terça-feira, novembro 27, 2007

Sabedoria popular

Mais cedo ou mais tarde vivemos situações que antes, quando vividas pelos nossos pais, eram para nós incompreensíveis. Há um qualquer ditado popular que exprime bastante bem esta situação mas que agora não recordo. A sabedoria popular é sempre perfeita para caracterizar situações comuns ... mas mesmo a essa velha sabedoria eu encolhia os ombros há uns anos atrás quando te via, mãe, a actuar de certa maneira.
Todos quantos a conheceram me dizem que a cada dia que passa me torno mais parecida. Ora nas expressões, ora na forma como apanho o cabelo, ora nas atitudes. Eu própria a descubro em certas gargalhadas, ou até mesmo quando ao espelho a encontro por detrás dos gestos mais banais. Aqui nesta casa que também foi a dela, quase tropeço na sua figura ténue quando à janela me despeço das minhas filhas do mesmo modo que ela sempre se despedia de mim. Durante muito tempo após a sua morte não conseguia virar aquela esquina sem antes olhar para a varanda de onde ela sempre me acenava o último adeus.
Falou-me ela muitas vezes de um gato que teve quando ainda era solteira. Negus era o seu nome. Preto e extremamente vaidoso segundo me dizia, pois adorava passear-se de rabo erguido, frente ao espelho de um antigo móvel da sala. À noite saía pela janela do quarto que ficava prepositadamente aberta, voltando de novo a casa pela madrugada, concerteza muito mais feliz. Já várias vezes pensei porque não arranjou ela um gato para companhia, ela que durante tantos anos viveu só! Tenho a certeza que teria sido bem mais feliz. Não consigo hoje imaginar-me sem os meus gatos. É com eles que falo. São muitas vezes eles que me fazem rir à gargalhada. É com eles que brinco e é deles que recebo o primeiro carinho de cada dia. Tenho a certeza que pressentem as minhas tristezas e quando assim estou, vêm anichar-se ao meu colo e ali ficam partilhando as minhas lágrimas e consolando-me com a sua presença.
Mas pensava eu no início desta conversa que agora a compreendia bem melhor. Não é só nos gestos e nas expressões que me assemelho a ela! É também nas atitudes - hábitos de quem vive só. É na forma como aproveito a hora de almoço para ir às compras. É o rádio que fica a tocar sem sequer o ouvir. É o almoço que se come a qualquer hora e em qualquer lugar - menos no lugar convencional. Pequenas coisas que agora adquiriram significado.

Chega sempre o dia em que o pano cai!

22 Comments:

Blogger mfc said...

Eu que não vivo só, sei bem ao que te referes.
É uma angústia terrível.
Um beijo grande.

3:32 da manhã  
Blogger Paula Raposo said...

O pano cairá. Mas algo ficará nesse momento. Beijos.

1:02 da tarde  
Blogger Zé-Viajante said...

A mãe sempre presente. E o grande amor de sua filha.
Bjs

2:34 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Quem sou eu para te aconselhar!

Os conselhos se fossem bons, não se davam – vendiam-se. Mas sempre te digo, quando estiveres assim telefona ao Besnico (que atrevimento), vamos tomar um copo e fazer disparates, já pensaste que podíamos aparecer no telejornal com o seguinte comentário:

- Polícia detém em Almada, “sexagenários”, por comportamento impróprio.

Para ti seria uma novidade, presumo. Para mim seria reviver o passado. eh eh eh!

Acredita em mim - não tardaria que desejasses estar só em casa com o teu gato. Mas só seria grave se no dia seguinte não estivesses pronta para outra.

Beijitos miúda, mas compreendo-te bem…

5:49 da tarde  
Blogger perplexo said...

Os genes estão lá. E os memes tornam-se quase tão indeléveis como aqueles.
Bjs

1:34 da manhã  
Blogger Isabel said...

Passei para te deixar um enorme beijo e te dizer: voltei.
Graças a todos vós vou tentar dar a volta por cima e voltar a ser EU.

Bjnh

1:42 da manhã  
Blogger Bichodeconta said...

Deliciada.. Um abraço, ell

3:32 da tarde  
Blogger Flôr said...

Sabes, Dulce, é bem pior a solidão rodeada de uma multidão...

Beijitos

Gostei muito do teu texto.

7:12 da tarde  
Blogger Kalinka said...

É isso mesmo Dulce, o que a anag. escreve é do mais verdadeiro que existe: é bem pior a solidão rodeada de uma multidão, e isso eu sei porque o vivo diariamente...

A lembrança da tua Mãe, fez-me lembrar a minha que a perdi tãoooooo cedo, com apenas 20 anos.

Beijitos.

8:45 da tarde  
Blogger Isabel said...

Cada pequeno gesto que nos lembra aqueles que amamos mas que partiram, são bocaditos de uma peça que reconstruímos no nosso imaginário e que acarinhamos, tornando-nos as suas personagens principais.

Bjnh

3:10 da manhã  
Blogger Alecrim said...

Um beijinho, Dulce. Reconheço-me em muito do que escreves.

4:55 da manhã  
Blogger poetaeusou . . . said...

