Escrever sobre quê?
Não! Acho que não sou capaz!
Poisei o telemóvel há pouco e senti que alastrava aquele mal-estar que se foi insinuando ao fim do dia. O gato dorme no meu colo e sinto o seu peso morno sobre as pernas. A televisão fala baixinho e as imagens são pequenos flashes que piscam ao canto dos meus olhos. Terminou o "Conta-me como Foi" que me fez recordar velhas coisas do passado. As Conversas em Família, o Medo, a Clandestinidade, a Guerra de Espanha. Aquele mundo a preto e branco trazido de novo à nosssa lembrança. Fanhais e os filmes vistos em segredo. E esta sensação de peso acentuada ao fim da noite! E a premência de escrever! Mas escrever o quê? O filme "tem bolinha" vejo agora num relance, e de novo me afasto para a noite que me espreita pela nesga da vidraça descoberta. E esta pressão sobre o peito que se insinua ... Escrever sobre quê?
Procuro no ontem, imagens que se distingam. A imponência daquela Sé que em ocre se destaca. Volto atrás, àquela fotografia tirada há mais de trinta anos e vejo-me ali. Era Verão. O calor era um pesado fardo que arrastávamos pelas ruas desertas. As pedras polidas das ruas reflectiam o intenso sol de Agosto e aquela igreja de pedra era o abrigo que mais se desejava. Quatro da tarde. Aquela porta em ogiva que ontem enfrentei parecia a mesma, e no entanto ... mais de trinta anos se passaram. Ocres são ainda hoje as pedras que abrigam a tradição e a fé das gentes mas a cidade cresceu. Ou fui eu que cresci e esqueci as ruas íngremes de pedras polidas em que as memórias escorregam? Ou fui eu que perdi na poeira dos anos o traçado dos caminhos que percorri naquela tarde de um Verão já quase esquecido?
Escrever o quê? Para quê se há esta inquietação que me faz disparar o coração? Lembrar ... a noite em que a estrada mergulhava num turbilhão. Lá atrás ficaram as vozes ... cada vez mais afastadas. As risadas abafadas no caminho de regresso. Os passos engolidos na distância. Fria a noite ... Escrever para quê se a lua ficou lá, como um berço dependurado num céu de breu? Escrever sobre o quê se as estrelas se dissolveram já nas luzes da cidade?
Como pesa esta noite! Sem estrelas, sem lua, sem vozes ... Arrefecem as pernas na ausência do calor morno do bichano. O tic-tac sobrepôe-se ao som baixo da televisão. Fecho os olhos e procuro as imagens do ontem (o que escrever ainda?) mas é o meu Tejo que se espraia agora no meu pensamento. Caía o dia e pelas amplas janelas o olhar procurava a luz irreal do entardecer. Lá em baixo, o rio ... a ponte ... Lisboa que adormecia! Sentia-se o entardecer no lento adoçar dos azuis. É como um suave manto que retira a pouco e pouco o brilho do dia. Sobre a cidade ao longe desenham-se as primeiras sombras - parecem ilhas recortadas no casario. Queria abrir as janelas e debruçar-me no varandim ... absorver aquele momento que, repetido em cada dia, é sempre diferente ... Não vejo o sol. Esconde-se longe do meu olhar, mas sinto o seu lento poisar no horizonte pelos sucessivos matizes da luz. Na ponte, o trânsito parece de brincar - formigas diligentes que se apressam antes da noite cair. O ocre impera agora sobre a cidade. É o momento fugaz da transição. Um minuto apenas passado e já pequenas luzes se vão acendendo pelas colinas. É com outro manto que se cobre agora a capital.
Arrefece. No peito entranha-se a estranheza de um novo anoitecer.
Arrefece. As mãos acarinham o rosto cansado. Os olhos cedem a um peso que subitamente se impõe. As mãos desistem. Escrever sobre o quê? Amanhã ... escrevo amanhã!
