sábado, março 15, 2008

O resto da viagem

"Oh sr. padre! escreva aí num papelinho as rezas que eu tenho que fazer ... já estou velha ... e depois esqueço-me de tudo ..." Isto foi a velhota dizendo enquanto atravessava a sala em direcção ao velho padre que se encontrava sentado à secretária. Do outro canto da sala o funcionário do Paço Episcopal perguntou-lhe a idade e ela foi respondendo com voz trémula, "já conto oitenta e um". Sorrindo, o funcionário foi-lhe dizendo, "então mais velho é o senhor padre que já conta oitenta e seis... e está aí são como um pêro!!"
Foi aí que levantei a cabeça até então mergulhada nos velhos livros. A velhota era baixa e franzina. O lenço na cabeça deixava a descoberto alguns cabelos grisalhos, e nas mãos engelhadas transportava um pequeno saco de plástico. A voz, já eu a ouvira quando começara a pedir as rezas num papelinho. Chegara há um quarto de hora e apenas a ouvira dizer ao padre que se queria confessar. O padre, de cara redonda e óculos encavalitados no nariz, de boa vontade se levantou, e com passinhos miúdos atravessou a sala em direcção ao interior do Paço. Uns minutos depois voltara e de novo se sentara na secretária ao lado da minha. Com um jornal aberto sobre a mesa vi-o que se debruçava atento numa qualquer leitura.

Este espaço parecia perdido no tempo ...

Voltando um pouco atrás, há que dizer que esta é outra cidade - desta vez Lamego - onde cheguei ontem ao fim da tarde. A subida de Guimarães até Vila Real quase me fez perder a respiração ... Eu, e até a estrada, éramos peças minúsculas do terreno que nos rodeava. Ali, tudo é em grande. Do lado direito de quem sobe, declives quase a pique mergulhavam o olhar em vales sombreados de verde. Aqui e ali pequenos agrupamentos de casas lembravam peças de um Lego deixadas ao acaso. Na vertente da montanha sucediam-se os degraus bem alinhados tão característicos desta zona. (Que pensaria um alienígena se os visse do céu?) Depois, passada uma eternidade, iniciou-se a descida. A cidade, vista de passagem, não me deixou memórias. Outra subida se iniciou depois, para de novo se voltar a descer. A Régua recebeu-me, reflectindo no Douro o sol de um belíssimo fim de tarde. Passando a ponte, aguardava-me o meu destino final. Era cedo ainda quando Lamego me recebeu e num primeiro passeio, fui tacteando os sentires de uma cidade que não conhecia. Com o período pascal a aproximar-se a passos largos, Lamego já se mostrava engalanado para o efeito. Nas alamedas e jardins, o inúmero colorido das flores mostrava o quanto a Primavera está tão próxima. Enquanto procurava um local para jantar deixei que os passos se perdessem entre ruas e ruelas num fim de tarde surpreendentemente morno e apetecível. Lá do alto da escadaria, o Santuário surgiu como um apelo, e ao virar uma esquina surpreendo-me com a imponência da velha Sé.

A noite insinuava-se já quando resolvi voltar.
Depois de uma noite bem dormida, havia trabalho a fazer no Paço, exactamente no local que referi no início destas memórias de uma viagem. Lá dentro, as velhas pedras não deixavam passar o calor do sol , e apenas assomando à imensa janela que dava para o jardim se recuperava um pouco do aconchego que fazia falta.
A velhota não sentiu concerteza o desconforto da velha casa. Foi à procura de outra coisa. De palavras. De compreensão. De alguém que a ouvisse.
Depois ... com o papelinho bem dobrado na sua mão fechada, lá foi ... passinho miúdo e costas curvadas ... enfrentar o resto de mais um dia.

17 Comments:

Blogger Zé-Viajante said...

...e a zona de Trá-os-Montes é linda. Rude e pura. Sabe bem lá estar.

10:19 da manhã  
Blogger José said...

O interregno valeu!
Ou então era mesmo a falta das tuas palavras.
Bom, estas viagens também ajudam a ter tema.
Mas uma coisa é certa, cada vez a tua escrita é mais linda.
Podes vender a máquina fotográfica e viajar mais, com a condição de nos relatar estas cenas do quotidiano.
Beijinho doce

10:51 da manhã  
Blogger Ana Fundo said...

