segunda-feira, março 03, 2008

O gosto do ofício


Ao telefone com uma amiga, há uns minutos atrás, dizia-lhe como é bom podermos fazer aquilo que realmente nos dá prazer! e quando assim falo refiro-me não apenas aos nossos pequenos passatempos mas também ao nosso trabalho diário. Quantos de nós podemos dizer que o nosso trabalho - aquele que nos dá o ordenado ao fim do mês (ou não!) - é exactamente o nosso maior prazer? Não seremos concerteza muitos! Eu conto-me entre aqueles que o podem dizer. Não, não vou enriquecer com ele nem mesmo consigo um belo e estável ordenado ao fim de cada mês ... mas também nem tudo pode ser bom, não é?
O horário é flexível, o local de trabalho é silencioso e o patrão não espreita por cima do meu ombro a cada meia hora. Neste momento já perguntam de que é que eu estou a falar ... mas eu digo já! Esperem só mais um pouco!
Quando chego ao meu local de trabalho já antecipadamente planeei o meu dia. No balcão peço os microfilmes que abrangem o local e o ano que me interessa e depois, já na posse dos mesmos, escolho uma máquina disponível. Dispo o casaco e coloco-o nas costas da cadeira. Tiro o som do telemóvel para que não perturbe o silêncio da sala e disponho na mesa os papéis que necessito consultar. Ligo a máquina e coloco nela o microfilme em posição de leitura e só depois me sento o mais confortavelmente possível.
A pequena manivela faz deslizar perante os meus olhos as inúmeras páginas que, ora num rápido olhar, ora numa leitura lenta, absorvem toda a minha atenção. As horas passam sem que eu dê por elas. O cansaço, só o sinto quando chega a hora de ir embora. Até esse momento a minha atenção não se desvia um momento das velhas páginas agora transformadas em filme e dos diversos tipos de letra que obrigam a um esforço redobrado. De uma escrita rigorosamente desenhada passa-se para outra que parece ter sido traçada por uma criança. De sucessivas páginas metodicamente alinhadas saltam-se para outras em que mal distinguimos os finais dos parágrafos. Entre folhas que percebemos bem conservadas surgem algumas quase impossíveis de decifrar em virtude da tinta esborratada ou da deterioração do papel. Nada disto no entanto me impede de continuar. Há que saber ler para além do borrão. Há que ter a agilidade de descodificar as grafias mais fechadas. Há que ser persistente porque a recompensa chega a qualquer momento.
Um nome finalmente colhe a minha atenção! Confiro os dados anteriores. Leio toda a descrição e concluo que tudo bate certo. É mais uma peça do grande puzzle que posso encaixar. É nesse momento que me permito parar um momento - um momento apenas, porque já me invade, premente, a vontade de continuar.
Olho o relógio. Está quase na hora! Só mais um pouco ... para encontrar mais um! Só mais um e depois acabo ... por hoje! Afinal, compreende-se o entusiasmo ... acabei de encontrar a certidão de baptismo de um nono avô nascido há trezentos e oito anos!!! Um nono avô de alguém que está interessado em conhecer os seus antepassados. Os meus, já encontrei, e sempre que posso vou tentando desvendar as teias que o tempo teima em ocultar.
Para que um dia os meus netos, possam mostrar aos seus netos, a árvore que lhes deu vida.
(Foto, minha. Um outro tipo de documento)

19 Comments:

Blogger Maria said...

Valeu a espera, Dulce. Muito interessante esta prosa...
Mais do que o salário que se recebe ao fim do mês (ou não, como dizes) o importante é fazermos o que gostamos. Não tem preço...

Um beijo

1:51 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Procurar a arvore genealógica de alguém não é tarefa fácil, como tu no teu texto pareces transmitir.
É preciso saber muito. É preciso muito estudo, empenho, paciência e conhecimento sobre as diversas "escritas" paleográficas dos nossos antepassados.
Eu sei que adoras fazer esse trabalho, mas é preciso que fique claro que não é para qualquer um.
Na comunidade de blogs que te lê se calhar não conhecem esse teu trabalho, e quem sabe, depois de ler sobre o assunto, possam começar a equacionar o interesse em conhecer quem foram os seus antepassados; porque é que têm este ou aquele apelido? Será que algum tetratetravô era duque? Bispo? Escravo? Copista? Será que participou nas descobertas? Foi senhor de escravos? Ou plebeu, pura e simplesmente, que ia à guerra a pé por não ter cavalo? Será que a mãe dos seus ancestrais, foi Agente numa corte estrangeira?
Açafata? Amante do Rei? Lavadeira? Alcoviteira?
O que se pode descobrir com o trabalho que tu fazes...
Desafio todos os que aqui vêem a pensar seriamente na possibilidade de conhecerem de onde vieram quem foram e o que fizeram os seus antepassados. Não é difícil, basta contactar a nossa amiga e escritora Dulce.

