domingo, julho 30, 2006

Abraçando-me

No espaldar do quarto crescente recosto os sonhos caiados de fresco enquanto o lago projecta fluxos de água ao ritmo teclado das luzes.
Sentada à tua frente, observo-te - os olhos claros iluminando o sorriso que idealizei.
Sentado à minha frente observas-me - a cabeça baixa e ligeiramente inclinada sobre o bloco onde rabisco e risco uma prosa que não desvendas.
Apoias o queixo nas mãos num gesto concentrado em que me envolves.
Sinto o teu olhar sobre mim enquanto me perco no horizonte. Sinto a carícia pensada das tuas mãos nas minhas enquanto busco e construo as frases que hei-de colocar no papel.
Sobre o ruído incómodo das vozes sobrepõe-se a tua respiração pausada que adivinho.
Olho através de ti os gestos sonhados e as carícias prometidas.
Consigo ouvir, ditas pelos lábios que cerras, as palavras que me dirias.
Recostas-te colocando os braços estendidos sobre a mesa. Pressinto-os assim em busca das minhas mãos que entretanto se perdem nas palavras.
Rodo a caneta entre os dedos enquanto persigo uns faróis que se deslocam ao longe. Com a outra mão prendo o papel com dedos que se transmutam em aranhas de longas pernas.
Esqueço-me das tuas mãos estendidas. Dissipam-se.
Perco-me dos caminhos que o teu olhar me aponta. Esvaem-se.
Fixo o branco da folha e deixo-me enredar por estes traços azuis que freneticamente desenho.
Quando te procuro, já não estás.
Estás mais além. Recostado no quarto crescente ... abraçando os meus sonhos.

Varandas

As varandas permitem-nos sempre observar o todo - dar coerência e amplitude a paisagens que, vistas de outro modo, não teriam por vezes a magnificência que depois adquirem.
Quando digo varandas digo também mirantes, porque colocados em sítios altos nos oferecem quadros que jamais esqueceremos.
Conheço duas varandas espectaculares, felizmente de amigos, o que me dá a hipótese de desfrutá-las de vez em quando.
Uma sobre o Tejo. Do 10º andar o nosso olhar deleita-se sobre uma larga baía bordejada de casario. À tarde, as diversas cambiantes de azul alternam-se progressivamente até que o manto de estrelas se desdobre no horizonte e cubra toda a terra.
Outra, sobre o mar. Já falei dela antes - verdadeiro quadro vivo que não me importaria de possuir.
Depois, há as varandas sobre as cidades - os miradouros - e as outras sobre os vales.
Na Lisboa da minha adolescência, Santa Luzia, à qual não voltei, e de que guardo uma imagem de azulejos amarelos e azuis debruçada sobre a cidade. Sobre o muro em que me apoiava, arcos bordados de verde ofereciam uma sombra protectora. Já nessa altura gostava de me refugiar nestes locais, em fins de tarde amenos ou em manhãs soalheiras e luminosas.
Sobre os rios, estas varandas privilegiadas permitem-nos seguir o seu traçado sinuoso e perdermo-nos no seu leito cravado na paisagem.
Do alto de um miradouro vemos a geometria dos canteiros que alguém traçou na planura, parece que com a precisão de régua e esquadro, percebendo-se os seus limites pela alternância dos verdes. Da cidade velha de baixo casario destacam-se aqui e ali as torres das igrejas, vigias da planície - enquanto que o majestoso Tejo desliza vagaroso por um leito traçado desde há muito.
De uma outra varanda guardo uma imagem viva - uma que protege o vale e enfrenta a serra. Em baixo serpenteia o Mondego por entre abrupta paisagem, enquanto os mortos velam no seu ninho o seu passar preguiçoso. Aqui o tempo parou, todo o ruído engolido pelo chilrear cuidadoso da passarada. A paisagem suspensa de um olhar que se quer eterno.
Varandas. Poleiros em que nós, simples mortais, podemos poisar e levantar voo em pensamento.

sexta-feira, julho 28, 2006

...

