Rua 1º de Dezembro
A Rua 1º de Dezembro, na baixa lisboeta, é uma rua sem grande história para mim. Uso-a apenas como passagem para a Rua do Carmo e para o Chiado que se inventa cada dia mais bonito, cada dia mais feliz. Nada me detém ali. Nem as lojas de filatelia onde em criança ía com o meu pai comprar selos para a minha colecção que agora jaz no fundo de um qualquer caixote, nem sei muito bem onde, nem o imenso supermercado de produtos naturais que oferece curas milagrosas para a queda do cabelo e para a celulite, nem a entrada íngreme para o Café Nicola onde prefiro entrar pela porta soalheira que dá para o Rossio, nem as sapatarias, nem os músicos de rua que entre cães e garrafas de vinho, abrem sorrisos à esmola de quem por lá passa.
Na semana passada, os meus passos apressados calcorreavam-na como sempre, como se ali já não estivessem, quando uma cena me fez estacar o passo e a respiração. Sentado quase à porta do "Celeiro" um pedinte negro de idade incerta bebia vinho tinto e cantava uma canção qualquer sobre felicidade que lhe dava um ar ainda mais miserável do que se entoasse canções de tristeza e amargura.
Emocionado pelo canto tão angustiado daquele homem de barba por fazer, outro pedinte que conheço há muitos anos dos meus constantes passeios ao Chiado, acercou-se do homem, baixou-se, disse-lhe uma ou duas palavras inaudíveis para mim e fez que se ía afastar.
Mas o homem de tez escura não parava de cantar e não parava de cantar aquela canção tão triste que falava de felicidade. Então, o outro pedinte que já ía para se afastar na mira de encontrar a generosidade de alguém que lhe desse mais umas moedas, voltou atrás, meteu a mão no bolso das calças, tirou de lá as moedas que tinha, algumas castanhas, mas também muitas amarelas, e enfiou-as no chapéu do mendigo-cantor. Só depois se afastou.
O homem de barba por fazer há tantos dias nem se mexeu. Continuou naquela toada que só ele mesmo podia escutar. E o outro já ía longe, indiferente ao seu gesto generoso já quase não se via, na pressa de recuperar o dinheiro que a sua emoção atirara para o fundo do chapéu que repousava sobre a calçada da Rua Primeiro de Dezembro, rua a que eu nunca dei a menor importância.
Este pedinte generoso não é português. Sempre que se me dirigiu, fê-lo em língua estrangeira, mas tornou-se irmão daquele português que cantava na rua, tornou-se meu irmão...
Quantas vezes lhe neguei esmola? ... Quantas vezes vi negarem-lhe esmola?... Por pressa ... Por desleixo ... Porque o dinheiro poderá ser usado em droga ou em álcool ... O que é que nós temos a ver com isso? ... As dependências que possa ou não ter são problema dele. O meu é não virar as costas a quem pede ajuda. Se quem pede me estiver a enganar, isso é um problema que ele e a sua consciência terão que tratar. E, se calhar, o dinheiro que eu não dei porque imaginei que fosse para a droga, era apenas para partilhar com o pedinte negro que canta uma canção angustiada sobre a felicidade.
Na Rua 1º de Dezembro. Uma rua com grande história para mim!
Tiago Torres da Silva, "Manhãs de Insónia", in Jornal de Letras, de 24-6/06/2006, p.40
Na semana passada, os meus passos apressados calcorreavam-na como sempre, como se ali já não estivessem, quando uma cena me fez estacar o passo e a respiração. Sentado quase à porta do "Celeiro" um pedinte negro de idade incerta bebia vinho tinto e cantava uma canção qualquer sobre felicidade que lhe dava um ar ainda mais miserável do que se entoasse canções de tristeza e amargura.
