terça-feira, novembro 08, 2005

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã ...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã.
E assim será possível, mas hoje não ...
Não, hoje nada, hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico ...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã ...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte ...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos ...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã ...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro ...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã ...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância ...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-à,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital ...
Mas por um edital de amanhã ...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã ...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo ...
Antes, não ...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã ...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã ...
Sim, talvez só depois de amanhã ...

O porvir ...
Sim, o porvir ...

Álvaro de Campos, Poesias, p.247, 248

5 Comments:

Blogger wind said...

Sempre o adiar. bjs

10:48 da tarde  
Blogger AQUENATÓN said...

Boa noite Dulce !

Ofereço-te do mesmo autor este poema:

Uns Versos Quaisquer

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo . . .
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos . . .

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma cousa que nada já deseja . . .

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo . . .

Porque o que importa é que já nada importe . . .
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos . . . Tudo é o mesmo . . . Eis o momento . . .
Sejamo-lo . . . Pra quê o pensamento? . . .

11.10.1914

Bji

11:30 da tarde  
Blogger Su said...

ai.ai..linddoooo
alvaro de campos, um amado meu
o porvir, o porvir

"Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã ...
Sim, talvez só depois de amanhã ..."

jocas maradas

11:42 da tarde  
Blogger luis manuel said...

Hoje é o amanhã.
Talvez hoje, ainda não possa.
Amanhã é que é o dia.
Os planos serão elaborados amanhã...

A lágrima sentida na vontade de chorar recolhe-se.
Os lábios parecem descomandados, desobedientes ás ordens cerebrais.
Descontraiem-se, teimosamente.
Forçam o sorriso, para o qual não se julgavam preparados, nem livres de o fazer.

Será o provir assim ?
A pose pública da alegria de estar vivo ?

Um abraço

9:16 da manhã  
Blogger José said...

E se o amanhã não chegar!

3:14 da tarde  

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