Poisei o telemóvel há pouco e senti que alastrava aquele mal-estar que se foi insinuando ao fim do dia. O gato dorme no meu colo e sinto o seu peso morno sobre as pernas. A televisão fala baixinho e as imagens são pequenos flashes que piscam ao canto dos meus olhos. Terminou o "Conta-me como Foi" que me fez recordar velhas coisas do passado. As Conversas em Família, o Medo, a Clandestinidade, a Guerra de Espanha. Aquele mundo a preto e branco trazido de novo à nosssa lembrança. Fanhais e os filmes vistos em segredo. E esta sensação de peso acentuada ao fim da noite! E a premência de escrever! Mas escrever o quê? O filme "tem bolinha" vejo agora num relance, e de novo me afasto para a noite que me espreita pela nesga da vidraça descoberta. E esta pressão sobre o peito que se insinua ... Escrever sobre quê?
Procuro no ontem, imagens que se distingam. A imponência daquela Sé que em ocre se destaca. Volto atrás, àquela fotografia tirada há mais de trinta anos e vejo-me ali. Era Verão. O calor era um pesado fardo que arrastávamos pelas ruas desertas. As pedras polidas das ruas reflectiam o intenso sol de Agosto e aquela igreja de pedra era o abrigo que mais se desejava. Quatro da tarde. Aquela porta em ogiva que ontem enfrentei parecia a mesma, e no entanto ... mais de trinta anos se passaram. Ocres são ainda hoje as pedras que abrigam a tradição e a fé das gentes mas a cidade cresceu. Ou fui eu que cresci e esqueci as ruas íngremes de pedras polidas em que as memórias escorregam? Ou fui eu que perdi na poeira dos anos o traçado dos caminhos que percorri naquela tarde de um Verão já quase esquecido?
Escrever o quê? Para quê se há esta inquietação que me faz disparar o coração? Lembrar ... a noite em que a estrada mergulhava num turbilhão. Lá atrás ficaram as vozes ... cada vez mais afastadas. As risadas abafadas no caminho de regresso. Os passos engolidos na distância. Fria a noite ... Escrever para quê se a lua ficou lá, como um berço dependurado num céu de breu? Escrever sobre o quê se as estrelas se dissolveram já nas luzes da cidade?
Como pesa esta noite! Sem estrelas, sem lua, sem vozes ... Arrefecem as pernas na ausência do calor morno do bichano. O tic-tac sobrepôe-se ao som baixo da televisão. Fecho os olhos e procuro as imagens do ontem (o que escrever ainda?) mas é o meu Tejo que se espraia agora no meu pensamento. Caía o dia e pelas amplas janelas o olhar procurava a luz irreal do entardecer. Lá em baixo, o rio ... a ponte ... Lisboa que adormecia! Sentia-se o entardecer no lento adoçar dos azuis. É como um suave manto que retira a pouco e pouco o brilho do dia. Sobre a cidade ao longe desenham-se as primeiras sombras - parecem ilhas recortadas no casario. Queria abrir as janelas e debruçar-me no varandim ... absorver aquele momento que, repetido em cada dia, é sempre diferente ... Não vejo o sol. Esconde-se longe do meu olhar, mas sinto o seu lento poisar no horizonte pelos sucessivos matizes da luz. Na ponte, o trânsito parece de brincar - formigas diligentes que se apressam antes da noite cair. O ocre impera agora sobre a cidade. É o momento fugaz da transição. Um minuto apenas passado e já pequenas luzes se vão acendendo pelas colinas. É com outro manto que se cobre agora a capital.
Arrefece. No peito entranha-se a estranheza de um novo anoitecer.
Arrefece. As mãos acarinham o rosto cansado. Os olhos cedem a um peso que subitamente se impõe. As mãos desistem. Escrever sobre o quê? Amanhã ... escrevo amanhã!
28 Comments:
Escreveste ontem - já hoje - um texto muito belo. E triste.
(Ouvir de novo Fanhais foi um momento muito belo)
É bom ler-te, sobre ti e além de ti.
Hoje vou ficar à espera, da continuação.
Beijos
Um texto muito belo. Um retrato a sépia!
Ontem estive a ler umas quantas páginas do seu novo livro. (Isabel Allende)
Não tinha lido ainda este texto mas lembrei-me de ti….!
Hoje depois de o ler lembrei-me dela..!
Beijinho e uma boa semana!
Dulce
Vamos lá ver se de uma vez por todas nos entendemos.
