de vida maduro e responsável, com experiências que nos enriqueçam e ensinem, é preciso ter a coragem de errar. Mas por medo do desconhecido, da solidão, marginalização e desaprovação, muitos de nós não nos permitimos correr o risco de errar, protegendo-nos de viver determinadas experiências, de "pisar o risco", de ousar transgredir o que está estabelecido, o que é considerado correcto, o que é aceite.
(...) Ousar experimentar ou explorar novas experiências de vida correndo o risco de errar faz-nos, muitas vezes, dar o devido valor ao que temos e ao que nos arriscamos a perder. Permitirmo-nos errar e assumir os nossos erros é ainda uma prova de humildade, uma das maiores e mais difíceis de aprender e praticar. Na realidade evitamos esta prova a todo o custo. Porque nos confronta com as nossas fragilidades e defeitos, com as nossas incompetências e incapacidades. (...)

Escolher. Ter a coragem de fazer as nossas escolhas quando elas não agradam às pessoas de quem gostamos e a quem estamos intimamente ligados pode ser a tarefa de uma vida e requerer força, determinação e espírito de independência. Na realidade muitos de nós acabamos por nos submeter à vontade dos outros, especialmente da família, de cuja aprovação dependemos afectivamente. Queremos, pertencer, agradar, ser amados a todo o custo. Por isso desistimos muitas vezes das escolhas mais significativas da nossa vida, por medo de censura e rejeição. (...) Porque, tenhamos ou não consciência, estamos presos em redes complicadas de lealdades e de afectos. A solução, dizem os psiquiatras e psicólogos, está em aprender a gostar genuinamente de nós próprios, o que não é um caminho tão imediato e óbvio como possa parecer. Implica correr o grande risco de confronto connosco e nem todos se prestam a ele. Mas se há desafios que valham a pena, este é um dos mais significativos da nossa vida, libertando-nos da dependência do amor possessivo e demasiado exigente dos outros.

Ana Vieira de Castro, in XIS, suplemento do Público de 20/05, pp.18/19 (excerto)



Começa hoje e prolonga-se até ao próximo sábado a 8ª Edição da Festa no Chiado, organizada pelo Centro Nacional de Cultura.
Na sua programação destacam-se diversas exposições, palestras, feiras de livros de Arte e Alfarrabistas, teatro, e música - muita música.
Aconselho a consulta do "programa das festas" em www.cnc.pt
Eu vou já começar hoje!!

sexta-feira, maio 19, 2006

Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Mar", Caminho, Lisboa, 2001, p.30

quinta-feira, maio 18, 2006

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"Não sei se há vida depois da morte. Basta-me que haja vida antes da morte.
Embora seja difícil saber se vives milhares de dias ou um só dia igual milhares de vezes.
Uma adivinha disse-me que quando morremos somos obrigados a repetir uma e outra vez o último dia da nossa vida. É isso a eternidade, um mesmo dia repetido eternamente."

RICO, Eugenia, "A idade secreta", Casa das Letras, LIsboa, 2006, p.80

quarta-feira, maio 17, 2006

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"Há pessoas sólidas e pessoas translúcidas. As primeiras são feitas de uma matéria que não se presta a confusões. Percebemos que ocupam um lugar no mundo porque elas próprias o proclamam. Com a sua presença enchem o espaço em que se encontram.
(...) As pessoas translúcidas enganaram-se no guião. Deveriam ser personagens de histórias e, no entanto, fazem parte do mais estrito quotidiano. Nas histórias infantis teriam um papel importante. Viveriam no meio dos bosques, surgiriam atrás do jorro de água de uma fonte, ou esconder-se-iam numa gruta. São figuras que se definem pela imprecisão. (...) Existem como se não existissem."

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.81/82
(Foto em www.trekearth.com)

terça-feira, maio 16, 2006

Conquista

Dispo a tristeza inútil que me invade.
Resumo a minha vida num só beijo.
E, em frémitos de sangue e mocidade,
Ascendo para além de quanto vejo.

