sexta-feira, junho 30, 2006

...

A minha esperança mora
No vento e nas sereias -
É o azul fantástico da aurora
E o lírio das areias.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, "Mar", Caminho, Lisboa, 2001, p.36

quinta-feira, junho 29, 2006

Lusitania Comboio Hotel


Este é o meu "sítio para pensar". De manhã quando o sol aqui bate de frente, até os velhos bancos de madeira riscados e pintados com frases de amor e outras menos doces, se tornam acolhedores. Escolho sempre o mesmo banco. A nesga de rio ao fundo vai mudando conforme os dias - mais cinzenta ou mais azul. Hoje pode até ver-se uma tira de areia amarelada a debruar o rio. Aos meus pés o relvado, onde a esta hora as máquinas de aparar relva ainda trabalham.
Sento-me e cruzo as pernas e distraio-me a olhar o meu pé que, de sapatos de salto e unhas pintadas até parece mais bonito.
Penso no fim do dia de ontem. Penso naquele comboio com que sempre me cruzo e que tanto me atrai. O Lusitania Comboio Hotel. Lisboa-Madrid com partida de Santa Apolónia todos os dias às 22,10. Viaja toda a noite.
Quando passo ao seu lado ainda ultimam os últimos preparativos. Já há gente que espera sentada nos bancos da estação. As malas espalham-se pela gare.
Olho sempre para dentro da carruagem-restaurante. As janelas baixas descobertas, mostram um interior acolhedor. Pequenas mesas alinham-se junto às janelas, encimadas por pequenos candeeiros. Imagino as outras carruagens que não consigo ver - com os seus beliches - e sempre penso que me apetecia comprar o bilhete naquele momento, e partir.
Como eu adoraria fazer aquela viagem. Mesmo só. Jantar ali naquelas mesas enquanto sentia a paisagem enegrecida a passar velozmente ao meu lado.
Deitar-me naqueles beliches e sentir a trepidação suave provocada pelo andamento do comboio. E sonhar. Sonhar com outra vida. Com outras paragens. Com um reinício. Sonhar é percorrer outros lugares. Viajar também. Pode-se viajar, sonhando. Pode-se sonhar, viajando. Uma simbiose perfeita.
Depois acordar pela madrugada e ainda deitada, ficar a ouvir os ruídos do comboio enquanto galga os quilómetros que ainda faltam. Espreitar pela janela e agora já o dia nascido, poder ver uma nova-mesma paisagem.
Um dia vou fazer aquela viagem. Um dia vou entrar naquele comboio e partir.

(Foto em www.trekearth.com)

quarta-feira, junho 28, 2006

Manhã

Finalmente deito-me. Meia-noite e meia. Deixo ficar a luz acesa enquanto respiro controlada e pausadamente. Tento encontrar o equilíbrio e a paz necessários ao sono. Antes de apagar a luz olho mais uma vez o telemóvel. Verifico se há mensagens ou chamadas não atendidas. Verifico pela sétima vez a hora do despertar.
Tudo em ordem.

(E o ...)

Quando dou por mim de novo, é ainda madrugada. Sem abrir os olhos sinto a não presença da luz e o silêncio da rua. Que horas serão? Não, não vou olhar o relógio. VIro-me para o outro lado e tento encontrar uma posição confortável que me traga de novo o sono.
Será que são quase horas de me levantar? Desfilam no pensamento as imagens das próximas horas.
Volto-me de novo na cama e inspiro profundamente.
Não sei quanto tempo depois reconheço-me de novo acordada. Desta vez vou ver as horas. Abro os olhos e vejo a luz tímida da madrugada que passa através dos cortinados. Jogo a mão ao relógio e, sem acender a luz, procuro a inclinação necessária para conseguir ler o mostrador. 5,20. Faltam dez minutos. Enrosco-me e procuro o aconchego macio da cama. Já não vale a pena tentar adormecer. Não conseguiria. Aproveito os últimos minutos para relaxar.
5,30. Salto da cama ao primeiro bip. Virada para o espelho e já sentada na cama esfrego os olhos e espreguiço-me. Já passa mais luz através da janela. O dia nasce.
Passo da inércia da espera para a contagem decrescente em movimento. O banho. Os últimos preparativos. O pequeno almoço. O dia já clareou definitivamente. Mala ao ombro, abro a porta e saio para a rua. Com o café tomado sinto-me bem melhor.

(E o ....)

