sábado, maio 10, 2008

Nocturnas cogitações

Na mesa de cabeceira amontoam-se os livros por acabar e no entanto ... aqui vou ficando presa a esta janela que me traz o mundo à ponta dos dedos.
Voltei há pouco do ensaio. Um desejo de há muito, há pouco tempo concretizado - cantar. A voz não é a que eu gostaria - mais potente e mais flexível - mas é a que me resta. Valha-me o ter deixado de fumar há quase quinze anos ... Com algumas apresentações a aproximarem-se o maestro torna-se mais exigente, para culminar no último ensaio num estado de exigência que nos deixa a todos à beira de um ataque de nervos, e no entanto ... todos nós voltamos ... dia após dia ... com a mesma vontade de cantar e, como alguém diria, "de encantar"!
Ao chegar a casa, os gestos repetem-se. É a conversa e o mimo aos gatos que me recebem com marradinhas e pedinchices. Liga-se o computador e faz-se o chá. Espreita-se a tv onde o Malato continua a surpreender-me. (não sei se sou demasiado exigente ou se já perdi a paciência para a programação da nossa televisão) Tiro o som à caixinha mágica porque começo a pensar em escrever alguma coisa.
Não! Devia, era ir para a cama!
Os meus horários cada vez estão mais distendidos para o lado da noite. Perco-me por aqui nesta rede de caminhos que se cruzam e entrelaçam levando-me de sítios conhecidos a outros a que nunca antes tinha pensado ir. É mais ou menos como as conversas. Já dizia a minha avó que são como as cerejas. Atrás de umas vêm outras.
Por isso me lembrei dos livros que me esperam na mesa de cabeceira.
Vejamos: há os últimos três capítulos do livro da Isabel Allende, A Soma dos dias, que teimo em chamar de a sombra dos dias. Umas míseras quinze páginas que se vêm arrastando ao longo de alguns minutos que eu tento ganhar ao sono em cada noite que passa. Depois, O Codex que começou muito bem, velocidade elevada, ritmo certo, para depois derrapar em intermináveis descrições que me tiram a vontade de continuar. E no entanto, falta muito pouco ... E por último, um livro de contos: Cal, de José Luís Peixoto, que me levou ligeira até à página cento e vinte e dois, para depois estacar perante um trecho de teatro que teimo em não ler.
Dantes, nunca deixava um livro assim, meio lido. Dantes, não acumulava livros à cabeceira. Lia-os de ponta a ponta, obrigando-me a deglutir até aquelas partes mais monótonas, fazendo por vezes um esforço para chegar à última página, mas isso era antes ... antes dos cinquenta, antes de olhar para mim e aceitar aquilo que sou com todas as imperfeições a que tenho direito. Antes de mim!
(...)
(olhando para esta caixa sem som encontro de repente alguém que estava adormecido no fundo da memória. Frei Hermano da Cãmara. debato-me se ponho som na tv ou não, no fundo tentando não estragar o resto do que guardo)
(...)
(não resisti e nesse gesto recuei 30 anos ... )
(...)
(não resisti e fui pesquisar na net a biografia do dito Frei: 75 anos em 2008 ...)
(...)
(não resisto a pensar que certas opções de vida não desgastam ... ou então é a vida artística que o exige ... Que mal haverá em deixarmo-nos envelhecer naturalmente? As rugas e os cabelos brancos também contam a nossa história ... Relembro a minha avó prematuramente envelhecida pelo desgosto da perda de um filho. Relembro-a nos seus belos cabelos brancos suavemente ondulados e na sua postura orgulhosamente erecta. Feições ríspidas, ou tristes talvez, e no entanto ... a melhor contadora de histórias que eu poderia ter tido. A avó mais doce ...)
(...)
Falava eu de imperfeições antes de me ter perdido nestas nocturnas cogitações ... e de livros, e de escolhas.
Um-dó-li-tá, dizíamos nós na infância ... evitando assim a responsabilidade de uma escolha.
Um-dó-li-tá, e o dedo espetava-se para a frente na urgência de chegar ao fim.
E agora de novo ... só mais uma vez ... um-dó-li-tá ...
Está decidido ... vou dormir!!

22 Comments:

Blogger Zé-Viajante said...

E podes dormir descansada. E feliz.
Todas as recordações, todo o texto, tudo o permite.
Bons son(h)os.

9:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Gostei.
Há muito tempo que não ficava a sorrir depois de te ler.
Está muito giro, (perdoa a giria do giro).
Gistei e fiquei bem disposta. Levanto-me ou não? Um-dó-li-tá...

Bjs

Escrevi

10:08 da manhã  
Blogger José said...

Dantes, também conseguia devorar livros. Agora também tenho uns dois ou três por acabar. Será que o mal se pega ou é a impaciência dos 50!
Beijos de "encantar"

3:22 da tarde  
Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

A mim, a dificuldade de escrever vem-me com a dificuldade de ler. Inseparáveis. E penso (se se pode chamar pensar a este escorrer de "coisas" que me acodem cá dentro ao ecrã da consciência como as medíocres emissões televisivas da nossa praça), e penso - dizia - que não se pode estar sempre na onda das letras, que há outras coisas a fazer, como pôr a máquina em descanso até recuperar do desgaste das jornadas árduas, deixar as memórias a marinar para que nos surpreendam repentinamente como uma cólica literária que nos arrastasse de tropel para o lugar da escrita.

