despedida
tinha um riso contagiante que quando começava parecia não acabar nunca, e chorava. chorava de tanto rir. ele e ela que o acompanhava e quase se engasgava também.
mas isso foi já há muitos anos que aconteceu. num tempo em que os domingos amanheciam sempre iguais quer chovesse ou fizesse sol.
havia carapaus assados no verão. assados por ele na varanda da cozinha, com calma e paciência. quando os provava dizia ele que estavam sempre secos e ela ria-se e resmungava baixinho.
havia cozido no inverno que ela começava a preparar bem cedo, coisa que eu nunca percebi muito bem. a panela era enorme e cheirava sempre tão bem.
era aos domingos e o almoço era sempre em casa deles. carapaus assados no verão e cozido à portuguesa no inverno. ao jantar havia sopa de feijão, daquela que, brincava eu, não deixava cair a colher quando se colocava na tijela. aromática. espessa. com pequenos bocadinhos de pão que a tornavam quase sopa e conduto ao mesmo tempo. tudo isto aos domingos. verão e inverno. há muitos anos.
e depois havia o natal. quando ele trabalhava na noite da consoada, atrasava-se o jantar até quase às dez horas para dar tempo a que chegasse. chegava e ainda cheirava a sabonete. chegava e mudava de roupa para se juntar a nós à consoada. ficava para trás a farda azul e o chapéu de marinheiro. ficavam para trás as longas horas de trabalho. ficava para trás o cansaço. à mesa o bacalhau cozido. as batatas. as couves. o caldo verde. o apetite calava as conversas que se guardavam para depois.
há muito tempo que não há natal como estes. nesse tempo éramos sete à mesa. o lugar da primeira que partiu foi depois ocupado por mim que não quis deixá-lo vazio, e fomos seis mais algum tempo.
soprou depois um vento de mudança e os lugares à mesa ficaram vazios. tudo se alterou e ganhou novas formas. o meu cabelo embranqueceu. o deles rareava cada vez mais. já não havia domingos como aqueles. havia outros dias da semana num calendário marcado com precisão.
ela, de braços caídos no regaço, habita um tempo que não é o nosso. olha a vida que já passou há anos. repete palavras sem sentido. às vezes acorda e surpreende-nos. às vezes fazem sentido as palavras que não repete.
às vezes ainda se encontravam nos risos cúmplices de tantos anos de vida vivida.
agora nunca mais.
o lugar ao seu lado na cama ficou vazio. ele já não responde ao seu chamado insistente. calou-se a voz que tantos anos ouviu.
no último momento não esteve lá.
eu estive, e em silêncio, de olhos fechados, trouxe-o até mim.
parou ao meu lado - o boné branco à banda de marinheiro batido, sobrancelhas fartas e sorriso maroto - e depois partiu, em passos lentos, sem nunca olhar para trás.
mas isso foi já há muitos anos que aconteceu. num tempo em que os domingos amanheciam sempre iguais quer chovesse ou fizesse sol.
havia carapaus assados no verão. assados por ele na varanda da cozinha, com calma e paciência. quando os provava dizia ele que estavam sempre secos e ela ria-se e resmungava baixinho.
havia cozido no inverno que ela começava a preparar bem cedo, coisa que eu nunca percebi muito bem. a panela era enorme e cheirava sempre tão bem.
era aos domingos e o almoço era sempre em casa deles. carapaus assados no verão e cozido à portuguesa no inverno. ao jantar havia sopa de feijão, daquela que, brincava eu, não deixava cair a colher quando se colocava na tijela. aromática. espessa. com pequenos bocadinhos de pão que a tornavam quase sopa e conduto ao mesmo tempo. tudo isto aos domingos. verão e inverno. há muitos anos.
e depois havia o natal. quando ele trabalhava na noite da consoada, atrasava-se o jantar até quase às dez horas para dar tempo a que chegasse. chegava e ainda cheirava a sabonete. chegava e mudava de roupa para se juntar a nós à consoada. ficava para trás a farda azul e o chapéu de marinheiro. ficavam para trás as longas horas de trabalho. ficava para trás o cansaço. à mesa o bacalhau cozido. as batatas. as couves. o caldo verde. o apetite calava as conversas que se guardavam para depois.
há muito tempo que não há natal como estes. nesse tempo éramos sete à mesa. o lugar da primeira que partiu foi depois ocupado por mim que não quis deixá-lo vazio, e fomos seis mais algum tempo.
soprou depois um vento de mudança e os lugares à mesa ficaram vazios. tudo se alterou e ganhou novas formas. o meu cabelo embranqueceu. o deles rareava cada vez mais. já não havia domingos como aqueles. havia outros dias da semana num calendário marcado com precisão.
ela, de braços caídos no regaço, habita um tempo que não é o nosso. olha a vida que já passou há anos. repete palavras sem sentido. às vezes acorda e surpreende-nos. às vezes fazem sentido as palavras que não repete.
às vezes ainda se encontravam nos risos cúmplices de tantos anos de vida vivida.
agora nunca mais.
o lugar ao seu lado na cama ficou vazio. ele já não responde ao seu chamado insistente. calou-se a voz que tantos anos ouviu.
no último momento não esteve lá.
eu estive, e em silêncio, de olhos fechados, trouxe-o até mim.
parou ao meu lado - o boné branco à banda de marinheiro batido, sobrancelhas fartas e sorriso maroto - e depois partiu, em passos lentos, sem nunca olhar para trás.