TU ESCREVES.(ponto)
E isso significa que, mesmo quando nessa linda cabecinha se "encrava" o pensamento e te interrogas: "escrever o quê?!", isso é um "bluff subconsciente" (gostaste?) para justificar preguiça, repito, preguiça, em assumires que para escreveres basta agarrares na caneta (ou no computador) e deixares os teus sentimentos fluirem livremente.
Estas palavras são justificadas pelo próprio post de hoje.
Escrever o quê???? E depois sai um texto belo, nostálgico, sem dúvida, mas envolvente como tudo o que escreves.
Escrever também pode ser uma forma de exorcisar a tristeza...
Digo isto porque como calculas não gostei do que li. Nunca gosto quando estás triste e abatida. Quando só o cinzento e o negro te rodeiam.
A disposição "de cão" que tinhas ontem faz-me ficar hoje, triste ao ler-te.
Mas escreve, escreve sempre, porque é sempre um prazer, (mesmo que às vezes a tristeza impere), ler o que escreves.
Mas que grande proza que para aqui vai hoje...
Mas já que cá estou, ainda vou ficar para mais umas palavrinhas...
Senta-te! Vá faz o que te digo...
Já está?
Agora agarra no teu bloco de notas e no lápis... estou à espera...
E agora de uma vez por todas deixa-te de indecisões e começa a escrever!
A escrever simplesmente, deixa sair,
deixa que o lápis conduza o que o teu pensamento lhe dita!
OU SEJA...
DE UMA VEZ POR TODAS COMEÇA A ESCREVER O LIVRO!!!!!!!!
Quero ler um livro teu, (grande), não pequenos textos que me fazem ficar com uma sensação de frustração.
É assim como quando eu era pequena e a minha mãe só me dava um bocadinho daquele chocolate enorme que guardava logo a seguir porque podia fazer-me mal comer muito...
É assim que tu fazes, deixas-me com água na boca a ansiar o dia em que posso ter um chocolate (livro) inteiro para mim, e comê-lo (lê-lo) sofregamente de uma só vez.
Bjs.
Só faltava agora que isto não saísse.
Escrevi
Escreveste... lindamente!
Sobre uma época, sobre as luzes da cidade, o entardecer. Sobre solidão, também. Sobre o passado e o presente. Sobre a vida que passa cada vez mais célere, sem que por vezes nos demos conta: "já passaram 30 anos?!"
Cá em casa não perdemos "O Conta-me como foi", que sendo comédia retrata belissimamente as características daquela época, que nós os dois ainda recordamos e o filhote olha pasmado para certos pormenores. Tive de lhe explicar o que é que a senhora que apanha malhas fazia, por exemplo, que ele não estava a perceber...
Da Guerra de Espanha não te lembras de certeza, mas na memória ficaram sim pessoas que passaram por ela e se refugiaram cá no nosso país, muitas delas para ficar!
Tem um dia BOM!
Mesmo nos meus momentos mais difíceis consegues prender-me com a tua escrita. Li, quase sem pestanejar, este texto sentido. Não resisto em agradecer-te por conseguires prender-me com a sensibilidade que imprimes ao que escreves.
Logo vou tentar voltar para continuar a ler...
Bjnh
Escrever porquê e para quê?
São perguntas que faço a mim próprio todos os dias , ainda não sei porquê, volto a escrever. Amanhã perguntarei_ escrever porquê e para quê?
Um beijo Dulce. Escreve e não te importes para quê.
João Norte
As fotografias é que têm razão.
Elas perpetuam-nos como nós gostaríamos...
Escrever sobre o quê? Terá mesmo de haver um quê para se escrever? Escrever é dar sentido ao que pensamos.
Um beijo. Augusto
Desculpa o meu estar ausente... Mesmo ausente sabes que estou... Sempre! Bj.
Olá vejo que continuas em grande forma! Vim cá dar um alô rápido para que não te esqueças que eu existo. Tenho andado fora mas volto dentro de alguns dias:
Um beijo
Jorge
*
Escrever sobre o quê?
Amanhã ... escrevo amanhã!
*
e eu espero,
porque colherei,
mais uma pérola,
*
j
*
Afinal escreveste tanto e tão bem!