Agora os transportes. Autocarro. Barco. Táxi. A compra do jornal faz parte da rotina. Desta vez o Diário de Notícias e mais um café no sítio do costume. Percorro agora - o bilhete comprado - os derradeiros metros de gare que me levam até à minha carruagem. Entro e acomodo-me.
7,30. O relógio da estação do meu lado direito avança penosamente para o seu limite.
Recosto-me. Tiro o discman da pasta mas ... ainda não me decido a ligá-lo.
7,45. O comboio vai cheio desta vez. Há gente que entra procura o seu lugar e se acomoda. As vozes, ouço-as em surdina. O comboio estremece e olho o relógio pensando que vai arrancar.
7,50. AInda não. Algum ajuste apenas. Fixo por momentos o ponteiro vermelho dos segundos. O seu movimento é seguro e calculadamente ritmado. Perco-me por instantes naqueles pequenos passos saltitantes que executa com uma determinação maquinal.
53 ... 54 ... 55.

(E o ...)

terça-feira, junho 27, 2006

...



"....Mwadia fechou os olhos e a si mesma se acariciou. E sonhou que as mãos que percorriam o seu corpo eram as do burriqueiro, ante o olhar atento do asno Mbongolo. Então, cumpriu-se o destino daquela terra de miragens: o pastor a teve, toda ela um gemido na tempestade das suas mãos, No final, o homem beijou-a como se faz nas cidades, nos filmes, nos livros. Mwadia suspirou, em suave murmúrio:
- Eu hoje estou muito eterna."

COUTO, Mia, "O outro pé da sereia", Editorial Caminho, Lisboa, 2006, p.44

(Foto em www.trekearth.com )

segunda-feira, junho 26, 2006

Nós 2

pedes para eu te ensinar a esperança
e eu digo-te
que, apesar das secas e das inundações,
não podemos deixar de semear os campos
para fazer crescer.

pedes para eu te pintar o amor
e eu dou-te uma folha em branco.
porque o branco é a soma de todas as cores
e numa folha vazia
tu poderás pintar o que quiseres.

pedes para eu te contar histórias da terra
com os olhos da lua
e eu conto-te histórias
dos meninos com esperança
que nunca deixaram de semear o amor.

pedes que eu fique contigo para sempre,
eu digo que sim,
e tu acreditas sem pestanejar,
ensinando-me a beleza e a força da confiança
que procuro.

Eu não te peço nada
e tu dás-me tudo.

Ana Teresa Silva, in "Tantas mãos, a mesma Primavera", Oficina do Livro, p. 68

domingo, junho 25, 2006

Amigo ...

... foi um Blogstício animado e cheio de gente bonita. Bonita por dentro claro, que é o que mais importa.
Disseram-me que éramos 31 à mesa. Parece que houve uma ou outra desistência de última hora - já sabes que são coisas que acontecem ... O espírito do grupo porém, estava elevado.
O ponto de encontro - o mesmo do primeiro jantar em que estive presente - trouxe-me à memória esse dia. Vi-te de imediato reconhecendo-te pela foto do MSN. Ao teu lado sentava-se a Paula - aqueles olhos brilhantes e felizes vestidos de azul.
Ontem a mesa era outra e tu não estavas lá, mas o grupo era quase o mesmo. É bom rever todos em cada novo encontro.
A Paula sempre presente reflectindo-te num olhar espelhado de azul.
O Augusto e o Firmino - os teus companheiros na organização - de quem aprendi a conhecer e a gostar à medida que vamos trocando palavras.
A Júlia, um verdadeiro furacão no uso da palavra e do gesto.
A Lazuli - discreta, amável e me parece com uma ternura à flor da pele.
A Fátima que pouco conheço ainda mas em cujo olhar surpreendo a perspicácia.
O Perplexo - um sorriso sempre presente num olhar que continua tímido.
O Alexandre - olhos pequeninos e aquela postura de cabeça semi-inclinada com um assomo de meio-sorriso nos lábios.
O Ilídio que vou conhecendo aos poucos.
A Isabel, minha leitora assídua, que gostei tanto de reencontrar, e outros amigos que gostei de rever mas com quem ainda troquei poucas palavras.
O Friedrich e o seu olhar sempre muito atento.
A Isabel do Piano que esteve sentada perto de ti no último jantar a que compareceste.
No topo da mesa, a tua família mais chegada.
As conversas fluiram facilmente. Acho que todos sentíamos a tua falta, sentindo-te no entanto ainda bem presente. Falámos de ti. Lembrámos como foste importante para solidificar esta nossa relação. Lembrámos como o és ainda para motivar e perpetuar estes nossos encontros. Saudámos-te como se ainda ali estivesses presente. E quem sabe se estiveste mesmo ... circulando à nossa volta, conversando com um e com outro. A tua camisa e calça preta e os teus olhos pequeninos e brilhantes saltitando de um rosto para outro. Abraçando carinhosamente cada um de nós. Sorrindo o teu sorriso doce e estendendo as mãos num gesto fraterno.
Presentes estiveram também sem o estarem, o Luís Manuel, o António Afonso, o Travessias, o Zeca ... que tanto gostariam de ter lá estado.
Em Setembro voltamos. Eu e os outros. E tu também, espero. Sempre no nosso coração.

sábado, junho 24, 2006

Manhã de praia

Nesta esplanada de praia abrigo-me do vento que sopra desagradável.

