Rua 1º de Dezembro
Na semana passada, os meus passos apressados calcorreavam-na como sempre, como se ali já não estivessem, quando uma cena me fez estacar o passo e a respiração. Sentado quase à porta do "Celeiro" um pedinte negro de idade incerta bebia vinho tinto e cantava uma canção qualquer sobre felicidade que lhe dava um ar ainda mais miserável do que se entoasse canções de tristeza e amargura.
Emocionado pelo canto tão angustiado daquele homem de barba por fazer, outro pedinte que conheço há muitos anos dos meus constantes passeios ao Chiado, acercou-se do homem, baixou-se, disse-lhe uma ou duas palavras inaudíveis para mim e fez que se ía afastar.
Mas o homem de tez escura não parava de cantar e não parava de cantar aquela canção tão triste que falava de felicidade. Então, o outro pedinte que já ía para se afastar na mira de encontrar a generosidade de alguém que lhe desse mais umas moedas, voltou atrás, meteu a mão no bolso das calças, tirou de lá as moedas que tinha, algumas castanhas, mas também muitas amarelas, e enfiou-as no chapéu do mendigo-cantor. Só depois se afastou.
O homem de barba por fazer há tantos dias nem se mexeu. Continuou naquela toada que só ele mesmo podia escutar. E o outro já ía longe, indiferente ao seu gesto generoso já quase não se via, na pressa de recuperar o dinheiro que a sua emoção atirara para o fundo do chapéu que repousava sobre a calçada da Rua Primeiro de Dezembro, rua a que eu nunca dei a menor importância.
Este pedinte generoso não é português. Sempre que se me dirigiu, fê-lo em língua estrangeira, mas tornou-se irmão daquele português que cantava na rua, tornou-se meu irmão...
Quantas vezes lhe neguei esmola? ... Quantas vezes vi negarem-lhe esmola?... Por pressa ... Por desleixo ... Porque o dinheiro poderá ser usado em droga ou em álcool ... O que é que nós temos a ver com isso? ... As dependências que possa ou não ter são problema dele. O meu é não virar as costas a quem pede ajuda. Se quem pede me estiver a enganar, isso é um problema que ele e a sua consciência terão que tratar. E, se calhar, o dinheiro que eu não dei porque imaginei que fosse para a droga, era apenas para partilhar com o pedinte negro que canta uma canção angustiada sobre a felicidade.
Na Rua 1º de Dezembro. Uma rua com grande história para mim!
Tiago Torres da Silva, "Manhãs de Insónia", in Jornal de Letras, de 24-6/06/2006, p.40