Hoje mesmo!
Quantas vezes se fica assim, sem saber que escrever, com a mente cheia, atulhada...
Bjs
Dulce,
escrever o quê?
se eu escrevesse assim tão lindamente como tu, juro que procurava quem me ajudasse a arranjar uma editora.
Vá lá... arriba menina, a vida está aí, não espera por nós...
Beijinhos
É um gosto enorme ouvir-te e sentir-te mesmo quando "não escreves" :)))
Um beijinho grande
olá menina parabens pelo texto, lindo.
bjs
E nesse vai vem, o mundo, lentamente, avança.. Na tua cabeça uma revolução, um nunca acabar de procura..Linda a tua prosa poética..Parabéns, bom fim de semana.um abraço, ell
Não vivi esse tempo, pelo que apenas posso apreciar a linda forma como o descreves. Estou com o anónimo, Dulce: à espera que o teu livro chegue orgulhoso à minha mesa de cabeceira.
Já viste a fluência que tens? A beleza do que escreves? Só precisas de pegar na caneta, ou no teclado, e escrever. Já está. Mesmo sem quereres, escreveste. E deixaste-nos a todos com pele de galinha.
QUEREMOS UM LIVRO QUEREMOS UM LIVRO QUEREMOS UM LIVRO!! =)
Eu sei. Já me habituei. Aqui as palavras embrulham-se em nostalgias e quase sempre encostadas na dobra do fim de uma longa tarde. É verdade. Tal como, amanhã, a madrugada trará o sol...
abraço.
Estás bem, Dulce? deixa-me contar-te um segredo:
Tu não és daquelas pessoas que precisem de capacidade para escrever. Essas sentam-se a uma mesa com papel e lápis, coçam-se, olham para o papel, esfregam-no para apreciar uma rugosidade, voltam a coçar-se, vou escrever sobre quê?, fazem uns rabiscos, partem o bico do lápis, tentam lembrar-se de ideias giras, aquela muita engraçada quando vinha a conduzir na segunda circular à hora de ponta, vou fazer um chá, telefono à Mena?, bem, vou escrever para quê?
Tu não: deixas-te apossar pela escrita e as palavras escorrem dos teus dedos para o papel, nem consentes, nem contrarias, és apanhada na esquina das horas, é todo um polipeiro de imagens e sensações à tua roda que se colam à rua pele, aos teus olhos, à tua boca, se insinuam pelos poros e vão comandar os movimentos da tua mão. A obra cresce, as ogivas erigem-se em espiral para se encontrarem no infinito, rasgam-se vitrais, é o toque dos carrilhões e o estardalhaço do fogo de artifício. A catedral fica e lentamente adensa-se nas brumas que a ocultam
Quando te dás conta de ti, exausta, dizes: hoje não, não sou capaz! Amanhã.. escrevo amanhã!
Olá Dulce, lindo o reu texto.
Adorável!!!!!!!!!!!!
Beijinhos,
Fernandinha
O amanhã chega com novos rumos, novos sentidos.
E, desejo eu porque (re)conheço ainda as palavras, tenho tanto para ler... de ontem!
Um beijo, amiga
Tu escreves.
Escreves coisas lindas que eu gosto de ler.
Escrever sobre o quê, perguntas-te.
Escreve, escreve apenas “o que os teus olhos vêem”, escreve para mim, para nós, que gostamos da tua escrita.
Beijitos
*
passei aqui
*
bji
*
:)
Passei...
Deixo um beijito.
Obrigado pelo doce delicioso que nos ofereceste.
Um beijo
Jorge
http://vagabundices.wordpress.com/
Como o entendimento. Depois da pele, o pêlo do gato no colo. Obg Dulce, pela partilha que é sincera. Sabes? Ajuda saber que há pontas, longe, mas iguais. Bjs
Voltei a ler este texto... =)
E mantenho a minha opinião inicial. Agora que está mais que na hora de ir para o colchão e para o edredon, gostava de jogar a mão ao lado e apanhar um livro teu. =) não estou a brincar. Escreve um livro. Tu consegues. Tens o talento mais que suficiente e mais que necessário.
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