Mas creio que já é a terceira (ou mais?) vez que te surpreendo com este desabafo (literário?): é intencional?

5:45 da tarde  
Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

Voltei atrás pelo desejo de te felicitar pela tua coragem de dedicar a voz à causa pública. Também deixei de fumar pela mesma altura mas não me atrevo a cantar nem de baixinho. Nos aniversários mexo os lábios no "parabéns..." para não melindrar o aniversariante ou os meus amigos. Sou um caso perdido! E aprecio quem canta. Bom, não era bem isto... era mais para insistir que deves cantar e, um dia, quem sabe?, gostaria de te ouvir por aí.

5:54 da tarde  
Blogger Maria said...

Ao Perdido:

Gostei dessa expressão: desabafo (literário). Acho até que todos os meus escritos se adaptam a essa nomenclatura. Desabafos ... mais ou menos literários ... Ou literatura ... mais ou menos em forma de desabafo ...
Tu o dirás ... Eu apenas escrevo!

5:54 da tarde  
Blogger Vb said...

Olá Dulce!

A propósito de livros.. .A mesa de cabeceira está cheia, cada vez mais!
A Soma dos Dias arrancou bem, mas está em meio!
O Codex já foi e não gostei..
O Meu Nome é Legião do Lobo Antunes vai aos poucos pois é difícil de digerir!
Cal, adorei! Tanto que depois já li o Outro Olhar e hoje comprei o Cemitério de Pianos..
No meio deles de Dulce Lázaro: Talvez um Livro, espectacular não é?

Beijinho para ti

10:22 da tarde  
Blogger Su said...

hoje em dia o mesmo me sucede.......

acumulam.se os livros........

como sempre, um prazer ler.te

jocas maradas menina dos sentires

10:41 da tarde  
Blogger wind said...

Gostei de te ler, conhecer os teus háabitos:)
Beijos

2:01 da tarde  
Blogger mfc said...

Fizeste-me dar um passeio agradável ao ver o teu dia a dia.
Achei-te calma e vi aqui e ali um leve sorriso... acertei?

4:49 da tarde  
Blogger Bonecas da Filó said...

Amei o seu blog,parabens.
Vou passar por aqui mais vezes.

10:44 da tarde  
Blogger A. Jorge said...

Correndo o risco de me tornar repetitivo, que mais posso eu dizer senão que adorei cada vírgula, cada palavra, cada ponto final que escreveste.

Já agora, tens um agradinho na minha humilde casinha!

Um beijo

Jorge

12:46 da manhã  
Blogger poetaeusou . . . said...

*
decis�o acertada . . .
boa noite,
,
conchinhas
,
*

9:44 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Olá menina DULCE!
Ao ler este teu escrito fiquei com vontade de te dizer milhões de coisas, mas este espaço é curto.
Não faz mal, tenho esperança que possamos conversar quando te for pedir para me autografares o teu livro, que ainda não comprei devido a uma falha que não sei explicar, na compra por internet. (vou repetir)

3:41 da tarde  
Blogger encantos said...

...revejo-me bastante nesta 'peça' excelente.
até a música é comum...

11:05 da tarde  
Blogger Micawatson said...

hi there..bloghopping here..i like your music.though i don't understand what it means but i think has a good meaning...tc

11:44 da tarde  
Blogger Oris said...

Há textos que quando os acabo de ler fico sem fôlego devido à sua cadência.

Os teus são calmos, deixam-nos respirar, bebemos cada palavra.
Às vezes deixam transparecer uma certa nostalgia, mas não foi o caso deste.
Ficámos com um sorriso de satisfação...

Bom fim-de-semana.
Beijitos

10:48 da tarde  
Blogger Era uma vez um Girassol said...

Dulce, este post quase se podia colar também a mim....
Muito bonito!
Afinal escrever o quê?
E disseste tão bem....
Beijinhos

9:27 da tarde  
Blogger Isabel said...

LIvros, livros e mais livros; vou acumulando na esperança de um dia conseguir ter tempo para mim e fazer uma das coisas que mais gosto: sentar-me numa esplanada, na minha varanda, no sofá e ler.

Bjnh e boa semana

1:13 da manhã  
Blogger João C. Santos said...

dexam de ser sonhos

e todos voltam a ser medos

os vivros

os mundos por
acontecer....

1:34 da tarde  
Blogger Ana Ramon said...

É muito bom ler e reler-te. Tal como os outros amigos também fiquei a sorrir no fim imaginando-te a cumprir a decisão e com os gatos atrás a certificarem-se
:)))
Um beijinho grande, amiga

12:45 da manhã  
Blogger eu said...

Gosto muito de ler os seus textos. Quando aqui venho sei que vou encontrar algo que me transportará para a tranquilidade daquilo que, de algum modo, já vivi.

5:07 da tarde  

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