Estás a ficar uma verdadeira Mestra em descrição :-)
Fizeste-me lembrar "As Viagens na Minha Terra".
Beijos grandes e até logo
Ana

11:40 da manhã  
Blogger Vb said...

Olá! Gostei de chegar aqui e encontrar novidades. Também tenho andado um pouco arredado das lides bloguisticas.
Fiquei a pensar no teu texto sobre a genealogia...É que tenho a minha árvore feita até aos trisavós, mas a partir daí ainda não consegui avançar. Fi-la com base em certidões de nascimento pelo que penso que não será demasiado complicado avançar mais um pouco...quem sabe??
Beijinho para ti!

8:54 da tarde  
Blogger Su said...

gostei de saber de ti
gostei de ler.te
sentir.t.

bela foto , a do manuscrito


jocas maradas de sentires

9:28 da tarde  
Blogger wind said...

Excelente como sempre a tua prosa:)
Descrições ao pormeor de sentires e lugares:)
Beijos

9:55 da tarde  
Blogger poetaeusou . . . said...

*
revi,
o dourado douro,
das uvas douradasm
,
conchinhas douradas
,
*

3:33 da tarde  
Blogger Kalinka said...

Amiga Dulce

Há quanto tempo!!!

Hoje, dia 20 a minha prioridade é fazer um post sobre o 3º aniversário do «kalinka».
Não agora, mas...
mais logo convido-te para uma pequena festinha, onde vou reunir os «amigos» que fiz ao longo destes 3 anos de partilha.

Beijinhos.

1:16 da manhã  
Blogger augustoM said...

Olá Dulce
Boa Páscoa
Um beijo. Augusto

7:17 da tarde  
Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

Começo pelo fim já que não disponho agora o tempo necessário para começar pelo todo. Impressionantes estas viagens na nossa terra!

A velhota já era velhota de 81 desde que a catedral de Lamego começou a ser catedral. Está ali em todas as eras a provar como a ruína do tempo se prolonga na eternidade. Eu vi-a em Lamego, na Guarda, em Lisboa. É a gente românica do povo encalhada nas rugas do espaço-tempo. Lamego é de uma beleza indescritível. Come-se bem e, de um modo geral, o vinho é bom. Para mim tem sido uma terra boa para descansar nas férias e uma rampa de lançamento para espectaculares passeios ao longo do Douro. Revejo-a na tua escrita que continuo a achar de uma estranha e consoladora qualidade.

É bom ler-te.

1:31 da manhã  
Blogger H. Sousa said...

Reforço a opinião do último comentário, escreves muito bem e isso não pode ficar assim... só em blog. E não é só o escrever, é ter sobre o que escrever que é o mais difícil.
Boa Páscoa!

12:46 da manhã  
Blogger luis manuel said...

As viagens, ao ritmo do gosto pelo ofício...
E não são apenas feitas por estradas, dessas de alcatrão mais ou menos sinalizado.
São muitos caminhos, feitos até como o olhar, apenas.
Muitas vidas, dos outros, para em cada paragem reviver as próprias.
E como sabes valorizar cada pausa ... !
É mesmo justo... "para além de mim" estão tantos outros.

Eu, afortunado pelo acaso, fiquei próximo. E assim quero continuar.
A viagem desejo longa...

Um grande abraço, amiga.
Santa Páscoa

11:01 da manhã  
Blogger Aldina Duarte said...

Porque renascer também é da nossa condição humana, páscoa feliz!


Até sempre

9:04 da tarde  
Blogger Kalinka said...

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Votos de PÁSCOA FELIZ.

AMIGA DULCE

Beijinhos de estima.

10:12 da tarde  
Blogger YTMO said...

...por falta de tempo, não tenho passado por cá. Mas é sempre reconfortante ler-te. Faz-me bem "parar" aqui... antes de seguir as minhas viagens.

Bjs. Dulce

9:52 da tarde  
Blogger perplexo said...

As cidades de granito parecem acabadas de regressar do passado.
Bj

3:41 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Lindo, simplesmente lindo.
Faz-me bem ler o que escreves, pena é que temporariamente tenho menos tempo para “viajar contigo” pelas tuas letras.
Beijitos

3:47 da tarde  

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