"No princípio de tudo só existiam as Palavras, e pouco a pouco as palavras foram fazendo o mundo.
Mas não nos deixemos enganar.
Porque o mundo não foi concluído ainda"

RICO, Eugenia, "A idade secreta", Casa das Letras, Lisboa, 2006, p.177

quinta-feira, julho 27, 2006

Noite

Uiva a Lua a ausência do lobo,
- a solidão para sempre presa do seu círculo de luz.

Estridente a noite grita,
ferida dos passos que a rasgam.
Nos lábios dos amantes
desenha-se o nome da ausência.

Os corpos famintos de palavras.
Os olhos sedentos de carícias.
A perda gravada
na palma das mãos.

Uiva a noite banhada na solidão da Lua,
e a luz estilhaça-se!

quarta-feira, julho 26, 2006

Se numa palavra te dissesse ...

Se numa palavra te dissesse,
diria doçura.
A dos teus olhos
e a dos teus abraços
que desde menina
me procuram, carinhosos.

Se numa palavra te dissesse,
diria força.
A das tuas mãos
que agarram o mundo
e da tua vontade
que rasga firmemente os caminhos.

Se numa palavra te dissesse,
diria beleza.
A que te possui quando, feliz,
constróis os teus horizontes.
E quando serena,
nos envolves com o olhar
no fim de uma ausência.

Se numa palavra te dissesse
minha filha,
diria orgulho.
O meu.
Por seres como és.
Por existires.
Por fazeres de mim uma melhor pessoa.

(Para a minha filha "caçula" que faz hoje 22 anos)

terça-feira, julho 25, 2006

Tempo

Nunca é tarde
uma pessoa que é gente, homem mulher

Amar, sonhar, olhar, zangar
uma outra vez
largar começar

Contar a quem passar que o
ontem não interessa recordar

Estranha fruta encontrada no chão de uma casa onde gente
grande pequena espera, sabe-se lá,
Talvez vida, outro, não se viu falar,
tempo, porquê?
Olhos na televisão pés na mesa,
sombras nas sombras, nada e tudo. Mudar ...
tudo tudo tudo

Esperar o tempo
mostrar
gente
renascer e viver

Amar, sonhar, olhar, zangar
uma, outra vez
largar ... começar

José E. Abreu in "Tantas mãos a mesma Primavera", Oficina do Livro, 2005, p. 6

segunda-feira, julho 24, 2006

Como fumo ...


Bate o sol nesta mesa encostada à janela. Reflectem-se as traves da cadeira no seu tampo, e quase parecem o seu prolongamento. Pelos altos vidros passa a rua. Sujos do pó de vários meses. Baços da chuva do Inverno e do pó da estrada.
Pouca gente aqui. É manhã ainda e a vida só existe lá fora.
A música é uma constante. Torna-se o cenário invisível para o que imagino.
Não queria estar aqui. Antes adormecida ou inerte - insensível -, naquela redoma protectora e maternal que nos afasta da dôr. Há uma angústia latente, uma espécie de nuvem que se adensa desde manhã. Não a quero explicar. Não a quero entender. Ela existe e eu apenas gostaria de ignorá-la. Tento. Esforço-me.
Procuro fazer o plano do dia, organizar-me através dos objectivos, mas insidiosamente ela aproxima-se tornando-me vulnerável e frágil. Dependente. Insatisfeita.
De costas para a entrada apenas ouço o barulho da rua e de alguém que entra. O ruído da louça no balcão estilhaça o silêncio que se deseja. E a música sobressai de tudo isto. Nos vidros as sombras da vida projectam-se no vazio. Nos ouvidos, os acordes em que me quero perder.
Karaoc - sexta feira, diz o cartaz afixado na parede.
Dou por mim a passar os dedos nos lábios traçando-lhes o perfil naquele gesto nervoso que me caracteriza. Os dentes apertam-se e rangem enquanto o pensamento se força a ficar preso neste movimento instintivo, congelando assim toda e qualquer divagação.
Nestas alturas sei - ou imagino - que o semblante se carrega e a testa se enrruga num espasmo que não contenho.
Um pássaro fere os vidros - breve no seu esvoaçar.
Breve é também a minha passagem neste tempo infinito. Breve e ténue como fumo.

(Foto minha)

domingo, julho 23, 2006

Reflexão..