(No rádio, "Hotel California")

Poucas mesas ocupadas e quem nelas se senta lê o jornal pacatamente, ou um livro, ou simplesmente olha o mar em frente.
No passeio que corre junto ao areal há sempre gente a passar. Devagar, conversam, param, olham o mar, retomam o andamento.
A maré já subiu mais um pouco desde que aqui cheguei. Hoje, o meu primeiro dia de praia deste ano. Às 9 horas já olhava o mar, desconfiada com este tempo que me surpreendeu hoje. Céu carregado de nuvens e uma aragem fresca. Azar o meu que gosto tanto de sol. Apenas descobriu durante meia hora para voltar a cobrir-se de nuvens.
Na areia macia que aconchegava o corpo ainda permaneci umas duas horas. O rumorejar das ondas encheu o meu pensamento.

("Frozen" toca agora no rádio)

A aragem fresca não deixava sentir o pouco calor que se filtrava através das nuvens. Os pensamentos tinham tendência a diluir-se numa sonolência crescente.
Passei as mãos na areia macia para desfazer as pequenas pegadas das gaivotas. Enchi as mãos de areia e deixei-a esvair-se por entre os dedos, lentamente.
Depois sentei-me agarrada aos joelhos a olhar o mar e ali fiquei até a posição se tornar desconfortável e o frio se entranhar na pele.
Desloquei-me então para esta esplanada onde agora escrevo. Abrigada do vento, pude aquecer de novo enquanto tomava o meu segundo café do dia.
Daqui vejo bem o mar e ainda oiço aquele seu som reconfortante. A minha pele cheira a protector solar e esse cheiro lembra-me outros Verões. Não mais felizes, mas como sempre, vividos em pleno. Esta sensibilidade excessiva que me domina agora, leva-me a sentir cada coisa de forma redobrada.
O Verão é sempre uma época de renovação para mim. O Sol revigora o meu corpo como necessito, direi mesmo que "carrego as minhas baterias". É como que uma injecção de vida. Rejuvenesço interiormente uns anos.
Diria até que renasço.

sexta-feira, junho 23, 2006

Da saudade ...

Diz Florbela Espanca:

"Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga"

e ainda ...

"Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapar'ceu

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei ... tacteio sombras ... Que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!"

Diz-se "morrer de saudades". Diz-se "morrer de amor". Liberdade poética ou a voz sensata do povo?
Num país onde a "saudade" é uma palavra com significado, este sentimento pode ser facilmente exacerbado. A saudade é exaltada pelos poetas e cantada pelos trovadores.
A saudade não é uma palavra vã.
A saudade corrói, estiola e destrói toda a felicidade. O bom senso não é eficaz para a debelar. As justificações lógicas não são suficientes para a explicar.
Quando a saudade aperta, o coração oprime-se - comprimido dentro de um punho bem fechado.
Quando a saudade aperta todos os pensamentos são canalizados e reduzidos apenas a um.
Quando a saudade aperta é impossível pensar sensatamente, agir correctamente ou viver racionalmente.
Quando a saudade aperta os diques que controlam as emoções descontrolam-se, abrem as comportas, e são ondas sucessivas de mágoa e dor que nos submergem, impedindo-nos de vir à tona.
"Morrer de saudades" faz assim todo o sentido. Não é apenas uma liberdade poética. Não é apenas a voz do povo.
É a persistência em nós de um sentimento que nos derruba, que debilita e destrói todas as nossas resistências.

