Procurei a noite para esconder a tristeza.
Procurei o silêncio para calar o grito.
Saí de casa para poder ser Eu.
As cortinas vermelhas translúcidas confessam segredos.
Os rostos anónimos ignoram o lamento.
O silêncio não existe.
A noite não esconde.
Saí de casa para poder ser Eu ... mas se o grito não sai e se a tristeza persiste, de que serve ser noite? para quê o silêncio?
Acredito que um dia a noite vai ser doce e o silêncio uma carícia.
Acredito que um dia ...
Acredito que um dia o silêncio e a noite se unirão num só grito. O nosso.
Hoje. Recordações.
Ele sentava-se no lugar do costume. Uma poltrona coçada ao lado da secretária.
Sempre invejei aquela secretária. Ainda hoje lamento não ter ficado com ela após a sua morte. Naquela altura, e talvez por ser ainda pequena, parecia-me enorme. De madeira escura com puxadores de um dourado antigo. Sobre o tampo, um vidro. Sempre alguma confusão de papéis, pelo menos assim recordo. Sob o vidro que a protegia, um pequeno recorte de papel com um poema. O "Cântico Negro" de José Régio.
Entre a secretária e o cadeirão, um candeeiro de pé antigo. Lembro o "abat-jour" amarelado com franjinhas e a corrente pendurada que servia para o acender. É engraçado como recordo claramente o seu gesto. O seu gesto e a sua expressão quando, baixando-se ligeiramente, olhava de lado, por baixo do "abat-jour" à procura da corrente que o acendia.
Como a memória é selectiva ... Esqueci porventura coisas importantes, e recordo com espantosa nitidez a sua expressão mil vezes repetida quando acendia o candeeiro da sala.
Sentava-se todos os dias ali naquele cadeirão para ler o jornal ou ver a televisão que se encontrava do outro lado da sala.
O meu lugar era normalmente em frente, sentada num pequeno banco de campismo ali colocado concerteza apenas aos fins de semana, os únicos dias em que eu lá me encontrava. Era um daqueles bancos com assento em lona, azul às riscas e pés metálicos, que se pode fechar e arrumar a um canto quando já não faz falta. Era ali que me sentava para ver, aos sábados à noite, a minha série favorita - Bonanza. Naquele cantinho, encostado ao "móvel do relógio". Para mim era o "móvel do relógio". Um armário alto e escuro de duas portas sobre o qual estava um relógio de mesa daqueles antigos, ainda de corda. Era de caixa quadrada de ponteiros escuros trabalhados e numeração romana, daqueles que batem as horas com um som metálico. Hoje é meu e ainda trabalha. Ele adorava relógios. Mais tarde ainda adquiriu um de chão, enorme, que tocava as Avé-Marias.
Também eu herdei a mania dos relógios. Não de pulso mas antigos, de mesa e de parede.
Naquele dia porém, não me sentara no meu cantinho. Ocupava o sofá amarelo de dois lugares, no sítio mais afastado do cadeirão. Junto a mim sentava-se a filha de uma amiga dele, um pouco mais velha que eu. Eu teria 7 ou 8 anos, ela 10 ou 12. Víamos televisão quando ela se levantou do seu lugar e se foi instalar nos seus joelhos. Ele aconchegou-a no colo colocando-lhe o braço por detrás das costas e ali ficou um bocado a conversar, a brincar e a ver televisão.
Porque guardamos nós certas memórias quando preferíamos esquecê-las? Esta, tão breve, tão insignificante - um momento apenas - dois minutos da minha vida e há tantos anos já, permanece para mim com enorme nitidez. E tudo porque eu sei que olhei para aquela cena e pensei - lembro-me perfeitamente que pensei - que não era capaz de uma atitude semelhante. E aquele era um gesto de filha. E era eu a sua filha. Eu, que nunca seria capaz de o fazer.
Fiquei ali no sofá amarelo de dois lugares, bem encostadinha ao extremo mais afastado, tentando desviar os olhos de ambos.
Um gesto tão simples. Uma mágoa que perdura até hoje.