Ateia-se a vertigem da ansiedade
E perco-me nas brumas do desejo.
Mais para além da vida e da saudade,
- Fulgor de estrela em fúlgido lampejo.

Ergo nas mãos a lança da vitória
E corro pelos céus, ébrio de glória,
Abrindo ao Sol as asas da alegria.

E canto na certeza do porvir,
Que todo o mundo é meu e eu vou partir
À conquista dos reinos da poesia!

José Carlos Ary dos Santos, "Obra Poética", Edições Avante, Lisboa, 1994, p.431

segunda-feira, maio 15, 2006

Em jeito de balanço (nem parece nada meu...)


Este ano completo cinquenta anos. Metade da vida, ou um pouco mais de metade. Isso não me perturba, pelo menos ainda não.
Não me incomoda dizer a idade e assumi-la. Não me incomodam os meus cabelos cada vez mais salpicados de branco que me recuso a encobrir. Não me incomodam as rugas que me sulcam o rosto, também cada vez em maior número. Na aparência mostro a idade que tenho. Nada há a esconder. Estranhas se tornam aquelas mulheres que relutantemente dizem ter 50 anos, mas um rosto reconstruído de 25.
Sou como sou e aceito-me assim. Cheguei àquela idade em que a reconciliação entre o que queria ser e o que sou, já foi feita. Acho que esse "encontro de contas" ocorreu por volta dos quarenta anos e o equilíbrio instalou-se.
Tenho na verdade cinquenta anos mas por dentro não os sinto. A cabeça ainda se povoa de sonhos. Há objectivos que ainda pretendo alcançar. Há seis anos atrás encetei uma tarefa que havia deixado inacabada aos dezanove anos. Voltar a estudar trouxe-me novos desafios que enfrentei e venci. Hoje, de novo inicio uma nova batalha que quero e tenho a certeza de vencer.
Quando entristeço rompem-se os diques mas tenho a força e o optimismo para recomeçar tudo de novo no dia seguinte.
Quando estou feliz, a criança que ainda se esconde dentro de mim, sai para a luz do dia, e brinco e rio como se tivesse quinze anos apenas.
Acordar e ver o sol, sair à rua e ouvir aquelas palavras que se esperam, ter a liberdade de movimentos que preciso, faz com que adormeça em cada dia em paz comigo mesma.
Fazem de mim aquilo que sou hoje - uma mulher mais feliz.

domingo, maio 14, 2006

Esperar...


Esperar. Há quem não saiba esperar, mas eu sei. Para algumas pessoas é tarefa difícil ou mesmo impossível. Irritam-se, enervam-se. Desesperam. Não têm paciência.
Eu sempre soube esperar com tranquilidade.

(Não, pensando melhor, há alturas em que a tranquilidade é apenas aparente. Cá dentro estou quase a entrar em ebulição. Mas isto só acontece em momentos especiais)

Esperei horas pelo meu namorado quando tinha 16 anos. Pelo menos duas horas à espera em cada encontro.
Espero pacientemente na fila do supermercado quando apenas tenho quatro ou cinco coisas para pagar e os outros à minha frente têm o carro cheio.
Espero no banco a minha vez de ser atendida, sabendo de antemão - é tiro e queda - que todos têm assuntos complicadíssimos a resolver e eu apenas um simples depósito para fazer ou um chequezito para levantar.
Espero no hospital quando tenho consulta marcada para as nove e sei antecipadamente que só sairei de lá ao meio-dia.
Espero aquela chamada telefónica que nunca mais vem.
Espero aquele dia tão desejado que tarda a chegar.
Espero, espero, espero ... e enquanto espero leio ou escrevo.
Fecho-me dentro de mim como se de um ovo se tratasse, e olho através de uma casca frágil e translúcida a vida que desfila à minha frente. Os sons amortecidos. As luzes diminuídas. O ritmo mais lento.
Espero com calma porque sei que a minha vez vai chegar, assim como aquela hora e aquele dia vão nascer para mim.
Espero porque tenho confiança.
Porque tenho a certeza.
Porque sim!