De novo Florbela diz:

"Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!"

quinta-feira, junho 22, 2006

Uma janela frente ao mar

Texto retirado

quarta-feira, junho 21, 2006

Desligada


Páro neste limbo que é só meu.
Pouso o olhar no verde sem o ver.
Olho como se o verde fosse o azul, como se a erva fosse o mar.
Ele não está lá. Imagino-o apenas. Nâo, nem isso. Isso dá muito trabalho. É um esforço desnecessário.
Quero parar apenas. De pensar. De ver. De ouvir. De viver, até.
Como um "robot" que se desliga. Os movimentos suspensos.
Como uma máquina que se quer parar.
Como quem dorme.
Como quem hiberna.
Como quem morre apenas por momentos. Apenas por umas horas.
Suspender tudo. Poder parar.
Desligar-me.
Fechar os olhos, os ouvidos e o pensamento. Especialmente o pensamento.
Desligar a vida e ficar do outro lado. Quieta. Protegida.
Ou desligar a vida e ficar ali, apenas.
Sem que me vissem. Sem que me ouvissem.
Sem ver. Sem sentir. Sem pensar.
Desligada.
Des-li-ga-da.

(Foto em www.trekearth.com)

terça-feira, junho 20, 2006

Ainda ontem ...

Procurei a noite para esconder a tristeza.
Procurei o silêncio para calar o grito.
Saí de casa para poder ser Eu.

As cortinas vermelhas translúcidas confessam segredos.
Os rostos anónimos ignoram o lamento.
O silêncio não existe.
A noite não esconde.

Saí de casa para poder ser Eu ... mas se o grito não sai e se a tristeza persiste, de que serve ser noite? para quê o silêncio?

Acredito que um dia a noite vai ser doce e o silêncio uma carícia.
Acredito que um dia ...
Acredito que um dia o silêncio e a noite se unirão num só grito. O nosso.



Hoje. Recordações.

Ele sentava-se no lugar do costume. Uma poltrona coçada ao lado da secretária.
Sempre invejei aquela secretária. Ainda hoje lamento não ter ficado com ela após a sua morte. Naquela altura, e talvez por ser ainda pequena, parecia-me enorme. De madeira escura com puxadores de um dourado antigo. Sobre o tampo, um vidro. Sempre alguma confusão de papéis, pelo menos assim recordo. Sob o vidro que a protegia, um pequeno recorte de papel com um poema. O "Cântico Negro" de José Régio.
Entre a secretária e o cadeirão, um candeeiro de pé antigo. Lembro o "abat-jour" amarelado com franjinhas e a corrente pendurada que servia para o acender. É engraçado como recordo claramente o seu gesto. O seu gesto e a sua expressão quando, baixando-se ligeiramente, olhava de lado, por baixo do "abat-jour" à procura da corrente que o acendia.
Como a memória é selectiva ... Esqueci porventura coisas importantes, e recordo com espantosa nitidez a sua expressão mil vezes repetida quando acendia o candeeiro da sala.
Sentava-se todos os dias ali naquele cadeirão para ler o jornal ou ver a televisão que se encontrava do outro lado da sala.
O meu lugar era normalmente em frente, sentada num pequeno banco de campismo ali colocado concerteza apenas aos fins de semana, os únicos dias em que eu lá me encontrava. Era um daqueles bancos com assento em lona, azul às riscas e pés metálicos, que se pode fechar e arrumar a um canto quando já não faz falta. Era ali que me sentava para ver, aos sábados à noite, a minha série favorita - Bonanza. Naquele cantinho, encostado ao "móvel do relógio". Para mim era o "móvel do relógio". Um armário alto e escuro de duas portas sobre o qual estava um relógio de mesa daqueles antigos, ainda de corda. Era de caixa quadrada de ponteiros escuros trabalhados e numeração romana, daqueles que batem as horas com um som metálico. Hoje é meu e ainda trabalha. Ele adorava relógios. Mais tarde ainda adquiriu um de chão, enorme, que tocava as Avé-Marias.
Também eu herdei a mania dos relógios. Não de pulso mas antigos, de mesa e de parede.
Naquele dia porém, não me sentara no meu cantinho. Ocupava o sofá amarelo de dois lugares, no sítio mais afastado do cadeirão. Junto a mim sentava-se a filha de uma amiga dele, um pouco mais velha que eu. Eu teria 7 ou 8 anos, ela 10 ou 12. Víamos televisão quando ela se levantou do seu lugar e se foi instalar nos seus joelhos. Ele aconchegou-a no colo colocando-lhe o braço por detrás das costas e ali ficou um bocado a conversar, a brincar e a ver televisão.
Porque guardamos nós certas memórias quando preferíamos esquecê-las? Esta, tão breve, tão insignificante - um momento apenas - dois minutos da minha vida e há tantos anos já, permanece para mim com enorme nitidez. E tudo porque eu sei que olhei para aquela cena e pensei - lembro-me perfeitamente que pensei - que não era capaz de uma atitude semelhante. E aquele era um gesto de filha. E era eu a sua filha. Eu, que nunca seria capaz de o fazer.
Fiquei ali no sofá amarelo de dois lugares, bem encostadinha ao extremo mais afastado, tentando desviar os olhos de ambos.
Um gesto tão simples. Uma mágoa que perdura até hoje.