Bjs

Gostei muito que tivesses voltado.

10:06 da manhã  
Blogger wind said...

Excelente a descrição que fizeste do teu trabalho:)
Já sentia saudades:)
Mas o teu jeitinho continua:)
Beijos

1:31 da tarde  
Blogger poetaeusou . . . said...

*
agora sim.
vou acreditar em
arvores genealógicas,
,
conchinhas
,
*

7:08 da tarde  
Blogger mena maya said...

Parabéns Dulce, é um trabalho fascinante!

Precisas decerto de uma paciência de Jó, mas deve ser muito gratificante cada vez que encaixas mais uma pecinha...

Quanto tempo pode demorar uma investigação dessas?
Se alguém tiver interesse pode contactar-te?

Um abraço

10:26 da tarde  
Blogger Era uma vez um Girassol said...

Adorei este texto, a sua veracidade, a emoção e entusiasmo nele contidos!
Dulce, realmente é bom demais fazer o que se gosta...
Parabéns pelo teu trabalho tão interessante: descobrir a árvore da vida de alguém, seja por curiosidade, tradição ou apenas gosto.
Beijinhos

7:22 da manhã  
Blogger Ana Fundo said...

Amiga, e Colega :-)

Descreveste tal e qual o que eu sinto, quando me sento atrás de uma máquina de microfilmes, ou numa Sala de Leitura, e a Alegria que é quando encontramos um nome que nos diz tudo, que conseguimos ligar aos que procuramos, é daquelas sensações incriveis que só quem pesquisa estas coisas é que entende!!!
O bichinho da genealogia quando entra em nós, não nos larga mais...é eterno!!!
Parabéns pela prosa, MARAVILHOSA :-)
Comovi-me :-)
Beijos e Boas Pesquisas

6:49 da tarde  
Blogger Ana Fundo said...

De novo (eheheh)

Esqueci-me do meu lema:

Em Busca do Passado, um Legado para o Futuro!!!

7:21 da tarde  
Blogger Maria said...

Para a Mena M.:

Estas pesquisas demoram o tempo que o cliente entender. Depende de quantas gerações quer avançar ou que linha familiar quer seguir. Como deves calcular é um trabalho moroso que pode dar frutos rápidos ou não. Dou-te um exemplo: hoje mesmo estive num Arquivo Distrital todo o dia - das 9.30 às 17,30 com uma hora e meia para almoço e consegui localizar 10 registos. Foi um dia de trabalho bastante produtivo. Avancei algumas gerações o que me deixou bastante satisfeita, mas acontece que há dias em que se procura e não se encontra tão facilmente.
Perguntaste se posso ser contactada para trabalhos destes: posso sim através do meu e-mail do blog. Se alguém estiver interessado em pesquisar os antepassados ou para qualquer´esclarecimento, estejam à vontade. :-)

Para todos os que continuaram a passar por aqui neste meu tempo de pausa, deixo o meu abraço grande.

8:53 da tarde  
Blogger mena maya said...

Obrigada Dulce, pela tua resposta, se for caso disso entrarei em contacto contigo por e-mail.

Beijinho e até 5ª-feira no PPP.

9:56 da tarde  
Blogger Teté said...

O meu pai sempre me disse isso: não há nada melhor do que fazer o que gostamos, profissionalmente falando.

Nunca ficou rico, mas também não me parece o mais importante. Passar a vida a trabalhar em algo que não se gosta, mesmo que para ganhar milhões (que normalmente não é, é mais mesmo de sobrevivência!), deve ser uma tortura diária.

Gostei muito de te ver (e ler) de volta...

Jinhos!

12:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Um texto lindo. Que já fazia falta.
Esperava a todo o momento este regresso... e afinal atrazei-me um dia.Mas deves saber porquê.
Aqui demora bastante tempo a recompor.O que lá está, afinal é alheio. Foi apenas uma forma de dizer que se está vivo.Mas debilitado.
Agora quero ver, com frequência, o que vais escrevendo.
E assim talvez volte, um destes dias...

8:41 da manhã  
Blogger Maria Carvalhosa said...