(Foto em www.trekearth.com)

sábado, maio 13, 2006

Tempestades


Um barco que seja apanhado por uma tempestade pode não naufragar, mas dela também não sai incólume. As suas velas provavelmente rasgar-se-ão e os mastros poderão até vergar e partir-se. Difícil seria sair ileso.
O mesmo se passa na vida. Algumas vezes caminhamos em direcção à tempestade. Vê-mo-la formar-se ao longe e sabemos que temos de a enfrentar. Temos uma segunda hipótese: fugir dela - evitá-la - mas mais cedo ou mais tarde ela vai apanhar-nos e teremos que lhe fazer frente.
Ao caminharmos na sua direcção sabemos também que não poderemos sair incólumes. Alguns "estragos" hão-de sobrevir, mas enquanto ela se dirige para nós, temos também algum tempo para nos prepararmos e tentar minimizar os seus efeitos.
Se conseguirmos ultrapassar os ventos contrários vamos sair dela mais fortes, mais confiantes e mais vivos. E como é uso dizer-se "depois da tempestade vem a bonança". Um céu mais azul estará do outro lado. O sol brilha de novo e aquece-nos. Seremos novos seres com novos objectivos e quem sabe, alguém para nos pegar na mão.
Fugir da tempestade que se aproxima é a outra alternativa. Vê-la adensar-se, enegrecer e tombar sobre nós, e o medo tolher os nossos movimentos. Dobramo-nos sobre nós próprios, fechamos os olhos e aguardamos quietos que ela se dissipe. Enrolados como um novelo deixamos que ela nos abane, nos empurre, nos jogue contra a parede, mas nós - imóveis - tudo permitimos, e no final, quando ela se retrai, apenas as roupas sairão amarrotadas, mas a integridade física estará salvaguardada. Até que ela volte ... porque ela vai voltar!
Quantas vezes é apenas ao fim de muitas tempestades em que sempre nos enrolámos como uma bola, que conseguimos a força para enfrentar a derradeira tempestade? Quantas vezes pactuámos com a força das suas correntes? Até que um dia ...

(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, maio 12, 2006

Ontem à noite saí ...


À noite a cidade respira fundo. Antes de adormecer veste-se de sombras e adorna-se de luar. O seu ritmo diminui. As suas gentes são outras. A vida frenética da manhã e do fim da tarde, como que a esgota, e quando a noite tomba quase se pode ouvir o seu suspiro de alívio - o seu retorno à calma.
Outras gentes passeiam agora nestas mesmas ruas. Gente menos apressada e bastante mais jovem e alegre. Os cafés que costumo frequentar albergam agora outras caras. Mais jovens. As conversas convivem com a música que se derrama no ar. Há namorados que se fundem no olhar. Há grupos que falam e bebem entre gargalhadas leves que planam como folhas secas.
À noite costumo ficar em casa, mas não hoje. Hoje era preciso sair. Fazer os caminhos que tão bem conheço, agora sob a lua cheia. Pisar com passos leves as mesmas pedras da calçada. Uma companhia teria sabido bem, mas as que eu escolheria estão bem longe. Foi um impulso que me trouxe para a rua. Agora, depois de um café no sítio habitual, regresso a casa. Não mais feliz - ou talvez sim - mas seguramente mais tranquila, respirando ao ritmo da noite, vestida por este manto branco de luar.

(Foto em www.trekearth.com)

quinta-feira, maio 11, 2006

...

"Vês, lá fora? Há duas nuvens pequenas, uma por cima da outra. Uma és tu, a outra sou eu. Qual delas és tu? Qual delas sou eu?"