segunda-feira, junho 19, 2006

Grito

Este nó ... esta tristeza que sobe em ondas ... e que quando me assola a garganta, torna difícil pensar, calar, guardar.
Gritar. Gritar bem alto, não para que me ouçam, mas para soltar nesse grito, toda a angústia - toda a mágoa.
Ou dar pontapés.
Ou dar um murro a qualquer coisa. Para que me magoe e para que o grito saia mais forte, mais profundo, mais alto e mais verdadeiro.
Ou chorar apenas. Chorar durante horas. Ou durante dias. Ou durante anos. E esgotar as lágrimas porque já não as quero mais. Afogar a emoção guardada e resguardada há muito.
Chorar e ser eu uma vez na vida.
Chorar e não ter que dizer que não é nada. Que são coisas minhas.
Chorar sem justificações. Sem desculpas esfarrapadas. Sem precisar de me esconder.
Chorar e não precisar de me mostrar forte para que os outros não percebam. Para que os outros vejam por uma vez, que tem sentido. Que tudo isto tem um sentido. Que há razões que a razão desconhece.
Ou dizer asneiras. Muitas. Daquelas de verdadeiro adolescente assumido. Daquelas que eu quase já esqueci, ou que me obrigo a calar. Dizê-las com a raiva que me arranha. Gritá-las com o desespero que mal consigo abafar.
Ou escrever ... como faço nestes momentos. Escrever e sentir que não consigo exprimir tudo o que sinto. Que não há palavras suficientes. Ou que há e apenas não sei como exprimir. Como passar para o papel o que eu nem consigo gritar!
Completamente impotente.
Presa a normas. Amarrada a convenções. Espartilhada ainda, embora lutando e esbracejando furiosamente. Lutando e esbracejando como num filme mudo. Como naqueles sonhos em que pensamos que gritamos mas em que o grito morre na garganta. Inútil. Impotente.
Quero ir embora. Partir para qualquer lugar.
Quero aquela mão amiga. Aquele abraço. Aquela palavra. Aquele mar.
Ou então apenas o silêncio ... para receber o meu grito.

domingo, junho 18, 2006

Our love is gonna live forever

E se o nosso amor vivesse para sempre, que seria de nós então?
Sabes como há no presente uma ânsia de um futuro imperscrutável que nos permite o sonho e a passagem diária das horas. Mas, e se soubéssemos que era para sempre, meu amor, que faríamos com ele? Separar-nos-íamos desde já por sabermos que o sempre nos juntaria novamente? Cada um para seu lado, então. Eu perdido na foz do Douro imaginando o barco que, vindo da Afurada, te traria para os meus braços e tu no cais interrompendo a partida do cruzeiro para o Pocinho por me pensares no seu interior. É na separação que nos encontramos, meu amor. Se o nosso amor fosse para sempre, com a certeza que só Deus sabe, o nosso amor terminava hoje como nunca.

Jorge Reis-Sá, in "Tantas mãos a mesma Primavera", Oficina do Livro, p.62

sábado, junho 17, 2006

...


"Em qualquer luta podemos vencer ou perder. Mas independentemente do desfecho, só o facto de termos continuado a lutar é prova da nossa vitória como seres humanos"

Daisaku Ikeda, pensador budista, escritor e pedagogo contemporâneo
(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, junho 16, 2006

A raíz da pele

Guardo na raíz da pele
os gritos, as emoções,
os desesperos, os medos,
a raiva, o ódio, a perfídia,
os sonhos, as frustrações,
as cicatrizes das feridas
que a vida em mim foi abrindo,
os mistérios, os segredos.

Guardo na raíz da pele
a verdade do que sou.
Deixo que à flor da pele
emerja a máscara, o sorriso,
o jogo do gato-e-rato
onde, estando, nunca estou.

