quarta-feira, novembro 30, 2005

Lembrando Fernando Pessoa nos 70 anos sobre a sua morte

"A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nela que se vive. Há por isso almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mas tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito."
PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, p.234/5

terça-feira, novembro 29, 2005

Música em São Roque


Amanhã, 30 de Novembro, pelas 18,30, na Igreja de São Roque vai decorrer mais um Concerto integrado na iniciativa Música em São Roque/2005.
Vamos poder ouvir a Academia de Música de Santa Cecília. O programa inclui o Concerto para Violino em Lá menor, BWV 1041: Allegro, Andante, Allegro assai de J.S. Bach e diversas Canções de Natal.

Eu vou.
Apareçam!!!

(Foto minha)

segunda-feira, novembro 28, 2005

...

"Queres saber quem sou? Eu sou o que te olha e espia para te recolher e depois guardar num lugar que é só meu. Para isso serve o papel. O resto não precisas de saber. Nem convém. Só te ía distrair, podes crer. Eu sou o que mergulha as mãos na tua vida para sentir a minha a voltar."

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.25

domingo, novembro 27, 2005

Metamorfose

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter ...
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana

SENA, Jorge de, "Quinze Poetas Portugueses do Século XX", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p.127

sábado, novembro 26, 2005

Rumos

Se eu deslizasse pela vida como
este barco desliza sobre as águas.
Veloz e suave.

Sem sobressaltos
(Uma vida sem vida)

Um rasto de espuma marcando
a passagem,
e logo desfeito o trilho
e refeitas as águas.
Assim a vida passasse
sobre mim.

Sem contratempos.
(Uma vida sem vida)

Quase sem me tocar.
Quase sem ser vivida.
Veloz e
suave
num trilho de passos mal marcados.

Sem riscos.
(Uma vida sem vida)

Um rasto de rostos
na esteira de uma vida
que eu queria suave e veloz.
Uma passagem
entre o Nada e o Nada.

Sem paixão
(Uma vida sem vida)

Apenas
as marcas indistintas
dos meus passos.
Uma presença vaga.

Não eu,
mas um espectro de mim.
Uma projecção
que alguém sonhou.
Um esboço que outra mão
delineou.

Nunca eu.

(Uma vida sem vida)

sexta-feira, novembro 25, 2005

Liberdade


Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raíz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.

RODRIGUES, Armindo, in "Os poemas da minha vida, Mário Soares", Público, Lisboa, p.120

(Foto minha)

quinta-feira, novembro 24, 2005

...

Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito - como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer - eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?
(...)
PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, p.229

quarta-feira, novembro 23, 2005

Descrição de um lugar

Sou um reflexo no vidro. Olho-me
fixamente, e o poema capta-me nesta atitude.
Pudesse eu conhecer-me como se conhece
o poema ...
Deixo um retrato de mim, morto,
há um ano por esta altura. Que me aconteceu,
entretanto? De quem é este corpo
que me é estranho, pálido habitante de um movimento
indeciso e aparente? Quem sinto quando me toco,
quem me dorme, quem me pensa,
quem me escreve? O meu rosto encobre um pronome. Vivo
uma sintaxe corrupta no patamar marítimo
do mito. Quem me impede o sentimento? Quem me abre
um caminho que não sigo, condenado a outro
de mim próprio?
No entanto, estou aqui. Entre mim e o poema,
opaco a ambos, sem nada para dizer.

JÚDICE, Nuno, "Obra Poética", Quetzal, Lisboa, 1991, p.150

terça-feira, novembro 22, 2005

Há dias assim ...


Estão a ver esta gaivota só, de costas para o mar?
Estão a ver este céu de chumbo que ameaça tempestade?
Hoje estou assim. Só, triste, com um céu cinzento sobre a cabeça.
Há dias assim ...
........................................................................
A vida de cada um
tem duas eras:
antes
e depois
da morte da Mãe.

Teresa Rita Lopes

segunda-feira, novembro 21, 2005

3.

Desisto
de existir?
Persisto
em resistir?