Emocionado pelo canto tão angustiado daquele homem de barba por fazer, outro pedinte que conheço há muitos anos dos meus constantes passeios ao Chiado, acercou-se do homem, baixou-se, disse-lhe uma ou duas palavras inaudíveis para mim e fez que se ía afastar.
Mas o homem de tez escura não parava de cantar e não parava de cantar aquela canção tão triste que falava de felicidade. Então, o outro pedinte que já ía para se afastar na mira de encontrar a generosidade de alguém que lhe desse mais umas moedas, voltou atrás, meteu a mão no bolso das calças, tirou de lá as moedas que tinha, algumas castanhas, mas também muitas amarelas, e enfiou-as no chapéu do mendigo-cantor. Só depois se afastou.
O homem de barba por fazer há tantos dias nem se mexeu. Continuou naquela toada que só ele mesmo podia escutar. E o outro já ía longe, indiferente ao seu gesto generoso já quase não se via, na pressa de recuperar o dinheiro que a sua emoção atirara para o fundo do chapéu que repousava sobre a calçada da Rua Primeiro de Dezembro, rua a que eu nunca dei a menor importância.
Este pedinte generoso não é português. Sempre que se me dirigiu, fê-lo em língua estrangeira, mas tornou-se irmão daquele português que cantava na rua, tornou-se meu irmão...
Quantas vezes lhe neguei esmola? ... Quantas vezes vi negarem-lhe esmola?... Por pressa ... Por desleixo ... Porque o dinheiro poderá ser usado em droga ou em álcool ... O que é que nós temos a ver com isso? ... As dependências que possa ou não ter são problema dele. O meu é não virar as costas a quem pede ajuda. Se quem pede me estiver a enganar, isso é um problema que ele e a sua consciência terão que tratar. E, se calhar, o dinheiro que eu não dei porque imaginei que fosse para a droga, era apenas para partilhar com o pedinte negro que canta uma canção angustiada sobre a felicidade.
Na Rua 1º de Dezembro. Uma rua com grande história para mim!
Tiago Torres da Silva, "Manhãs de Insónia", in Jornal de Letras, de 24-6/06/2006, p.40
8 Comments:
Una historia bonita y llena de generosidad.
Tiens mucha razón Dulce. Cada cuál haga de la limosna su razón de administrarala. Allá su conciencia. Lo importante es no dar la espalda a quiénes lo necesita.
Un beso.
Grande lição de solidariedade que nos dá este texto. beijos
Sim, sou da mesma opinião. Parece um texto da tua autoria.
Muito bom mesmo.
Beijos
Ana Paula
Sem palavras. Comoveu-me imenso. Belo. Beijos, Dulce.
"...que canta uma canção angustiada sobre a felicidade."
A nossa maior riqueza está em saber dar...
Beijinhos
é verdade quantas negamos a escola com a desculpa q é para a droga ou para o pai ou para o amante e afinal a esmola foi para outro ...pedinte.
~
Ontem , á porta de um super qualquer estava uma mulher esquálida, cara de fome , olhos de lágrimas disfarçadas, sofridas. ..
Não parecia pedinte.
Quando já estava a arrumar as compras veio ao pé de mim e pediu-me se podia ir arrumar o carrinho
olhei-a nos olhos. perguntei-lhe se queria leite pão fiambre...e o seu rosto iluminou-se. Quiz saber o meu nome e a medo sussurrou um se a dona I. fizesse confiança ela preferia ir comprar as coisas. Porque bebia muita água e precisava de entrar no superm para ir à casa de banho.
Os olhos encheram-se de luz e sorriram para mim agradecidos qd lhe entreguei o dinheiro. Fiquei a ve-la empurrar o carrinho das compras e entrar a porta automática...
Era dia da Criança, ontem!!
Tem um bom dia.
queria dizer a esmola e não a escola...
olá dulce:
obrigado por publicares o meu texto.quanto mais gente o ler, melhor porque o que interssa mesmo é que o mundo seja melhor.
um abraço
tiago torres da silva
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