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Cotovia, Lisboa, 2003, p.16

quarta-feira, maio 10, 2006

As praias desertas

As praias desertas continuam
esperando por nós dois.
A este encontro eu não devo faltar
O mar que brinca na areia
está sempre a chamar.
Agora eu sei que não posso faltar.
O vento que venta lá fora
O mato onde não vai ninguém
Tudo me diz: não podes mais fingir.
Porque tudo na vida
Há-de ser sempre assim,
Se eu gosto de você
e você gosta de mim

As praias desertas continuam
esperando por nós dois.

António Carlos Jobim

terça-feira, maio 09, 2006

Fundo do mar


Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço

COUTO, Mia, "Raíz de orvalho e outros poemas", Caminho, Lisboa, 1999, p.49
(Foto em www.trekearth.com)

segunda-feira, maio 08, 2006

Estrela


Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar é entristecer
sem corrompermos
nada.

OLIVEIRA, Carlos, "Quinze Poetas Portugueses do século XX, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p.195
(Foto em www.trekearth.com)

domingo, maio 07, 2006

...

...vou contar-te um segredo!
... conta amor...
... sabes que consigo ler na tua voz?
...assim como eu leio nos teus olhos?
...sim, da mesma forma que tu lês os meus olhos...
...então adivinhaste?
...acho que sim!
...huuuummmmm!!! e maissss??

sábado, maio 06, 2006

Amizade


Mais uma vez os amigos me ocupam o pensamento. Para mim é um tema caro - um assunto de extrema importância - talvez porque não os tive durante a maior parte da minha vida. Culpa minha concerteza pois me encontrava fechada aos outros, encerrada numa clausura que escolhi e onde apenas a família tinha o direito de entrar.
Quando era adolescente, lembro perfeitamente um certo dia em que viajava como habitualmente de comboio e pensava com os meus botões nessa questão da amizade e da ajuda aos outros. Lembro-me de ingenuamente pensar que gostaria de ter como profissão algo que me aproximasse dos demais e me permitisse ajudá-los quando precisassem de ajuda.
Não tenho qualquer parecença com Madre Teresa nem física nem de objectivos, mas sempre existiu em mim uma necessidade de me relacionar com os outros numa base de entre-ajuda.
Profissionalmente não enveredei por uma área que me conduzisse a esse fim, mas ponho-o em prática nas minhas relações diárias com as pessoas que conheço e mais ainda com aquelas de quem me orgulho de ser amiga.
Não quero, nem nunca quis ter um rancho de amizades. Para quê? Para ter sempre com quem sair? Não é assim que vejo as coisas.
A amizade é um "investimento" que dá trabalho mas também um enorme prazer. É preciso "cultivá-la", e ponho esta palavra entre aspas porque é semelhante a uma planta frágil. Se não a tratarmos bem, se não a regarmos, se não a protegemos, à semelhança de uma frágil flor, ela murcha e morre.
Aos amigos é preciso falar. Não deixar que caiam - e se cairem ajudá-los a levantar-se -, não deixar que pensem que os esquecemos. É preciso abraçá-los ainda que seja apenas através das palavras. É preciso mostrar-lhes que estamos presentes sempre que precisam de nós, e que não, não nos incomodam nada quando nos contam os seus problemas, porque nós um dia também iremos precisar deles e gostaríamos que eles também estivessem ali para nós.
E claro, tudo isto sem sacrifício, sem segundas intenções, como será lógico proceder com alguém de quem gostamos muito.
Ontem um amigo desabafava comigo e dizia-me a dado momento, "agora dizes tu: porque é que este chato me está a contar isto tudo?". Claro que não o pensaria, apesar de não poder fazer nada por ele, a não ser ouvi-lo. E às vezes é tão bom e tão importante ter quem nos ouça! Tenho tudo a ver, porque se sou verdadeiramente amiga ou pretendo sê-lo, quero também ser o ombro onde pode descansar e o ouvido atento e desinteressado das suas alegrias e das suas tristezas.
Alguns acharão esta minha sensibilidade um pouco exagerada. Eu tento acarinhar os meus amigos, porque são a minha mais-valia - um dos meus bens mais preciosos.
Por isso me desiludem os mal-entendidos, as palavras que não foram ditas por se partir de pressupostos errados. Por isso me magoou tanto, em tempos passados, o abandono da minha amiga Graça, trocando-me por um ideal que ela considerou mais elevado que a amizade. Por isso me entristecem os amigos que desertam não sei bem porquê.
Mas realmente ninguém é perfeito. Eu também não sou. Nada mesmo. Mas uma coisa eu sou. Quando me digo amiga, sou verdadeiramente Amiga.