Guilherme de Melo, in "Tantas mãos a mesma Primavera", Oficina do Livro, p.52

quinta-feira, junho 15, 2006

Regresso

Regresso.
Depressa demais, talvez.
Galgo os quilómetros que faltam mais rapidamente do que desejaria.
Os "phones" nos ouvidos evitam que ouça as conversas que não me interessam. A música nasce num ponto algures bem no centro da minha cabeça.
O sol está de partida.
O Sul ficou lá atrás.
Depressa demais, talvez. Cedo demais, talvez.
Há um telhado negro de nuvens do meu lado direito. Há um sol brilhante ainda, do meu lado esquerdo.
Lá atrás ficou o azul. Lá atrás ficou o Sul.
Cedo demais, talvez.
A voz algures no centro da minha cabeça fala de passos e de caminhos. Também eu percorri alguns caminhos. Percursos de outrora agora refeitos com outros passos. Percorridos com outros olhos. Espaços ganhos e de novo perdidos.
A voz que ouço dentro da minha cabeça fala de passos. Eu falo do adeus. E de alguma tristeza.
Falo de perda. Dos passos. Dos espaços que tão bem conheço. Das pedras revisitadas. Do céu tão azul como não há outro. Do mar tão imenso que me sufoca as lágrimas. Das sombras que vejo agitarem-se nos lugares de ontem. Dos fantasmas que habitam a minha memória.
Regresso. Talvez cedo demais.
(Ou talvez parta ... tarde de mais.)

Nos últimos quilómetros o peso acentuou-se. Não existia a alegria do retorno. A estação vazia parecia pertencer a um outro cenário. Sob o peso da mala os passos ecoavam mais fortes. A noite estava fresca e o piso molhado de chuva.
Como os cheiros são diferentes em cada cidade ...
Regresso cedo demais, penso. Arrependo-me de não ter ficado mais uma noite.
Mais um pouco de silêncio. A mesma lua noutro céu. As mesmas estrelas com outro brilho.
Regresso. E é a sombra que encontro, onde antes havia luz.

quarta-feira, junho 14, 2006

Ontem ...

O sol teima ainda em romper a espessa camada de nuvens que hoje cobre o céu. Tenta, mas não consegue. Apenas a luminosidade se altera um pouco fazendo-me semicerrar os olhos um pouco mais.
Aquele magnífico pôr-do-sol de ontem não prenunciava este dia cinzento de hoje.
Aqui, junto a esta formosa ria, a água apenas se agita muito à superfície, acariciada pela mão nervosa desta aragem fresca. As palmeiras que a espaço a delimitam, executam um permanente vai-vem com as suas enormes folhas. Dezenas de pequenos barcos alinham-se na minha frente, reflectindo a sua sombra escura sobre as águas. Os pombos fazem deste passeio o seu passeio, entrando até dentro do café em que me acolho.
Aqui a Sul, as cegonhas fazem os ninhos em qualquer sítio alto. Vejo-as esvoaçar sobre a minha cabeça com as suas longas asas abertas ao vento, as patas bem esticadas para trás, voando de volta aos ninhos. O seu vôo intercala com o dos aviões - esses mais alto - que, de cabeça erguida para o céu, atravessam o meu espaço em direcção ao mundo inteiro.
Fala-se espanhol na mesa de trás e alemão na minha frente. Há pouca gente por aqui. Ainda corre o mês de Junho e o calor mal chegou. É a melhor altura para rumar ao Sul. Ainda se consegue ganhar algum silêncio.
Subo pela primeira vez à torre da Sé e maravilho-me com o que vejo. A cidade aos meus pés desagua na ria, que vista daqui é ainda mais bela. Com tempo limpo teria visto até ao mar. Assim, alcanço as pequenas ilhas que se formam no meio da ria e os pequenos barcos que dormem nas suas enseadas. Os telhados das casas parecem um puzzle ainda por montar. As laranjeiras tombam, pesadas de seus frutos. Apetece ficar por aqui sentada no muro da torre a sonhar - a olhar e a sorrir perante tanta beleza.
À noite, já deitada, pude maravilhar-me com um dos espectáculos mais belos da natureza. O céu explodia de luz de segundo a segundo e o ribombar dos trovões ao longe foi uma constante durante largo tempo. Virada para a janela de persianas abertas, deixei-me adormecer embalada por aquele som longínquo, um sorriso no rosto, sonhando ....

terça-feira, junho 13, 2006

Hoje e "ontem"

Texto retirado

segunda-feira, junho 12, 2006

Coisas tuas

Levo coisas tuas
Para poder estar contigo
Na distância.
Para nunca te perder a companhia,
Mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
O pranto, o riso, e
(Ora inocente, ora picante)
O teu sorriso,
Que é a tua expressão,
O teu maior encanto.
E levo um objecto,
Teu pertence,
Como se o espaço tivesse autoridade
E o tempo nos afastasse ...

Como se fosse preciso ...