"Olhar para nós, pegar naquilo que somos, tantas vezes caóticos e contraditórios, e sermos capazes de assumir os nossos conflitos mais íntimos, tentando sair deles da maneira mais certa é um acto de grande coragem. A tentação comum no entanto, é "passar ao lado" ou fingir que não temos todos estes dilemas interiores."

Esta capacidade de olhar para dentro de nós mesmos com o distanciamento e o espírito crítico necessário, surge apenas julgo eu, numa idade mais madura da vida. Eu costumo dizer e verdadeiramente sinto-o, que só assumi aquilo que sou, aos 40 anos. Até aí andei ainda à deriva dos desejos dos que me rodeavam, tentando muitas vezes ser, contra a minha vontade, o que os outros esperavam de mim. Só a partir de certa altura assumi os meus defeitos - sempre o mais difícil de aceitar -, os meus desejos - que não têm forçosamente que coincidir com os dos outros -, o meu carácter por vezes contraditório e volúvel e as minhas incapacidades.
As diferenças sentiram-nas quem comigo convivia de perto. Atitudes que antes eram engolidas deixaram de o ser, ideais que antes eram recalcados vieram à tona, batendo-me por eles. Nada se conquista sem luta. Nenhuma atitude é isenta de consequências, e isso eu aprendi à minha custa, mas também aprendi a satisfação de atingir os MEUS objectivos.
A psicóloga da minha filha disse-lhe uma vez, e a propósito da sua maneira de ser dócil e por vezes demasiadamente sensata, que é um erro agir sempre com o propósito de deixar os outros satisfeitos. Nem sempre isso é possível. Por vezes é preciso afirmarmo-nos deixando claro que não é esse o caminho que pretendemos, e isso não quer dizer que a nossa vontade seja de, deliberadamente magoar os outros. Há alturas em que os nossos objectivos não são coincidentes com os dos que nos estão próximos, em que as nossas vontades são divergentes, e não podemos contornar os nossos desejos - anularmo-nos - de todas as vezes que isso acontece, sob pena de estarmos a atentar contra a nossa integridade. Não podemos querer o mundo todo côr-de-rosa quando para nós ele se vai tornando cada vez mais cinzento.

"Ver com olhos de ver implica desistir de nos procurarmos onde não estamos e de nos vermos como não somos"

Este é o corolário que todos nós deveríamos colocar na nossa curta existência. Para sermos felizes. Mais verdadeiros. E podermos fazer felizes a quem amamos.

(Excertos em itálico retirados na revista XIS, suplemento do Público de 22/07/2006. Artigo "A Luz do dia" assinado por Laurinda Alves)

sábado, julho 22, 2006

O jardim dos meus sonhos


No jardim dos meus sonhos a luz era ténue e os sons abafados. A noite caira, e era mágica como em qualquer jardim encantado, e era doce como o alimento dos deuses.
No jardim dos meus sonhos os pés enterravam-se levemente num cascalho macio que rangia sob o meu peso.
Os caminhos adivinhavam-se esfumados pelas trevas. As pontes sob o lago eram traços estilizados pelo luar, e dos patos apenas um surdo cacarejar se ouvia.
No jardim dos meus sonhos as vozes eram sussurros transformados em carícias e as mãos prolongavam-se por abraços de mil e uma noites.
No jardim dos meus sonhos contavam-se segredos e os sorrisos transformavam-se em estrelas.
Nos meus sonhos nasceu um jardim e nesse jardim floriu um sonho.

(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, julho 21, 2006

Contrastes

Vejo o bulício da cidade e guardo em mim o verde das árvores eternas que me olham.
(E no ar rarefeito encontro a luz)
Olho o azul límpido do céu, e é o infinito perdido na névoa que entrevejo.
(E na pureza do verde descubro a única verdade)
O ruído da cidade atinge-me com menor intensidade que aquele desmedido silêncio.
(E ao canto da cigarra ligo os ecos do passado)
As palmeiras vergadas na berma dos passeios parecem olhar os fetos que rastejam aos meus pés.
(E o Verão traz consigo as tatuagens do Outono)
Tantas são as gentes que falam, gesticulam e gritam quando apenas me bastaria uma única voz ...
(... que apenas o silêncio reconhece !)

quinta-feira, julho 20, 2006

Ali ...