Visto que
existo
já agora
insisto

Que fazer
de tanto
nada?

Tantos pássaros
mortos
na algibeira!

Teresa Rita Lopes, "Cicatriz", Colecção Forma, Lisboa, 1996, p.29

domingo, novembro 20, 2005

Memória de um dia no Alentejo

O autocarro corria veloz. Ao meu lado e pelos vidros sempre embaciados, passava um Alentejo vestido de inúmeras cores. Vivo. Belo. Árvores com folhas de um amarelo inesperado, os campos em todas as tonalidades de verde. A vinha, imensa a perder de vista, era sangue escuro derramado sobre a terra.
O autocarro percorria inúmeros pequenos povoados. Casas baixas de branco e azul caiadas, reluzentes naquele dia chuvoso e cinzento.
À tarde, após o almoço, a visita a Monsaráz. Uma jóia incrustrada no cimo da colina.

Perdida no tempo. O xisto das calçadas brilhante, reflecte memórias antigas. O céu de chumbo ameaçava, e nas ruas apenas nós andávamos, peregrinos em busca dos ecos perdidos de vidas passadas.

A Igreja Matriz, a Casa da Inquisição, a bela Rua de Santiago e a Rua Direita. Apenas em pequenos cafés se detectava a vida, vozes calorosas nesta tarde de Outono. Pequenos grupos conversando, abrigados.

Houve ainda tempo para percorrer a nova ponte sobre o Guadiana, e ver as terras alagadas, numa paisagem recriada pela mão do Homem.

Pelo caminho ficou a imponência das pedras erguidas há quase sete mil anos. Monumento funerário ou símbolo de uma religiosidade simples e pura - o Cromeleque do Xerez - deslocado do seu local de origem por força dos progressos de hoje. Tocamos aquelas pedras e partilhamos algo de mágico e também de profundamente inerente ao Homem e às suas raízes. Tocamo-las e viajamos no tempo, participando de ritos ancestrais.

A chuva continua a cair persistente ainda hoje. Vejo-a agora através das janelas deste café sobre a praça onde me encontro, abrigada e entregue a esta segunda viagem pelo Alentejo agora apenas recordada. A chuva é a mesma, mas esta apenas lava as ruas da minha cidade, e o mesmo céu de chumbo de ontem, entristece agora as cores já cinzentas do meu dia.

(Fotos minhas)

sexta-feira, novembro 18, 2005

...

"(...) Chamemos as coisas pelos nomes. O amor que transportamos vai-se gastando por onde passamos. Não nasce do vento. O que levamos deste amor para aquele é muito pouco, não chega para nada. É preciso ter a vontade e a energia e a concentração para começar tudo outra vez. Não somos donos de nada. O que mais importa é o que só passa e nem se deixa tocar com os dedos. É preciso ter cuidado. De repente, à luz da noite, uma só aflição"

PAIXÃO, Pedro, "Amor portátil", Livros Cotovia, Lisboa, 1999, p.71

quinta-feira, novembro 17, 2005

...

(...) Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espectáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
(...) Nada me satisfaz, nada me consola, tudo - quer haja sido, quer não - me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero."

PESSOA, Fernando, "Livro do Desassossego", Novis, p. 154

quarta-feira, novembro 16, 2005

Dia Nacional do Mar - 16/11/2005

É preciso lembrar os erros para não mais se repetirem

Praia
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços
Sophia de Mello Breyner Andresen, "No tempo Dividido", Caminho, p.31

terça-feira, novembro 15, 2005

...

" Como é preferível o silêncio! A chávena de café, a mesa. Como é preferível estar sentado nesta sala vazia, como a solitária ave marinha pousada numa estaca. Deixem-me ficar aqui para sempre, entre estas simples coisas, esta chávena de café, esta faca, este garfo, coisas em si, que me deixam ser eu. Não venham perturbar-me com a insinuação de que é tarde e precisam de fechar. Daria de boa vontade tudo quanto possuo para que me não perturbem, para que me deixem ficar para sempre sentado neste lugar, silencioso e solitário".

