domingo, outubro 30, 2005

Memórias


Manhã de domingo no meu café dos domingos. Muita gente no interior e esplanada deserta. Gosto das esplanadas porque são mais silenciosas, o que me permite ler. Aqui dentro, o barulho das vozes e da televisão não me deixam concentrar.
Gosto de ler pela manhã. Tive um professor de Filosofia que tinha um ritual: todas as manhãs, com sol ou chuva, na areia ou abrigado, dirigia-se para a praia e ali ficava durante três horas a ler. Gostaria de seguir o seu exemplo, mas não me é possível fazê-lo todos os dias. Ao domingo, no entanto, tenho também este ritual. Tomo o café da manhã com uma amiga, e até ela chegar, e porque eu chego cedo, leio pelo menos durante duas horas.
É de manhã que estou mais desperta, mais activa e com as minhas forças e atenção intactas, por isso muito mais receptiva às leituras. Hoje porém, distraí-me, o pensamento voou-me para outros dias, activado por uma frase que li, e que me ficou a martelar na cabeça.

"Nos campos e nos antros, nas cavernas incalculáveis da memória, incalculavelmente povoadas de espécies incalculaveis de coisas, por todos estes lugares eu me desloco, agora voo aqui e ali, sem encontrar limites em parte alguma" **

Mas eu tenho limites! E esses limites encontram-se na minha infância. Até aos dez anos são poucas as coisas de que me recordo; enquanto que o meu marido tem uma memória que remonta até aos quatro anos de idade, para mim esse tempo da infância praticamente não existe.
Para além da lembrança das casas que habitei e de algumas recordações esparsas, não há nada na minha memória. Apenas mais tarde os acontecimentos ganham alguma ordem.
Alguma explicação lógica deve haver para este bloqueio. Tento recuar no tempo e colocar-me numa determinada casa que habitei , e a partir daí, recordar o quotidiano, mas as imagens que se destacam são flashes desbotados de um filme partido e mal remendado.
Uma lembrança lamento não possuir. A memória dos meus pais juntos. Uma memória suficientemente forte para qualquer criança recordar. Essa, não a possuo, por ser demasiado antiga ou efémera. Dela apenas resta a fotografia do dia do seu casamento. Um sorriso a preto e branco numa pose estudada. Uma pose que não perdurou.
A caverna da minha memória é assim um antro escuro e labiríntico com recantos que nunca descobri e portas disfarçadas que nunca consegui abrir. Nela se amontoam coisas insuspeitáveis, testemunhas de um tempo passado, cacos de uma vida que não me recordo de ter vivido, projecções já esbranquiçadas pela poeira dos anos.
Os mais velhos costumam lembrar-se mais nitidamente dos acontecimentos antigos. Será preciso chegar aos oitenta anos para me recordar da infância?

(**Excerto de Umberto Eco, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", p.41, e foto em www.trekearth.com)

10 Comments:

Blogger Su said...

amei ler e reler
gosto de eco

jocas maradas com esplanadas

2:42 da tarde  
Blogger wind said...

Excelente excerto. Também há coisas que não me lembro. Acho que o nosso "arquivo" seleciona tudo:) bjs

5:51 da tarde  
Blogger Elsa said...

Jà te "ouvi" falar tanto deste livro que me parece que vou acabar por comprá-lo
;-)

beijo

7:04 da tarde  
Blogger lena said...

adorei o que aqui li, não conheço o livro terá que ser umas das minhas aquisições
lembro-me de algumas coisas de criança, principalmente porque era meia "pestinha" ou talvez mais maria rapaz não sei bem
gosto de ir ao mar todos os dias, de manhã antes de começar a trabalhar, muitas vezes não consigo e vou à hora em que o sol beija o mar

um beijinho meu para ti

lena

lena

9:14 da tarde  
Blogger Dameuntango said...

Eu também prefiro as esplanadas... mesmo quando está frio... Permitem-me estar mais próximo de mim...

11:16 da tarde  
Blogger luis manuel said...

Na verdade rebuscar as memórias, é um bom exercício.
É algo que está no nosso arquivo, mas á espera de ser seleccionado por nós.
E, desde que se revele para uma atitude construtiva...é o melhor. As experiências estão lá.
Um abraço

1:57 da manhã  
Blogger A. Narciso said...

Gostei muito de ler este relato de Domingo. Muito bem escrito.
Abraço

11:12 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Eu tenho recordações até muito pequeno. Felizes quase todas. Uma, no entanto, talvez por ser traumática, fui-a reconstruindo lentamente a partir de há 8 ou 9 anos e só a recordei totalmente há cerca de 4 ou 5 anos. Agora, não sei se se trata duma recordação real ou uma construção do meu espírito. E já não tenho a quem perguntar.

1:40 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Bonito o teu texto. Eu recordo coisas soltas, e por vezes penso, se mas contaram, ou se me lembro mesmo delas...beijinhos

8:47 da manhã  
Blogger saisminerais said...

Dulce, não precisas de seguir os rituais de outros. Cria somente o teu à tua medida e serás compensada! Esta tua reflecção é linda, pena não te lembrares de coisas que gostavas de saber! Eu tb tenho os meus problemas coma memoria, mas lembro de uma passagem que me marcou a vida inteira! e tem a ver com algo que minha mãe me recusou para sempre porque ja vinha a mana a seguir a mim e so temos ano e meio de diferença! Eu nem seque entendi que a recusa tinha a ver com a bravidez, só entendi que ela ja não podia pegar mais em mim! e eu tanto queria...
beijo e parabens pelos teus belos textos

2:42 da tarde  

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