(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, maio 05, 2006

Insónia

Longas são as noites de insónia! As horas passam lentas, e nunca mais amanhece.
Meia-noite. Pego no meu livro de cabeceira e espero que a qualquer momento ele me escorregue das mãos como habitualmente. É o sinal para o poisar de mansinho e com gestos lentos, apagar a luz. Mas não desta vez. As páginas sucedem-se a um ritmo regular ao qual não vejo o fim.
Paro a leitura por momentos e fecho os olhos. Sabe-me bem este silêncio. Veste-me como um manto e deixa-me em paz. Mas o sono não me vence. Leio mais um pouco. Quando deito os olhos ao relógio, já marca quase a uma da manhã.
Decido apagar a luz. Tento relaxar e dormir mas apenas dou voltas e mais voltas na cama. Irrito-me. Penso que devia levantar-me e tomar qualquer coisa para dormir. mas realmente não gosto de o fazer. Acendo a luz de novo e vejo as horas mais uma vez. Duas da manhã.
Pego de novo no livro e leio mais umas páginas. Desta vez não está a resultar. Levanto-me e vou até à janela. Não há vivalma nas ruas. Até o movimento de carros é quase nulo. O céu está limpo e as estrelas brilham, pequeninas. Devia ver televisão mas isso acordaria ou outros.
Sento-me na cama e ponho os "phones". Ney Matogrosso entoa com aquela sua voz única, os acordes perfeitos para me embalar. Ouvi todo o CD e continuei acordada.
Três da manhã agora. Corro a cama de uma ponta à outra à procura de um sítio mais fresco.
Tudo me vem à cabeça. O passado e o presente. O futuro. E uma música que aprendi ainda me ecoa na cabeça como um disco que não para de tocar.
Estou tão irritada!!
Desisto pronto! Não tenho sono, o que hei-de fazer? Ficar para ali quietinha à espera que amanheça.
Momentos depois - pareceram-me apenas uns minutos - abro os olhos e já clareia. Quase sete da manhã. Afinal sempre consegui dormir um pouco. Ufa!

quinta-feira, maio 04, 2006

...

"É provável que coisas improváveis aconteçam"
Aristóteles, Poética, 1461 b, in "A noiva Judia" de Pedro Paixão, p.83

quarta-feira, maio 03, 2006

...

"É preciso que saibas que, entre a liberdade e a segurança, a grande maioria não escolhe a liberdade. A liberdade precisa da coragem de lutar com o medo, sem certeza de o vencer. E o medo existe sempre, ontem, hoje e amanhã, e a coragem é tão rara como o espírito que ama a liberdade."

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Cotovia, Lisboa, 2003, p. 79

terça-feira, maio 02, 2006

Em todos os jardins


Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, "Mar", Caminho, Lisboa, 2001, p.24
(Foto em www.trekearth.com)

segunda-feira, maio 01, 2006

Sonho!


queres que te conte o meu sonho desta manhã?
siiiimmmmm!!!!!
sonhei que estavas ali e que eu te acordava.
já sonhei isso tantas vezes também!!! e maisssss ????
e depois sonhei que ficávamos ali a falar bem agarradinhos, até que o sol subisse mais no horizonte. depois saíamos para a manhã.
e íamos passear à beira mar!!!!
como tu tanto desejas e eu também.
hummmmm!! tão bom!!!
e maisssss?

(Foto minha)
(Mais um excerto do que já mencionei no post anterior)