sábado, outubro 22, 2005

Sobre a infanticida Maria Farrar


Maria Farrar, nascida em Abril,
menor, sem sinais particulares, raquítica, orfã,
sem qualquer condenação anterior, ao que se julga,
é acusada de ter assassinado uma criança, da seguinte forma:
Conta ela que já no segundo mês
em casa de uma mulher, num sótão,
tentou expulsá-lo com duas injecções
dolorosas, como se calcula, mas não saíu.

Não se indignem por favor,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Assegura contudo, ter pago de imediato
o estipulado, ter continuado a apertar a cintura,
ter também tomado aguardente com pimenta moída,
o que apenas serviu de forte purgante.
O corpo estava inchado e sentia também
dores frequentes quando lavava os pratos.
Estava ainda em idade de crescer, segundo ela própria dizia.
Rezou à Virgem Maria com muita fé.

a vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

As orações, ao que parece, não serviram de nada.
Pedia-se demasiado. Quando já estava mais cheia
sentia vertigens durante a missa. Suava muito.
E também suava de medo, com frequência, diante do altar.
Mas fez segredo sobre o seu estado
até ser surpreendida pelo nascimento.
Isto resultou, pois ninguém pensava
que ela, tão pouco atraente, pudesse ser presa de tentação.

E também a vós, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Nesse dia, diz, bem cedinho,
estando a limpar as escadas, sentiu como que umas unhas
a arranhar-lhe o ventre. A dor
sacudia-a, mas conseguiu manter-se calada.
Todo o dia, enquanto estendia a roupa que lavou,
pensou e tornou a pensar, até se dar conta,
de coração apertado, que tinha mesmo que parir.
Só tarde subiu para o quarto.

A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Quando estava deitada, vieram chamá-la;
tinha nevado e teve que varrer.
O trabalho durou até às onze. Foi um dia bem longo
Só pela madrugada pôde parir em paz.
Conta ela que pariu um filho.
O filho era igual aos outros filhos.
Mas ela não era como as outras, embora...
Não há motivo para brincadeiras.

A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Assim, pois, deixemo-la contar
o que sucedeu com este filho
(diz ela que não quer esconder nada)
para que se veja como somos.
Diz que ficou pouco tempo na cama
angustiada e sózinha;
sem saber o que aconteceria a seguir
obrigou-se a conter com esforço os gritos.

A vós também, peço que não se indignem
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Como o quarto também estava gelado,
segundo diz, arrastou-se com as últimas forças
até à latrina e ali
(quando, já não se recorda) pariu
sem ruído até ao amanhecer.
Estava, diz ela, muito perturbada nesse momento,
já meio entumescida, mal podia segurar o menino
prestes a cair na latrina dos criados.

A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Então, quando ía da retrete para o quarto
- antes, diz ela, não aconteceu nada - a criança
começou a gritar. Isso afligiu-a tanto
que se pôs a bater-lhe com os dois punhos,
cega sem parar até a criança ficar quieta.
Então, levou o morto
consigo para a cama durante o resto da noite
e pela manhã escondeu-o na lavandaria.

A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.

Maria Farrar, nascida em Abril,
falecida na prisão de Meissen,
mãe solteira, condenada,
quer mostrar-vos os crimes de todo o ser humano.
Vós que paris sem complicações em lençóis lavados
e chamais "bendito" ao vosso ventre prenhe,
não condeneis estas infames fraquezas
porque, se o pecado foi grave, o sofrimento também foi grande.

Por isso peço que não se indignem
pois toda a criatura precisa daajuda de todos.

Bertolt Brecht

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Brecht chamava-se a si próprio de o pobre do Bertold Brecht, mas creio que isso é mais aplicável à generalidade da condição humana. Beijos.

10:05 da tarde  
Blogger AQUENATÓN said...

Olá Dulce !

Até arrepia esta história da tragédia humana.
Como somos pequenos de alma ...

Bj

11:40 da tarde  
Blogger luis manuel said...