32 Comments:
Brilhante, como sempre!
Um beijo
Jorge
O lado belo de uma tristeza grande.
Fiquei a pensar!
Alguma vez escreverás sobre mim, o que dirias... mas não. Não queria que isso acontecesse. Queria partir junto contigo.
Emocionei-me. Fiquei triste.
Triste pela vida, pela morte, por quem assiste e sofre.
Para todos um beijo de solidariedade.
Já tinha muitas saudades de ler os teus textos bonitos.
Bjs.
Escrevi
Bela e emocionante prosa.
beijos
Minha querida Dulce...
tanta emoção, as palavras repletas de sensibilidade e de todos aqueles pormenores que acabam por ser as coisas mais importantes do mundo!
Dei por mim com o queixo a tremer e os olhos húmidos. Isso diz tudo, não?
Um beijinho mto grande para ti, uma senhora que eu admiro, mesmo sem conhecer.
Ah e o que dói a quem assiste? O pior não são os cabelos brancos, os reflexos que se perdem ou a alegria que vai murchando.
É mesmo quando as várias debilidades se vão acumulando, no corpo e na memória, ao ponto de se perder a lucidez. Do ponto de vista de quem assiste a essa decadência, porque para os próprios suponho que não será tão mau, ficarem sem se aperceber da perda de familiares ou amigos...
Não olha para trás.
Não precisa.
Continua ao vosso lado.
(não se trata de escrever muito bem. trata-se de escrever o Amor)
a vida também é isso...
abraço Dulce
*
é a vida,
da vida,
,
conchinhas
,
*
"às vezes ainda se encontravam nos risos cúmplices de tantos anos de VIDA VIVIDA"
sublime...
abraços do
PARADOXOS
... sem palavras.
Um beijo.
Hello Dulce,
Wanted to thank you for visiting my blog today.
I had to run the text of your post through the on-line translator, and as you probably know, that doesn't always work out too well, but I did kind of understand what you were describing. Sounded delicious, and very interesting! Almost like poetry -- plus a few extra things the on-line translator threw in just for spice...
All the best to you.
Don.
"Louis" thanks you for visiting San Francisco Bay Daily Photo for "Sky Watch Friday"!
a decadência é o que mais me entristece. a vida está também a mostrar-me isso, com o meu pai.
triste mas bela esta partilha de sentires
jocas maradas....sempre
Obrigada por escreveres este texto e por me fazeres recordar tantos momentos felizes e recordações que ele deixou no meu coração.
Brilhante, lindo e tocante!
Toma um beijo.
...que prazer ler-te, mesmo quando nos deixas tristes...
bjs
Querida Dulce – agora para desanuviar, vai ao meu “blog” tenho lá uma coisinha para te fazer rir.
(o palhaço da fotografia sou eu)
Já devo ter lido este texto uma meia-dúzia de vezes...
Tenho-o lido ao som da tua música que é linda.
Depois, vou-me embora em silêncio.
Beijitos, Dulce.
Passei para te deixar um grande abraço.
E claro que gostei imenso de ler mais um texto sobre as tuas memórias.
Beijinhos
Comovente e belíssimo testemunho de amor, escrito com a pena da saudade!
Um dia os teus netos gostarão de saber...
Um abraço, Dulce!
Neste Dia Mundial do Ambiente, reflictamos um pouco sobre ele. Salvemos esta Terra que tão bem nos tem tratado.
Bjos
Querida amiga,
Fiquei muito emocionada com este teu texto, tecido com palavras profundas e sentidas. Resgatando da memória pedaços de vida.
Fez-me pensar na decadência a que muitos de nós chegam e que tanto receio...
Beijo grande
Só um beijinho... mais um!
Não é desta que te leio; o Henrique Sousa já desistiu da encomenda, mandou-me um e-mail há bocado, acho que a lulu desconseguiu.
Entretanto vou aparecendo por aqui para deixar saudades. Ando preguiçoso para ler textos sem iniciais de parágrafo maiusculadas. Por aqui vejo como me vou inadaptar à nova ortografia. Confesso: estou velho.
Lindo!!
"e em silêncio, de olhos fechados, trouxe-o até mim"
a voz de uma alma acontece todas as vezes que os olhos se permitem a fechar sem medo.
tão belo e tão triste nos sentires
deixei o olhar preso na cumplicidade de um vazio ...
abraço-te com ternura
beijinhos Dulce
lena
Despedida...? Urge regressar
OLÁ DULCE
Por culpa minha,
pela minha ausência,
Já tinha muitas saudades de ler os teus textos bonitos.
Fico sempre emocionada e deslumbrada com a tua escrita.
Bom fim de semana.
Abracinhos.
Olá Amiga! De férias ou zangada com o blog?
:)))))))))))
Esperamos novos textos escritos daquela maneira que só tu sabes.
Um beijinho grande
Dulce, maravilhoso o seu texto. Emocionante e real, triste, mas ao mesmo tempo tem até a felicidade escondida de uma vida vivida, até o fim...
Beijos
Enviar um comentário
<< Home