Margarida Faro in "Tantas mãos, a mesma Primavera", Oficina do Livro, p.31

domingo, junho 11, 2006

Por amor aos livros

Entro nos livros devagar, sem ruído ou sobressalto,
pela porta baixa, arqueada, das grandes interrogações.
Trago-os a tiracolo como se fossem armas de arremesso.
Guardo-me neles para a inquietação e para a dúvida.
Dou-lhes outros nomes, títulos diversos
daqueles que lhes iluminam o rosto.
Depois debruço-me numa qualquer janela
e grito altíssimo o meu amor por eles, como se cantasse.
Uns dão-me a penumbra como presente,
outros pedem-me apenas que lhes chame irmãos,
cúmplices de todas as aventuras do afecto,
outros pedem-me que me deite com eles
e que faça meus, mesmo nos alvéolos do sono,
os seus enredos tecidos com névoa, paixão e vento.
E há sempre uma luz difusa a escorrer
das doces e limpas páginas impressas:
hei-de bebê-la na concha do encantamento dos olhos
como se buscasse uma sabedoria inatingível,
como se perseguisse a claridade que há no texto,
muito para além de todas as mágoas.
E como posso eu esquecer o perfume
de tudo o que amei enquanto lia?

José Jorge Letria, in "Tantas mãos, a mesma Primavera", Oficina do Livro, 2005, p.44

Ontem fui, pela segunda vez este ano, à Feira do Livro de Lisboa. Localizada desde há uns anos no Parque Eduardo VII e cada vez com um maior número de "stands", necessita de algum tempo para ser visitada com atenção.
Lembro-me bem, quando na adolescência percorria a Feira ainda na Avenida da Liberdade. Não sei se por nostalgia, se pelo espaço, aquele é para mim, o sítio ideal para a sua localização.
À sombra das árvores sentava-me impaciente à espera da hora de abertura. Chegava cedo, ainda os "stands" estavam meio-arrumados e alguns mesmo fechados. Procurava os livros mais em conta, as raridades, ou ainda algum livro proibido.
Hoje, cada vez são mais as editoras presentes, obrigando a subir e a descer o Parque diversas vezes, o que se torna bastante cansativo.
Isto tudo para dizer que na minha visita de ontem à Feira do Livro, para além das compras que fiz, trouxe também um pequeno livro de oferta. É deste livro que publiquei o poema do José Jorge Letria que acabaram de ler. É composto de poesia inédita de autores diversos - uns mais, outros menos conhecidos - mas sempre boa poesia.
Tenho o hábito de marcar a lápis ou com marcadores de papel os poemas ou os excertos de que mais gosto. Neste pequeno livro são poucas as páginas que não têm uma marcação.
Passem por lá também. Oficina do Livro. Talvez comprem alguma coisa e se o fizerem trazem também esta oferta. Vale a pena!

sábado, junho 10, 2006

Um sonho


Algures num sonho percorro um caminho ladeado de árvores centenárias. Pela luz que se filtra na folhagem percebo que ainda é manhã. O silêncio é quase total, apenas de quando em vez entrecortado pelo canto afastado dos pássaros.
Sinto no meu sonho que piso uma folhagem seca que estala sob os meus pés e surpreendo-me quando olho o chão, pois vejo afinal que caminho descalça - o tapete transformado num imenso manto de flores arroxeadas exalando um perfume doce. Ergo o olhar e acima de mim o azul do céu destaca-se no meio de uma filigrana de folhagem que encobre e filtra a luz do sol. Há uma frescura no ar - uma pureza que quase consigo materializar, quando faço deslizar as minhas mãos pela casca rugosa daquelas árvores.
Algures no meu sonho há um som de água a correr. Procuro-a com o olhar, e ao longo de uma escadaria que parece chegar ao céu, desce uma corrente de água límpida e borbulhante. Raios de sol brincam num pequeno lago que se forma em baixo. Debruço-me e mergulho as mãos em busca da sua frescura. Molho a cara e quando abro os olhos, o espelho de água devolve-me outro rosto - um rosto que rapidamente se afunda por entre os raios de sol que ali brincam nas águas.
Algures no meu sonho, um grito nasceu.
Algures no meu sonho, a noite desceu.
Algures ... o sonho morreu.

(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, junho 09, 2006

O dia ...


Há momentos em que parece que tudo nos falta.
Há momentos em que a estrada que percorremos parece não ter saída.
Há momentos em que o coração manda, e nos diz, nos intima, nos exige, que mudemos o rumo.
Há momentos em que precisamos esquecer tudo o que está para trás e focar o olhar naquele ponto distante e luminoso que vemos lá bem ao fundo.

Há um tempo de perder o medo e dar os passos que pensámos dar há muito.
Há um tempo de enterrar a razão e justificar as acções pelo desejo de paz e equilíbrio.
Há um dia em que acabam as batalhas que temos vindo a travar.
Há um dia em que somos nós a ganhar.
Há um dia em que recomeçamos a vida.