WOOLF, Virginia, "As Ondas", Relógio d'Água, Lisboa, p.237

segunda-feira, novembro 14, 2005

Esta gente/essa gente

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unhas e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Ana Hatherly
in "Os poemas da minha vida" Mário Soares, Público, Lisboa, 2005, p.161

Música em São Roque - 2005

Há informações sobre este evento em www.scml.pt
Deixem-me no entanto adiantar-lhes que o próximo concerto se vai realizar no dia 16 de Novembro pelas 18,30 horas no Museu de São Roque em Lisboa, e que conta com a participação da Escola de Música do Conservatório Nacional.
Para o resto da programação podem consultar a págima acima referida.

domingo, novembro 13, 2005

Domingo



Na orla do mar azul
de um céu quase sem nuvens,
as águas, crespas, murmuram.
Jogam ao sol crianças
na aragem primaveril.
Já outras param pensando
as formas do corpo alheio.
Os barcos, suaves, singram
nos olhos de solitários
cujos passos hesitantes
pela praia se misturam
aos de corridas e jogoss
da juventude esgotando-se.
As vozes chegam longínquas ...
Meus passos deixam sinais
que a tarde, ténue, adejando,
aos outros misturará
na orla do mar azul.

Jorge de Sena, Antologia Poética, Asa, Lisboa, 1999, p.55

(Imagem em www.museudochiado-ipmuseus.pt
"A sesta" de Almada Negreiros )

sábado, novembro 12, 2005


Peço desculpa aos possíveis interessados por só estar a divulgar este acontecimento no último dia de espectáculos.

O programa para hoje é:

Tala Dance Center - Croácia
Filipa Pires - Portugal
Taipei Dance Circle - Taiwan
Marie-Gabrielle Rotie - Reino Unido
Compagnie Taffanel - França

Mais informações sobre os espectáculos em www.m-almada.pt

Ontem actuaram a Companhia de Danza Isabel Croxatto (Chile), que trouxeram até nós, Compasion, uma possível versão de Romeu e Julieta, ou como nos diz o programa "sobre uma mulher em estado vegetal ou morta, e um homem que a cuida (seu amante, seu pai, seu coveiro ...) obcecado pela sua felicidade (e que) quer recuperar-lhe a vida".

Sílvia Pinto Coelho, Einzimmerwohnung, uma mulher só em palco, e nós "voyeurs" da sua intimidade.

Ana Martins, Momentos, que já tinha tido o prazer de ver em primeira mão na Escola Superior de Dança de Lisboa, "meias histórias, partes de cenas, conversas a meio (...) um cheiro de absurdo"

Alexandrina Nogueira, Imperfeita Perfeição, mais uma mulher só em palco. Um olhar sobre si própria.

Eld, Using the Eye in the Middle of the Forehead, (Suécia), para mim a surpresa da noite. Uma peça que achei um pouco longa, mas cheia de beleza. Dois balarinos em palco - um homem de 67 anos e uma mulher de 64. "(...) uma peça que nos fala do amor e do envelhecer".
Um exemplo de como um bailarino o é sempre, mesmo que mais velho, um exemplo que deveria também ser seguido no nosso país. Estes exemplos apenas nos chegam do Norte da Europa, países que não conheço, e em que provavelmente se olha a produtividade do ser humano com outros olhos. A coreografia e o ensino não deveriam ser as únicas alternativas para quem "excedeu" a idade de dançar em palco.

Post-Scriptum

Nâo sou daqueles cujos ossos se guardam,
nem sou sequer dos que os vindouros lamentam
não hajam sido guardados a tempo de ser ossos.

Igualmente não sou dos que serão estandartes
em lutas de sangue ou de palavras,
por uns odiado quanto me amem outros.

Não sou sequer dos que são voz de encanto,
ciciando na penumbra ao jovem solitário,
a beleza vaga que em seus olhos houver.

Nem serei ao menos consolação dos tristes,
dos humilhados, dos que fervem raivas
de uma vida inteira a pouco e pouco traída.