A condição humana é na verdade muito pobre nesse aspecto.
Porque sofremos muitas fraquezas.
Porque concebemos muitas culpas.
Ali... ali ao lado, mais perto do que se julga.
Elas e eles estão lá.
Mães, fetos, embriões.
Parir sem ruído, emudecidas pelo medo, não pelo esquecimento.
Teremos que repensar,o aborto.
Pungente esta tragédia.

"O indivíduo, na sua angústia de não ser culpado mas de passar por sê-lo, torna-se culpado" Soren Kierkegard

Um abraço

1:59 da manhã  
Blogger Noélia de Santa Rosa said...

Todos falam da violência das águas do rio, mas poucos olham às margens que o comprimem!

Onde estava o homem que usou o corpo de Maria Farrar, lhe fez aquele filho e a abandonou à sua triste sorte?

Maria Farrar não fez aquele filho sozinha!
Morreu sozinha porque foi apenas uma mulher sozinha...
Porque foi uma mulher... numa sociedade de homens que não sabem amar!

2:30 da manhã  
Blogger luis manuel said...

Pois não.
Não o fez sózinha.
Provávelmente nem o terá querido fazer.
Mas nem isso permitiu que outras mulheres a acolhessem, e impedir o seu triste fim.
Terá sido por ela se sentir diferente das outras ?
Mas onde poderia haver a diferença ?
Nos lençois lavados diz.
Na vergonha ?

Essa será de todos nós, Homens e Mulheres.
Não de uma única sociedade de homens.
Isso sim, de uma sociedade pobre de amor.

2:59 da manhã  
Blogger Maria said...

Todos somos culpados. Não só por permitir. Nâo só por impedir. Mas essencialmente por calar.

12:47 da tarde  
Blogger AQUENATÓN said...

Existe um Templo e um Deus em cada um de nós.
Se acreditarmos em nós, acreditamos no Universo.
Bj

2:46 da tarde  
Blogger Noélia de Santa Rosa said...

Luis Manuel
As outras mulheres, as que não a acolheram, não o fazem muitas vezes por medo.

Por medo de serem rejeitadas pelos homens que as dominam ao acolher uma mulher sozinha!

Quando uma mulher consegue sustentar-se a si mesma e ter com que sustentar um filho, acredita:
Está-se a borrifar para o homem que lhe faz o filho e que depois se descarta das responsabilidades!

Não que não existam homens que amem e sabem amar!

Eu falei na maioria!
Felizmente existem honrosas excepções à regra e cada vez há mais.

Mas Maria Ferrar pertencia a uma geração onde o homem não aprendia a amar e sim apenas a dominar e onde a mulher aprendia a calar e a ter medo de se revoltar e tomar o lugar a que tem direito como ser humano que é!

6:27 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Nunca tinha lido, e fiquei arrepiada! Beijinhos

7:21 da tarde  
Blogger luis manuel said...

Noel
É certo que Maria Ferrar pertencia a outra geração.
É certo também que nesta geração esse medo ainda vive. E revela-se até de forma bárbara nalguns países, seja por questões étnicas, sociais ou religiosas.
É assustadoramente certo que nas sociedades ditas civilizadas, o medo não se mostra, não tem rosto, mas ainda por cá anda.
Inacreditavelmente sabe-se que casos de violência doméstica no nosso país são incontáveis.
É esta sociedade que o permite. De mulheres e de homens.
E por muito que custe, algumas olham para o lado.
Porquê ?

Obrigado pelas suas palavras, e pelo texto que a Dulce trouxe até nós.
Por isso, há vozes que não se calam !

11:26 da tarde  
Blogger Unknown said...

Muitas Marias farrar existem pelo nosso Brasil. Muitas mulheres que, envoltas pelo estado puerperal, cometem este tipo de crime. Assim a vida imita a arte.
Como advogada criminalista e como professora de Direito Penal, entendo a angústia que este "estado puerperal" provaca nas mulheres. Como professora de Teoria da Literatura, só fico cada vez mais convencida da relação efetiva entre Direito e Literatura.

4:03 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

nossa jamais pensei que uma mãe pudesse fazer isso com o propio filho!
mais foi justo o que fizeram com ela pois todos tem direito a vida!!!

8:16 da tarde  

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