Ali no cume o ar era leve e fresco como uma gota de orvalho.
Ali no cume não existia passado ou futuro.
Ali no cume o olhar encontrava o infinito.
Ali no cume não existíamos. Pairávamos acima da vida e para além dela.
Ali no cume o verde dissipava-se na distância ao encontro do azul, e já não era o verde e também já não era o azul.
Ali no cume era a bruma pintada de luz. Era o verde salpicado de Verão. Era o azul num céu de aguarela.
Ali no cume era o silêncio - o silêncio rasgado pelo canto da cigarra mil vezes ampliado por um vale sem fim.
Ali no cume ficou algo de mim, eternamente preso naquele tempo suspenso, calado nas pedras, gravado no infinito que agora já sabe o meu nome.

terça-feira, julho 18, 2006

...

Haverá máquinas de sonhar. Seleccionarás num programa o que queres sonhar essa noite. De começo não haverá muitas opções, mas com o tempo os sonhos serão à escolha. Tu próprio poderás desenhar num ecrã azul o teu sonho favorito. E repeti-lo todas as noites.
Não sabemos que efeito terá isso sobre a humanidade futura, o controlo dos sonhos dos cidadãos será o sonho dos ditadores.
Os psicanalistas decretarão a morte do subconsciente e reciclar-se-ão logo a seguir como desenhadores de sonhos.
Porque as pessoas sem imaginação contratarão outras para que lhes proporcionem novos sonhos.
Uma vez controlados os sonhos, a humanidade acreditará controlar os imprevistos, saber tudo sobre si própria.
E então, como sempre que se cai nesse erro, alguma coisa acontecerá.

RICO, Eugenia, "A idade secreta", Casa das Letras, Lisboa, 2006, p.167

segunda-feira, julho 17, 2006

Aniversário

Hoje faço UM ANO na blogosfera.
Um beijo para todos aqueles que me têm visitado.

domingo, julho 16, 2006

Poema do domingo

Gedeão escreveu um poema com este nome. Começa assim:

"Aos domingos as ruas estão desertas e parecem mais largas."

Passei a manhã sentada na esplanada do "meu café dos domingos". Por vezes é difícil encontrar uma esplanada com algum recolhimento - algum do silêncio que preciso para escrever e pensar. Ali, hoje, consegui essa calma, concerteza à custa deste dia de intenso calor. As poucas pessoas que ali se encontravam liam pacatamente o jornal, e nem as conversas tidas em voz baixa, perturbavam o silêncio da manhã. Pude então pensar e escrever como gosto. Depois chegou a minha "amiga dos domingos" - companheira fiel desde há uns seis anos a esta parte. Foi ela minha professora de Inglês quando me decidi a retomar os estudos. Do convívio que só as aulas a adultos permitem, nasceu uma amizade que se veio a fortalecer com os anos. Já lá vão seis pelo menos, e o hábito do cafézito aos domingos enraizou-se. Sem combinações prévias e apenas a certeza de um encontro naquele café sempre mais ou menos por volta da mesma hora. Desde os primeiros encontros que as conversas correm fluidas, facilitadas por uma empatia que nasceu desde cedo. Um pouco mais velha que eu e com uma rica experiência de vida, sou eu que sempre mais aprendo com ela, dando-lhe em troca toda a minha capacidade de saber ouvir.
Café tomado, cada uma ruma às suas casas - às suas responsabilidades - desejando-nos mútuamente uma boa semana. No próximo domingo lá nos encontraremos de novo para pôr a conversa em dia, contar as últimas novidades ou chorar as últimas mágoas, numa amizade que se quer feita de partilhas.
Pagos os cafés saimos para a rua, e é aí que lembro o poema de Gedeão.
Encontrar no centro da cidade um momento de profundo silêncio é coisa verdadeiramente rara. E foi com esse silêncio que nos deparámos. Ela notou-o primeiro e até falou baixinho com receio de o perturbar. Nem um carro passava, nem uma fala se ouvia ... Durante uns poucos segundos o silêncio foi total.

"É domingo. E aos domingos as árvores crescem na cidade, e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas."