Não, não serei nada do que fica ou serve,
e morrerei, quando morrer, comigo.

Só muito a medo, a horas mortas, me lerá,
de todos e de si se disfarçando,
curioso, aquel' que aceita suspeitar
quanto mesmo a poesia ainda é disfarce da vida.

Jorge de Sena, "Antologia Poética", Edições Asa, Lisboa, 1999, pp.92,93

sexta-feira, novembro 11, 2005

Em palco

Dizem que a Vida é um palco,
e neste palco da Vida,
luto,
danço,
represento.
Os personagens que por mim passam
apoiam-me
ou enfrentam-me nesta luta
que travo dia a dia.
(Pequenas lutas do quotidiano).
Golpes que não sangram, ou
rasteiras que por vezes me deitam ao chão.

Há quem dance comigo:
os Amigos
(sempre os Amigos).
Com eles ensaio longas valsas,
embalados que somos nas palavras trocadas,
nos segredos murmurados,
e nas confidências a meia-voz.

Os tangos têm um lugar privilegiado
pois esses
danço-os com a Morte
- figura omnipresente.
Detecto-a pela sombra
que projecta sobre mim
e por um certo arrepio no pescoço.
O seu longo braço sobre o meu ombro.
Umas vezes perto
sussurra-me ao ouvido.
Outras vezes longe
sorri-me,
como que a tranquilizar-me.

Represento ainda os inúmeros papéis
que me são atribuídos.
Há máscaras para todos os gostos!
Mas no espelho deste lado do palco,
apenas eu me vejo intacta.
Os espectadores podem escolher
a fantasia que pretendem.
Da farsa ao drama.
Soprano ou contralto.

É só pedir!
É só escolher!

Ao fim de cada dia
baralham-se as máscaras,
trocam-se as deixas,
o cansaço impera.
Quando me olho no espelho
deste lado do palco
e me vejo intacta
como só eu posso ver-me,
a nudez assusta-me de tão crua.
A voz embarga-se de tão rouca,
e as lágrimas lavam do rosto
pinturas já gastas.
Adormeço então
enrolada em mim mesma.
Sonhando um papel só meu.


(Foto em www.trekearth.com )

quinta-feira, novembro 10, 2005

...


"É difícil ensinar Letras quando a leitura obriga a tal ponto ao retiro e ao silêncio!
Será a leitura um acto de comunicação? É uma boa "treta" dos comentadores! O que lemos, calamos. A maior parte das vezes guardamos no fundo do nosso cíume o prazer do livro lido. Ou porque entendemos que não há matéria para discursos ou porque, antes de nos pronunciarmos, temos de esperar que o tempo cumpra o seu delicioso trabalho de destilação. Esse silêncio é a garantia da nossa intimidade. O livro está lido mas nós ainda lá estamos. A sua simples evocação abre um refúgio à nossa recusa. Preserva-nos do Grande Exterior. Oferece-nos um observatório colocado por cima das paisagens contingentes. Lemos e calamo-nos. E calamo-nos porque lemos. Seria agradável que um embuscado nos surpreendesse no final da nossa leitura e nos perguntasse: "Então? É bom? Percebeste? Conta!"
Por vezes é a humildade que comanda o nosso silêncio. Não a gloriosa humildade dos analistas profissionais, mas a consciência íntima, solitária, quase dolorosa, que temos de que esta leitura ou aquele autor acabou, como se diz, de "mudar a minha vida"

PENNAC, Daniel, "Como um romance", Edições Asa, Lisboa, 1995, p.79

(Imagem: "Mulher a ler" de Jacqueline Rebout)

quarta-feira, novembro 09, 2005

As Estátuas

Para as estátuas puras e concretas
Existe o movimento da manhã

Tomam a luz nos dedos oferecidos
E o arco do céu saúda a sua face.

A claridade veste os seus vestidos
E nenhum gesto nelas é perdido.