(Foto em www.trekearth.com)

quinta-feira, junho 08, 2006

Junto ao lago

Via-os tão nitidamente como se de uma projecção de mim se tratasse. Os dois namorados naquela esplanada junto ao lago.
Vi-lhes a expressão. Adivinhei-lhes o pensamento.
Acompanhei os gestos. Imaginei os sonhos.

Como uma projecção de mim naquela esplanada junto ao lago ...

Os dois namorados que se olhavam, se perdiam, se tocavam. Naquela esplanada junto ao lago.
Sós.

Como uma projecção de mim.

Os dois namorados.
Sonhavam o mesmo sonho, e os olhos brilhavam ao sol naquela esplanada junto ao lago.
Aonde o lago? Já não sei se realidade ou projecção de mim aqueles dois namorados que sonhavam naquela esplanada.
Seria apenas o meu sonho?
Naquela ..... junto ao ....

terça-feira, junho 06, 2006

...


"Dar é receber. Dar é receber um sorriso, um agradecimento mesmo que não se ouça. Dar é partilhar com os outros e com o mundo algo que é nosso, mas que também é deles, pois a única coisa verdadeiramente nossa somos nós próprios. Dar é oferecer algo a alguém sem esperar nada em troca. Dar é ajudar o próximo, é esticar os braços, abrir as mãos e encher o peito de alegria. Dar é oferecer um cobertor a quem tem frio, um pedaço de pão a quem tem fome, um abraço a alguém carente, um sorriso a alguém triste. Dar é um pequeno gesto que pode equalizar o mundo e os direitos de cada um.
No Deserto, temos de aprender a partilhar tudo com os outros: água, comida, cobertores, experiência, afecto ... Caso contrário, morremos sozinhos, porque sozinhos não somos nada. O mais pequeno sentimento de egoísmo no Deserto simboliza o fim da viagem."

SANTOS, Gustavo, "Carta Branca", "Editorial Angelorum", 2006, pp.129/130
(Foto em www.trekearth.com)

segunda-feira, junho 05, 2006

Poema do poste com flores amarelas

Vieram os operários, puseram o poste de ferro na berma do passeio
e foram-se para voltar noutro dia.
O poste tinha sido pintado há pouco de verde
e quando lhe batia o sol rutilava como as escamas dos dragões.
Mesmo junto do poste, no passeio, havia uma árvore que dava flores amarelas,
e o vento fez cair algumas flores amarelas sobre o poste verde.
As pessoas que por ali passavam diziam "que chatice de poste",
mas o poeta sorria para as flores amarelas.

GEDEÃO, António, Obra Poética, p. 141

(No Dia Mundial do Ambiente)

domingo, junho 04, 2006

Fim de tarde

Sinto a tristeza a avançar, quando a meio das conversas o silêncio me pesa. As palavras recusam ser ditas. Há um peso no peito que se instala, e em forma de punho me aperta a garganta.
Queria sair daquela sala.
Evitar as conversas.
Guardar os sorrisos.
Fechar os olhos e deixar que ela me ganhe.
Nestes momentos não há nada a fazer a não ser deixá-la entrar. Quando a tristeza vem e não sei porquê, é deixá-la correr em forma de rio - é deixá-la espraiar como as ondas mansas que varrem a areia. É deixá-la estrangular a garganta com as suas garras possessivas como tenazes.
É preciso apenas um abraço para tudo despoletar. Num olhar mais fundo pode ver-se para além de mim, se se souber olhar - se se quiser ver.
Tento engolir a tristeza que teima em sair sem eu mesma saber a razão.
Será que eles sabem? Será que eles sentem?
Os meus olhos não costumam calar.
Os meus silêncios não costumam esconder esta avassaladora emoção que persiste em mostrar-se.
O meu sorriso não é o sorriso aberto de sempre, toldado agora por uma mágoa que o distorce.
Com o cair da tarde, instalou-se a tristeza.
Que venha a noite! Que venha a noite calá-la!

sábado, junho 03, 2006

Fim de noite


(Foto em www.trekearth.com)

Texto retirado

sexta-feira, junho 02, 2006

...


"Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável"

LISPECTOR, Clarice, "A paixão segundo G.H.", Relógio d'Água, 2000, p. 105
(Foto em www.trekearth.com)

quinta-feira, junho 01, 2006

Anti-Anne Frank



Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
Nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor dos editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.

GEDEÃO, António, "Obra Poética", p. 92
(Foto em www.trekearth.com)