Despedimo-nos e cada uma seguiu o seu caminho. Um pouco depois, um novo silêncio, mas desta vez entrecortado pelo cantar das cigarras.
Sempre alio o Verão a este cantar. Intenso e persistente, corta o ar vibrando nos nossos ouvidos. Lembro com ele os regressos a casa ao fim da tarde depois de um dia de praia. Os sapatos pisando os ramos secos no caminho, o sol já baixo razando o horizonte. E aquele acompanhamento vibrante que enche o silêncio. Depois, junto à tapada, olhando por entre os juncos, viam-se os sapos em pequenos saltos assustados para dentro de água e mais à frente, da lisura das águas emergiam subitamente em redondos saltos, alguns peixes.
Mas esses foram outros domingos, lembrados em "slides" que vêm agarrados aos sons, e este domingo de hoje é na cidade. Nesta cidade que como diz Gedeão "as ruas ficaram mais largas, o ar mais limpo, o sol mais descoberto".

sábado, julho 15, 2006

Noite

Naquela planura iluminada pelo luar apenas o mar se ouvia. As estrelas eram os únicos focos de luz que pareciam decorar aquele toldo imenso e negro que nos abrigava. As ondas acariciavam a areia de mansinho, numa volúpia lenta que a humedecia e a deixava borbulhante de vida.
Ao longe dois pontos de luz à beira-mar. A sua intensidade não deixava perceber o que havia à sua volta. À medida que nos aproximávamos distinguíamos alguns sinais de vida. Várias pessoas se agitavam à sua volta enquanto outras mantinham alguma distância.
Um pequeno barco chegara e era o peixe que se aguardava.
Parámos. Ficámos presos daquele círculo luminoso, qual mariposas atraídas pela luz. As pessoas tendiam a fazer um círculo à sua volta. O tractor puxou a rede que à primeira vista parecia quase vazia. Depois, um plástico grande foi estendido na areia e a rede despejada do seu conteúdo. E foi a vida em fim de tempo que ali brotou.
Centenas de pequenos peixes prateados viviam freneticamente os seus últimos minutos. Não os reconheço mas ía ouvindo falar de sardinha e carapau e também de robalo. Três ou quatro recipientes foram atirados para o meio do peixe e a azáfama tomou conta dos pescadores. Vestidos de escuros oleados, a cabeça coberta e as mãos enluvadas, debruçaram-se sobre o pescado e rapidamente o separaram por espécie. De vez em quando atiravam para trás de si um ou outro peixe, um ou outro caranguejo, um ou outro peixe aranha que os miudos espreitavam com curiosidade. Estas sobras eram rapidamente apanhadas pelas pessoas que, num círculo concêntrico se dispunham à volta do palco principal.
Aos nossos pés a vida tardava a esvair-se. Os olhos salientes olhavam o irreconhecível, a boca abria-se num desespero de encontrar o alimento para a vida enquanto o pequeno corpo vibrava violentamente ao ritmo dos últimos acordes de uma trágica melodia.
Um pescador pegou num deles e depois noutro, e com um movimento brusco e seco atirou-os de novo ao chão, cessando assim de imediato a sua luta pela vida.
Na areia molhada, agora apenas os vestígios de uma cena que terminou. Pegadas e rastos que o mar lentamente há-de recuperar para si.
A noite retoma o seu lugar preponderante, engole a vida que se dispersa e espalha sobre nós o seu inimitável manto de silêncio.