As madrugadas escorrem dos seus ombros
E o vento poisa as tardes nos seus braços.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "No tempo Dividido", Edit. Caminho, Lisboa, 2005, p.32

(Foto minha - Museu do Carmo)

terça-feira, novembro 08, 2005

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã ...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã.
E assim será possível, mas hoje não ...
Não, hoje nada, hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico ...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã ...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte ...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos ...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã ...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro ...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã ...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância ...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-à,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital ...
Mas por um edital de amanhã ...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã ...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo ...
Antes, não ...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã ...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã ...
Sim, talvez só depois de amanhã ...

O porvir ...
Sim, o porvir ...

Álvaro de Campos, Poesias, p.247, 248

segunda-feira, novembro 07, 2005

Balada de Lisboa

Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais
A cidade onde desenho
Teu rosto com sol e Tejo

Caravelas te levaram
Caravelas te perderam
Nas manhãs da tua ausência
Tão perto de mim tão longe
Tão fora de seres presente

Esta é a cidade onde estás
Como quem não volta mais
Tão dentro de mim tão que
Nunca ninguém por ninguém
Em cada dia regressas
Em cada dia te vais.

Em cada rua me foges
Em cada rua te vejo
Tão doente da viagem
Teu rosto de sol e Tejo
Esta é a cidade onde moras
Como quem está de passagem

Às vezes pergunto se
Às vezes pergunto quem
Esta é a cidade onde estás
Com quem nunca mais vem
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém

Manuel Alegre, "Atlântico", p.170,171

(Foto minha)

domingo, novembro 06, 2005

Amigos!


Nesta estrada que percorro, caminham hoje comigo amigos que fui conhecendo, gente que me faz falta.
A todos tento dar a palavra que sabe bem ouvir em cada dia. A todos gostaria de poder sorrir em cada manhã. A todos gostaria de poder abraçar, demonstrando assim o meu carinho.
Porque todos me são preciosos e necessários.
Todos povoam o meu quotidiano. Mesmo não estando presentes, estão sempre comigo.
Como consegui durante tanto tempo viver sem amigos, não sei.
Quando me abri para os outros, quando soube sorrir e dar aos outros aquilo que de melhor tenho, eles foram-se aproximando. E ficaram.
Ter um amigo, é algo que fez parte apenas do meu imaginário durante largos anos. Hoje é um facto concreto.
Também àqueles que por aqui passam e que voltam outro e outro dia deixando o seu comentário e uma palavra amiga, também a estes gostaria um dia de os poder chamar de amigos. A alguns já conheci, os outros quem sabe um dia ... E mesmo que isso nunca venha a acontecer, a sua presença constante, as suas palavras, as mensagens que me transmitem, apesar de virtuais, acompanham-me em cada dia e alargam o meu sorriso.
É a todos vocês que quero dizer obrigado por estarem presentes.

sábado, novembro 05, 2005

William Kentridge no Museu do Chiado




Ontem fiz uma nova visita ao Museu do Chiado.
Apesar de lá ter ido há pouco tempo gostei de rever a exposição temporária de William Kentridge, dado que da última vez que lá estive, não tinha tido hipótese de a ver em pormenor.





Deixo aqui algumas referências retiradas do site do Museu do Chiado www.museudochiado-ipmuseus.pt .


"Em Sete Fragmentos para Georges Méliès a fonte de inspiração de William Kentridge é o trabalho de Georges Méliès, nascido em Paris, em 1861, filho de um rico fabricante de sapatos. Depois de terminar os estudos de belas artes Méliès compra o teatro de Robert Houdin e começa a apresentar filmes, antes dele próprio começar a fazer e produzir os seus filmes.

Sobre Viagem à Lua William Kentridge escreve: “Um foguetão em forma de bala despenha-se na superfície da Lua, um charuto apagado numa face redonda. Quando vi o filme de Méliès pela primeira vez no princípio deste projecto, percebi que conheci esta imagem anos antes de ouvir falar de Méliès. Estava bastante avançado na realização dos fragmentos para Méliès. Tinha resistido a qualquer pressão narrativa, construindo a premissa da série – o que é que acontece quando o artista vagueia pelo estúdio. O que aconteceu foi a necessidade de fazer pelo menos um filme que se rendesse ao impulso narrativo.