Estimada Dulce,

Hoje n�o estou aqui para te deixar um coment�rio ao post, (h� quanto tempo n�o o fa�o!) mas para divulgar um evento no qual poder�s ter interesse em participar ou, pelo menos, dele ter conhecimento.
Trata-se do Concurso de Poesia 2008 organizado pelo Henrique Sousa e cujos detalhes podes encontrar no endere�o:

http://horabsurda.org/moodle/course/view.php?id=30

Este � o site do concurso de poesia para 2008 do �Ora, vejamos...�, administrado, conforme j� referi, pelo Henrique Sousa e que conta com a colabora�o preciosa de muitos dos seus amigos. Os contactos com vista � constitui�o do j�ri do concurso j� terminaram e o j�ri est� formado, com tr�s elementos do f�rum, sendo que dois pertenceram ao j�ri do concurso de contos do ano passado.
O concurso tem sido amplamente divulgado nos espa�os pessoais de alguns membros do �Ora, vejamos...�, colabora�o sempre muito bem-vinda para divulgar qualquer evento do g�nero.

O envio dos poemas para o concurso come�ou �s 12 horas do dia 1 de Mar�o e termina �s 12 horas do dia 31 de Mar�o, horas de Portugal Continental.

Provavelmente j� tens conhecimento do assunto atrav�s do pr�prio Henrique mas, ainda que assim seja, o preju�zo desta minha informa�o � nulo.

Beijos com saudade.

4:18 da tarde  
Blogger A. Jorge said...

Olá!
Vim cá trazer-te um beijo e agradecer a tua visita.
Quanto à minha passagem por aqui, essa, é obrigatória! Venho cá muitas vezes embora nem sempre comente.
Cheguei a ficar assustado com a tua ausência. Chegou a passar-me pela cabeça que eras mais uma a desparecer... ainda bem que me enganei! Nem calculas como gosto de ler o que escreves. Seria uma pena!...

Infelizmente já não posso dizer o mesmo que tu. Trabalho num banco e este não me realiza em nada. É um meio que não tem nada a haver comigo nem com a minha maneira de ser e de pensar. Um mundo frio, engravatado(not me) "robotizado", que não olha meios para obter lucros e mais lucros... parecem quase políticos, percebes? E eu, que odeio políticos!...
Mas enfim! Falo de barriga cheia, não é? Pensando bem, até é uma afronta e um pecado estar a dizer isto. Afinal é este trabalho que põe comida na mesa, que paga os carros, a casa, as férias, os computadores as nets e todos os "luxos" que tenho! Basta olhar em volta sem ter que ir muito longe para me aperceber o quanto estou a ser estúpido falando assim. Mas ninguém está satisfeito com aquilo que tem, não é?
Já dizia o António Variações: "Porque eu só estou bem aonde eu não estou. Porque eu só quero ir aonde eu não vou..."

Um beijo

Jorge

http://vagabundices.wordpress.com/

12:08 da manhã  
Blogger perplexo said...

Interessante. Bom regresso!
Bj

3:03 da manhã  
Blogger H. Sousa said...

Olá, Dulce! Se puderes, visita este site, ainda fresco da instalação:
http://livros.horabsurda.org
Nele gostaria de divulgar algo de que já me falaste...
Beijos

12:20 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Dulce, sinto-me tão feliz por te voltar a ler.
Já tinha começado a organizar uma busca, não fosse dar-se o caso de teres caído dentro de um velho arquivo da Torre do Tombo, sem ninguém dar por isso…
Gostei da descrição do teu trabalho e gostei principalmente de saber que estás bem. Consegui até imaginar-te, cheia de teias de aranha, com uns grandes óculos a pesquisar os baús poeirentos e perdida por entre corredores de velhos alfarrábios. Talvez um dia descubras por esses lados um documento do “Códice Besnico” que se perdeu num naufrágio…

Beijitos miúda, és um espectáculo!

3:28 da tarde  
Blogger M. said...

Ah! Até que enfim de volta!

5:45 da tarde  
Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

Trabalhar com amor é um privilégio de muito poucos. Uma coisa é ter um "emprego" (uma maneira de ser usado), outra coisa é ter uma "profissão" (professar uma crença com paixão).

Nunca percebi que eras uma genealogista: a tua vida errante entre arquivo distrital e arquivo distrital imaginara-a eu mais como a actividade de uma comercial de uma grande empresa. Possuidora de um dom raro neste tipo de pessoas: o de escrever com excelência. Mas desculpa-me este lapso dedutivo, tu que suponho seres uma excelente detective, rápida na percepção e ajuizamento do valor do pormenor.

Depois de muito privar com uma profissão de que gostava muito, troquei-a para poder ganhar dinheiro devido a circunstâncias a que não me pude furtar. Passados quinze anos de amargurada prostituição deixei de trabalhar perdendo a fonte de um bom rendimento. Agora, sem remuneração, só faço o que me apetece e sinto-me muito bem. Trabalho desalmadamente dedicando-me a inúmeras e distintas actividades. Em quase todas as novas actividades tive que aprender o básico. Deito-me estourado e bem comigo próprio e com os outros.

1:23 da manhã  

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