sexta-feira, julho 14, 2006

Um dia de sonho

Cheguei a casa completamente estafada. Pousei as chaves na mesa e deixei pura e simplesmente, cair todos os sacos no chão. Com um suspiro olhei-os. Não conseguia deixar de sorrir. Desde manhã que ainda não tinha conseguido parar de sorrir.
Atirei-me para o sofá e ali fiquei - um sorriso meio idiota nos lábios - a olhar para todos os sacos e saquinhos que se espalhavam à minha frente.
Sacos da Fnac, sacos daquela loja nova que encontrei ... como se chama? não consigo ler no saco ... e agora reparo melhor ... os sacos da Fnac estão diferentes ... letras amarelas sobre fundo branco! Não era ao contrário? Não interessa ... mudaram, uma mudança também é preciso!
Atirei-me primeiro a estes. 1, 2, 3, 4, 5 sacos ... contei, e o sorriso acentuou-se. Há tanto tempo que queria fazer isto. Chegar à Fnac, pegar num daqueles cestos de compras e enchê-lo com o que mais me apetecesse. Comecei a retirar os livros dos sacos ... um a um. Dezoito livros. Também convinha não gozar tudo de uma vez só!! Para o final ficou o saco dos CDs e DVDs. Dois filmes, algum jazz, alguma música clássica e uma ou outra coisita que ansiava ter.
Virei-me para trás e olhei para a estante à procura de sítio para arrumar as minhas últimas aquisições. À primeira, não havia lugar. As prateleiras já tinham livros arrumados em várias direcções. Ao alto ... atravessados ... uns em cima dos outros ... ! Bem, pensaria nisso depois.
Agora, a roupa! Cinco sacos mais. Até nem exagerei! Três pares de calças, seis t-shirts, dois pares de sandálias, umas delas lindas de morrer para a praia ... alguma lingerie a que não consegui resistir e ... falta qualquer coisa ... ah! a minha mala. Agora deu-me para gostar de malas. Com esta já são sete. Enfim ... cada um com as suas manias!
Ainda falta a outra - a grande - mas essa ficou lá - fiquei de ir buscá-la depois -, afinal só vai ser precisa na sexta feira.
Sexta feira !! Para a semana !! Como é que vou dizer isto cá em casa?
- "Gente" para a semana vão passar sem mim durante sete dias!!!
Caem todos para o lado!!!
Partida na próxima sexta à noite para Madrid naquele comboio de sonho. Regresso na outra sexta. Uma semana por minha conta. Barcelona, Vigo, todo o norte à minha espera.
Será que vão aceitar? Vai cair como uma bomba! O bilhete já está na minha mala, bem guardadinho - mais um sonho realizado!
Ouço um buzinar lá fora. Será que são eles que chegam? Vou espreitar à janela ... o corpo subitamente pesado nem se move ... e a buzina a tocar ainda, insistente!!
Com um movimento brusco consigo soerguer-me ...
oh! mas é da cama que me levanto, e a buzina ... RAIOS ... é apenas o meu despertador!

quinta-feira, julho 13, 2006

A Vila


Aquele percurso, fi-lo durante quase vinte anos ...
Hoje voltei.
Registar as diferenças de nada serve. São tantas e tamanhas que quase não reconheço certos locais. Noutros subsistem ainda alguns traços do passado - uma rua que reconheço ou um prédio agora em ruínas. Também os comboios hoje são diferentes. Mais frescos, e dizem que bastante menos seguros. As estações - diferentes também. Umas completamente modernizadas - todas à imagem e semelhança da anterior. Noutras ainda descortino o velho edifício com o antigo relógio verde na parede.
Há quase trinta anos que ali não passava...
Hoje voltei.
A Vila de Sintra continua bela como sempre foi. Um pouco mais caótica talvez. Vejo-a agora de uma outra forma. Os olhos de hoje, apesar de os mesmos, olham com mais pormenor. Observam de outra maneira. Calcorreei velhos caminhos. Deixei perder o olhar em antigas paisagens. Retemperei as forças no verde que me envolvia.
O Castelo pareceu-me hoje mais perto. Tâo sobranceiro à Vila. Dominador.
Há locais que não mudaram.
(Apenas eu mudei.)
Permanecem para que eu os reconheça quando os procuro nos arquivos da memória. Outros, descobri-os hoje pela primeira vez.
Passeei pela Volta do Duche - uma estrada arborizada e fresca que serpenteia até ao Palácio da Vila. Deixei-me acolher pela frescura daquelas árvores centenárias que me lembram ainda outras árvores, outra frescura. Deixei-me seduzir pelo aroma das inúmeras flores que brotam da paisagem e no verde encontrei a tranquilidade e a paz que me acalmam e me fazem feliz.
De máquina fotográfica na mão procurei os melhores ângulos, o melhor enquadramento - aquele que os meus olhos primeiro registam. Sentei-me um pouco num muro baixo e aproveitei para desfrutar de toda a beleza envolvente.
Uma da tarde. O sol ía a pique. Em todas as sombras alguém descansava e também eu as procurava para me refrescar.
Este percurso nunca o havia feito. Pelo menos, não com estes olhos. Pelo menos, nunca só.
Hoje voltei.

