quinta-feira, novembro 01, 2007

Partida

Bilhete na mão, apresso-me para o local da partida. Apenas dois autocarros na pista e nenhum deles para Lisboa. Soube depois que chegaria atrasado. Vinha de Gouveia, e no caminho longo vai-se perdendo um minuto aqui ... mais dois acolá que se vão somando, e depois arredondados dão uns bons dez minutos no final. Poiso a mala no chão ao meu lado enquanto me encosto e entristeço um pouco, saudosa já de um passado recente. Fixo vagamente o vidro que reflecte o terminal enquanto o pensamento se fixa no momento da partida. Sempre a partida! Uma vez mais a partida! Olho o relógio! Devia estar a sair agora ... o autocarro ... mas o vidro feito espelho reflecte ainda um terminal vazio. Há uma fila de gente que se perfila junto da porta. Homens e mulheres. Novos e velhos ... e sempre uma mala por perto, ou um saco ... e um olhar perdido ... (passado ou futuro?) na distância. Há no ar o som de um motor a trabalhar ... uma espécie de ronronar que entorpece e me adormece ... e me leva de volta.
Viseu ficou lá atrás. Cidade antiga que convive a cada passo - em cada esquina - com os dias de hoje. Calçada antiga onde ainda ecoa o trote ritmado dos cavalos. Paredes de pedra tosca que não deixam esquecer o passado e aquela rua estreita e tão longa onde o comércio impera, porta sim, porta sim, a tradição entrelaçada com a novidade.
Descanso o meu peso sobre o outro pé e momentâneamente volto à realidade. Olho de novo o relógio de pulso. Deixo-te ir sabendo que afinal já tinhas partido um pouco. O abraço calou as palavras que ambos conhecemos de cor. Tão pouco tempo!
Regrido de novo e vejo a estrada que corre veloz a caminho da quinta. As palavras brotam aos borbotões como entre duas pessoas que já se conhecem há muito, e no entanto antes, eram apenas escritas as palavras! O rosto e o timbre da tua voz colaram-se à imagem que antes apenas imaginara constituindo-se agora como um todo. Sei-te agora num mundo que não imaginara, feito de vento roçando nos carvalhos de folha vermelha, exalando os aromas da terra pisada com amor, tingido pelo trote feliz dos teus fiéis companheiros. Trouxe comigo um pouco de ti. Guardado no olhar está o verde que se perde no horizonte. A nesga de água que mal se vislumbra ao longe. O verde escurecido e frio da lagoa onde quase te imagino sentada ao entardecer. E o restolhar das folhas secas sob os nossos pés. E as bagas vermelhas que espreitam sob a folhagem. E o saltitar alegre e tranquilizador dos cães que seguem todos os teus passos. E o sabor das amoras e dos figos transformados em doce manjar.
Desenha-se o sorriso na lembrança de uma tarde feliz. Disfarça-se por momentos a tristeza da partida. No vidro tornado espelho ganha forma o ruído do motor que já se ouvia à momentos. Agitam-se as gentes na gare na sua direcção. Apresso-me também. Já passa algum tempo da hora marcada.
Na partida, e à medida que a cidade vai ficando para trás, não me contenho, e guardo também o velho Mondego - espelho mágico onde uma cidade se embeleza.

15 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Como é bom ler um texto tão bonito antes de dormir!
Deixa-me dizer uma coisa, se fosses homem, apaixonava-me por ti, que tão bem consegues descrever os momentos felizes, cumplices e íntimos que passas com quem amas.
E também a tristeza da partida, a saudade...
è tão bonito! fico sempre com a lágrima ao canto do olho quando escreves assim.

Bjs. até amanhã

Escrevi

2:04 da manhã  
Blogger Maria said...

Voltaste do "frio"....
Por aqui também as tuas palavras me aquecem....

Beijo

12:21 da tarde  
Blogger perplexo said...