*
a solid�o n�o existe,
n�o entra em mim,
n�o lhe abro a porta . . .
*
xi
*

9:45 da manhã  
Blogger Ana Ramon said...

Engraçado como agora te vejo e me revejo tão facilmente nos teus textos sempre tão belos.
Um beijinho

11:19 da manhã  
Blogger Era uma vez um Girassol said...

Os genes são algo poderoso...
Os gatos, a sua companhia, os hábitos de cada dia.
Assim se vive, só ou acompanhada!
Beijinhos

5:56 da tarde  
Blogger Gervásio Leonel said...

Permita-me, minha senhora, dois comentários:

O primeiro respeita à forma como se apercebe que, com o adensar do tempo, nos recolhemos na sombra dos nossos maiores. Perdido diria que cada lugar tem um génio que se apossa da alma de quem lá habita. Quais genes! Nós é que nos vamos convertendo em seres do lugar e herdamos o seu espírito. Por isso nos parecemos tanto.

O outro comentário respeita ao gato, mas, primeiro, conceda-me o momento de uma citação de Voltaire:

La relation de cet Alvarès fut très longtemps au nombre des vérités peu connues; et depuis lui jusqu’à nos jours on a vu trop d’auteurs, échos des erreurs accréditées de l’antiquité, répéter qu’il n’est pas donné aux hommes de connaître les sources du Nil. On donna alors le nom de prêtre-Jean au négus ou roi d’Éthiopie, sans autre raison de l’appeler ainsi que parce qu’il se disait issu de la race de Salomon par la reine de Saba, et parce que depuis les croisades on assurait qu’on devait trouver dans le monde un roi chrétien nommé le Prêtre-Jean: le négus n’était pourtant ni chrétien ni prêtre.

... e eis o comentário: porque passará um gato, preto retinto como o Negus da Abissínia, de rabo alçado frente ao espelho? Como diria Perdido, se estivesse no meio de nós, o seu narcisismo é tal que ensaia rodeios amorosos ao seu ego.

Creia-me um seu admirador e receba os meus melhores cumprimentos.

12:39 da manhã  
Blogger augustoM said...

A solidão também as suas vantagens. Precisamos é de as encontrar.
Um beijo. Augusto

1:46 da tarde  
Blogger Bichodeconta said...

Primeiro deixa-me dizer-te: Mil vezes sózinha, do que numa solidão, acompanhada, sei do que falo, vivi na pele e na alma essa coisa horrivel de ter alguém em casa mas não era um companheiro.. E nem quero dizer o que sentia... SEI DO QUE FALAS, SLIDÃO MATA!!!Mas gostei da ideia do besnico , é bom ter alguém a quem ligar quando estamos sós... e ao abrigo do actual código penal, podiam fazer as maiores tropelias que nem eram presos... E se fossem, seria delicioso poder passar a noite na prisão falando com alguém tão inteligente e interessante..um abraço, ell

5:57 da tarde  
Blogger The Perfect Stranger said...

há tanto tempo!!!
beijo doce
gostei de ler...

6:42 da tarde  
Blogger wind said...

As máscaras não se podem usar sempre, às tantas ficamos sufocados por elas...:)
Beijos

1:31 da manhã  
Blogger bettips said...

"Filho és, pai serás: como o fizeres, assim acharás".
Creio que ouvia dizer desta forma. Ficam os genes bons dos que amamos: luta-se contra os outros.
Tens uma escrita muito íntima, já o teria dito antes? Toca a pele sensível. Bjinhos

1:12 da manhã  
Blogger Su said...

deparei-me com o tempo....aqui....em mim..........

jocas maradas e brilhantes

9:16 da tarde  
Blogger Ana said...

Desculpa, dulce, com o texto anterior fiquei confusa e não me apercebi do tempo das coisas por que passaste. Mas continuo a achar que a tua mami iria adorar. Onde quer que esteja, está a adorar.
E, olha, está viva em ti, já viste? =) Ao te reconheceres nela. =) Por vezes dou comigo em gestos e ditos que me fazem pensar...onde é que eu já vi isto...? =)

Filho de peixe, sabe mesmo nadar. Afinal, tens metade dos seus genes. E foste criada na sua presença. Era inevitável que se diluissem e fundissem uma na outra. Portanto, Dulce, nunca estás sozinha, ela está aqui e aí contigo e bem dentro de ti.

Sei que é parco o consolo de ler aqui, que não estás sozinha, tens muitos bloggers por aqui que te admiram e te adoram ler. E continuo a achar que tens um talento tão grande como o da sophia que adoras. Usa-o para tocar corações fora da blogosfera, vai...dá-me um livro teu para a minha mesa de cabeceira! =) e sei que não falo só por mim. =)

Mas como eu ia a dizer, enquanto nos lemos uns aos outros, sentimo-nos momentaneamente acompanhados. Mas a verdade é que os olhos depois se elevam do ecran e se rodeiam da solidão. Também sei o que isso é, e detesto-a, especialmente porque não tem de ser assim...mas pronto. Podemos ultrapassar isso, porque o mundo está cheio de pessoas a quem dar o nosso sorriso. =) nem que seja em cima de uma mesa de cabeceira =)

2:51 da manhã  

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