(Foto minha)

quarta-feira, julho 12, 2006

A fotografia que não tirei

Posso fotografá-lo? Era isto que eu devia ter dito ontem à noite quando passei por ele. E depois ... ouvir um sim ... ou ouvir um não ... ou simplesmente dar-lhe algum dinheiro para o fazer. Mas não tive coragem.
Foi no Rossio ontem à noite. Meia-noite e tal. Uma noite de Verão abafada, onde a brisa desejada mal se fazia notar. Atravessava o largo conversando e olhando as poucas pessoas que por ali circulavam. Só o vi quase no momento em que passei por ele. Parecia uma fotografia antiga em contra-luz, recortado na noite - apenas iluminado o seu recorte.
Encostava-se a uma estrutura metálica que lembra uma fonte (será mesmo uma fonte?), numa posição quase elegante.
Vestia de escuro - cinzento ou apenas sujo - e pareceu-me que vestia mais roupa do que seria desejável para uma noite quente como a de ontem. Com o cotovelo apoiado na estrutura, olhava para baixo. O cabelo era escuro - ondulado, despenteado, denso -, e a barba comprida e revolta.
Presa da sua imobilidade, procurei com o olhar o que ele olhava com tanta atenção. No calcetado da praça dispunham-se junto a ele, dois pequenos e redondos focos de luz amarelada. Com um dos pés descalço - o sapato gasto e sujo ali ao lado - colocava-o, apenas apoiado sobre o calcanhar, sobre o foco de luz, e olhava-o. Aquecia-o talvez. Procurava algum conforto.
Olhei também aquele pé grosseiro de pele escurecida e suja banhado por aquela luz amarelada. Destacava-se.
Foi tudo muito rápido. O tempo de passar caminhando ao seu lado. O tempo de um olhar para trás e nada mais.
E a fotografia tirada apenas com a memória, naquela praça quase deserta, quase bela. Uma quase perfeita fotografia que não tirei.

terça-feira, julho 11, 2006

...

A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes ... A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente - tudo ao mesmo tempo -, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, como o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trémulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar.

... com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes - rodava em Almada ...

PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, Lisboa, 2000, p.148/149

segunda-feira, julho 10, 2006

Uma viagem pelos aromas

Texto retirado

domingo, julho 09, 2006

A vida em aguarela


Pinto.
Pinto os dias de esbatidas aguarelas.
Faço-as belas.
Faço-as claras e difusas

Derramo o azul em preguiçosas madrugadas
e esbato o sol que nas auroras desponta
sobre o róseo alaranjado das nuvens no horizonte.

Para a imensidão do mar
adenso o azul das manhãs
ou entristeço o verde dos teus olhos.

Ao sol do meio-dia
dou a intensidade da vida.
Cubro os entardeceres de um sereno manto
que se desdobra lentamente em trevas.

De verde-esperança salpico as árvores
e em pores-do-sol as transformo
quando, estaladiças pintam o Outono.

A noite não pinto.
Adoço-a com pinceladas de sombras
iluminadas de Lua.

Às gentes não pinto.
Pressinto-as.
Disfarço-as de sonho
e invento-as de novo.

(Foto "Lisbon and the Tagus" in Google, Imagens)

sexta-feira, julho 07, 2006

...

"Agora já não nos abraçamos, já não nos reconhecemos, já nem sabemos quem éramos. Ele já não sabe quem eu sou e eu já não sei quem ele é. Exactamente o mesmo que era antes de nos terem apresentado, há muitos anos. E se o visse na rua lembrar-me-ía de alguém mas não saberia de quem. Com ele passa-se o mesmo. Foi há muito e durou pouco tempo. Não vale de nada falar nisso, no amor que morreu. Não há sopro de vida que possa ressuscitar um amor morto. Como as palavras são parecidas, amor morto, meu amor, estranho acaso."

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.70

quinta-feira, julho 06, 2006

No dia seguinte ...