O Dia pela Noite tem origem no exercício de filmar formigas no atelier do artista, enquanto trabalhava nos filmes de Méliès: “Nesta fase estava a trabalhar no filme Viagem à Lua, a penúltima e mais complicada das peças de Méliès, quando me ocorreu que podia fazer o negativo da imagem, e usar as formigas para algumas das sequências nocturnas da viagem.”

“Tal como os títulos o referem é aos primórdios do cinema, tempo de construção e descoberta fascinante de uma nova linguagem, de que Georges Méliès foi um pioneiro, que William Kentridge recorre para repensar o desenho e o implicar no movimento. As cenas que estas nove videoprojecções apresentam decorrem no atelier do artista, lugar da prática do desenho e de reorganização contínua do mundo. Os desenhos esboçados, apagados e redesenhados num palimpsesto em movimento são por isso construídos não só pelos gestos do corpo do artista mas também pela montagem fílmica que lhes retira qualquer possível estabilidade ou mesmo finalidade para devolver a inquietude que habita os passos do artista e o funde com o desenho de onde também emerge. No cruzamento do desenho com o cinema pode aquele ser reconduzido a um estado de contínuo nascimento. Este é um dos muitos aspectos que estes trabalhos de William Kentridge nos revelam e que o ensaio de Ruth Rosengarten analisa com profundas implicações, quer no reequacionamento do sentido do médium, quer no plano fenomenológico que pensa o inaparente.”Pedro Lapa, curador da exposição

William Kentridge nasceu em 1955, em Joanesburgo, cidade onde vive e trabalha. As curtas-metragens de animação, os desenhos e a colaboração com a Handspring Puppet Company, de Joanesburgo, foram cruciais na projecção internacional que alcançou. Depois de uma série de exposições em museus norte americanos (The Hirshhorn Museum & Sculpture Garden, Washington, MCA, Chicago, LACMA, Los Angeles), entre 2001 e 2002, a sua obra foi objecto, já em 2004, de uma extensa retrospectiva, que estreou no Castello di Rivoli Museo d’Arte Contemporânea, em Turim, e itinerou por museus em Sydney, Montreal e Joanesburgo".

Lembrando...




Fez ontem dez anos que foi assassinado Yitzhak Rabin.


"Cada um de nós é culpado perante todos, por todos e por tudo"

Dostoievski

quinta-feira, novembro 03, 2005

Enigma


Um novo ser me nasce em cada hora.
O que fui, já esqueci. O que serei
Não guardará do ser que sou agora
Senão o cumprimento do que sei.
SARAMAGO, José, "Os poemas possíveis", p.109
Foto: "Cabeça", Santa Rita pintor
(Para quem quiser vê-la ao vivo, encontra-se no Museu do Chiado, um espaço que recomendo vivamente)

quarta-feira, novembro 02, 2005

Pedras que abraçam o céu (por sugestão de Olhos da Noite)

"(...) alguém tem de novo de inventar o mundo"

ROSA, Luis, "O terramoto de Lisboa e a invenção do mundo", p. 185
(Foto minha)

terça-feira, novembro 01, 2005

...

Quero ser outro e é outro que eu me vejo
sentindo que sou eu sem saber quem sou eu
Escrever é sempre outra versão
de um texto que nunca se chegou a compôr
Mas é igualmente a diversão
que nos faz vacilar entre o eu e um outro
sem necessitar de ser um ou outro

Há sempre quem procure saber quem é o autor de um texto
como para lhe pedir contas ou referências exactas
mas quem escreve desvia a trajectória paralela
para ser o que já sendo um outro
nunca o é o seu movimento para ele

Ninguém pode decidir Ele é um outro
porque ele é o processo de uma transformação
em que é uma invenção o reconhecimento
e que só é não sendo ou sendo um outro

ROSA, António Ramos, Antologia Poética, Círculo de Leitores, 2001, p.359