Quem serão as personagens? - interrogo-me. Parto do princípio que é escrita autobiográfica - visita a um amigo - e, no entanto, mais para o fim, descortino um «quase te imagino sentada ao entardecer». Então é uma amiga! E releio a tentar perceber e a reenquadrar a história. Então, encontro um «O abraço calou as palavras que ambos conhecemos de cor». Se fossem duas amigas o texto diria «ambas». Então o narrador é um homem. Mas quando vou procurar o «ambos» para este comentário deparo com «saudosa já de um passado recente». Oh diabo, agora é que já não percebo nada.

E daí? Porque é que hei-de ser tão racionalista e ficar preso à fofoquice de tentar perceber quem é quem? Pois se o mais importante é o sentimento transmitido e as imagens pintadas a palavras...!

Bj

2:27 da tarde  
Blogger augustoM said...

Para não ter os problemas do Preplexo, não ando de autocarro, fico enjoado.
Um beijo. Augusto

6:49 da tarde  
Blogger Ana Fundo said...

Enfim...simplesmente maravilhoso :-)
Fizeste-me lembrar a letra dos saudosos Trovante - Saudades do Futuro :-)
Beijos Mil

8:19 da tarde  
Blogger Ana Ramon said...

Ao ler-te fiquei presa ás minhas lembranças. Também adoro esses sons, esses aromas, esse saborear dos momentos felizes. Muitas vezes dão-se melhor por eles quando os partilhamos com pessoas de quem gostamos. E as partidas nem sempre são definitivas, felizmente. Elas podem e devem dar origem a alegres regressos. Gostei imenso de sentir o toque tão especial que dás sempre áquilo que descreves. Acontece-me tantas vezes reconhecer-me nas tuas palavras.
Um abraço muito grande

10:02 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bom post, parab�ns.

12:11 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Deixa-me dizer uma coisa...
Se....(escreveu a ESCREVI.)


Pois é. Era tão fácil.

Bj

7:49 da manhã  
Blogger Era uma vez um Girassol said...

Viseu foi em tempos meu ponto de chegadas e partidas, meu poiso de trabalho, meu nicho de afectos, lugar de despedida de um ente querido...
Hoje raramente lá vou...
Mas é sempre um lugar bonito, onde nos sentimos bem.
Um lugar agora com uma história de amor...Lindo!
Bjs

1:37 da tarde  
Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

Leio-te, uma vez mais, dividido entre o deleite e a devoção. Aonde vais tu, Dulce, desencantar dentro de ti esta habilidade? Esta incomparável habilidade de exprimir o intenso(as impressões, os sentimentos, as memórias) abstendo-te de falares de ti para falares de Gouveia, de Viseu, dos autocarros, do relógio, do comércio, dos carvalhos de folha vermelha, da lagoa, das bagas, dos cães? E "dele" (ou "dela" que interessa?!) pois "sentada" és "tu" (eu cá teria posto uma vírgula mas não é de todo necessária). Ou será que estou a ler mal? Acontece-me muitas vezes ler mal e desinterpretar. Mas gosto desta leitura porque no final tudo bate certo. E gosto das coisas que acabam a bater certo. Mas isto já é dizer de mais. E que te interessa isso?

Leio-te mais uma vez, perdido no deleite e na devoção de te ler.

4:39 da tarde  
Blogger Flôr said...

Começamos e seguimos a cadência das tuas palavras, tentando advinhar, o que não nos dizes.

Gostei muito de te ler.

Beijitos

7:47 da tarde  
Blogger mfc said...

Voltaste do agreste da serra onde eu me aconchego de Abril a Setembro.
Sinto-me bem por aqueles lados e para lá fujo aos fins de semana sempre que posso.

1:46 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Passo para apresentar um novo blog .
«A Boca do Charroco»
Novo post .
"Ele há coisas do caraças ."

Bom fim de semana .

5:11 da tarde  
Blogger poetaeusou . . . said...

*
dulce
*
estive em moimenta da serra
será, que nos cruzarmos ?
*
bji
*

9:16 da tarde  
Blogger sOl said...

Tão bonito...
E eu estava lá..
N me lembro de ter ido a Viseu,mas sei que estava lá...
Pelo menos enquanto lia o texto...
Eu vi pela janela do autocarro...




sOl*

9:17 da tarde  

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