- Fala-me dos outros dias! Fala-me do dia seguinte ...
As estrelas que brilhavam no seu olhar deram lugar a uma noite sem lua. Numa única inspiração pareceu perder o sopro da vida.
- O dia seguinte - sussurrou baixinho - o dia seguinte começou antes ... antes de o ser. Começou antes do último beijo. Avançou insidiosamente por entre os abraços como aquela névoa que felinamente desliza sobre o mar nos dias quentes de Verão. O dia seguinte - quase soletrou baixinho - pressente-se na forma como os olhos se perdem num rosto ... gravando ... registando sôfregamente, para ir buscar mais tarde.
- O dia seguinte ... no dia seguinte, um vazio pesado como o mundo instala-se enquanto os sonhos são espezinhados por algo muito maior que nós. No dia seguinte não há mãos, não há olhares, e a lembrança dos beijos só traz o sabor amargo da ausência.
- No dia seguinte - sussurra baixinho com a voz embargada - morre-se de novo.

A.

(Foto: "Praia azul", Nana Sousa Dias)

quarta-feira, julho 05, 2006

Contou-me ...

A sua história começava assim: “naquele primeiro dia”...
Tudo tem um primeiro dia – um começo. Aquele não fora o começo, mas fora o primeiro dia. O primeiro em que estiveram juntos.
A sua história começara antes contou-me, alguns meses antes. Começara por ser outra coisa disse-me, um encontro de palavras - um encontro de desejos e de sonhos.
Ouço-a contar a sua história e devaneio um pouco. Perco-me na observação de um rosto e de umas mãos que acompanham a narrativa. Leves. Fluente nas palavras. Os olhos perdidos no espaço à minha volta como que se buscasse a imagem do que relatava. Raramente me olhando nos olhos.
“Naquele primeiro dia” dizia-me, os sonhos desceram à terra - construiram o que o desejo apenas criara.
“Aquele primeiro dia” contou-me, amanheceu a sorrir. bem cedo. Estava fresco. o Inverno estava a meio. as nuvens toldavam o sol, mas não o sorriso.
“Naquele primeiro dia” contou-me, tudo tinha sido calculado ao minuto. Tudo, menos a emoção. Tudo, menos aquele galope que em cada minuto crescia no seu peito.
Contou-me que a viagem que a levara ao seu destino final, a fizera entre o olhar perdido na paisagem e a tentativa de leitura do jornal. Qualquer das coisas feitas pela metade. Pela paisagem, deixava que o olhar planasse, lembrando-se apenas que o verde se intercalava com o castanho e o cinzento. Do jornal, as linhas eram meros conjuntos de letras alinhadas que os olhos saltavam sem ver.
Assim chegou ao seu destino. À hora marcada mas com anos de atraso, contou-me.
“Naquele primeiro dia” vestira uma roupa simples como era seu hábito. O cabelo salpicado de prata emoldurava um rosto igual a tantos outros. O coração, esse saltava do peito à medida que percorria os últimos metros. A cada passo mais perto de quem a esperava. De quem ela esperava. O seu olhar antes disperso, debruçava-se agora atento em cada rosto. Procurava o dono das palavras. Contou-me que avançara devagar contrariando a pressa interior que sentia. Obrigando-se a passos cadenciados e a uma expressão calma. Tudo se alterou quando o viu. Era ele. Era mesmo ele - o dono das palavras. A pessoa que esperava há tanto tempo. Aguardava com as mãos nos bolsos e os olhos espreitando acima dos óculos. Formou-se o sorriso. As pernas tremiam de tanta excitação.
“Naquele primeiro dia” contou-me, os seus lábios encontraram-se conforme esperado. Tímidos ainda. Discretos. Uma promessa cumprida. O primeiro beijo de muitos que viriam depois.
Alinhados os passos caminharam lado a lado.
As palavras atropelaram-se, contou-me. Queria dar-lhe o braço ou pegar-lhe na mão. Queria estreitá-lo num abraço, tocar-lhe no rosto. A vontade que tinha era de parar ali mesmo, e frente a frente, olhar demoradamente aquele rosto tão esperado. Senti-lo com o olhar, vê-lo com a ponta dos dedos, mergulhar naqueles olhos claros – um mar de promessas a cumprir – mas isso ficaria para mais tarde, contou-me. Limitados ambos por fortes constrangimentos, guardaram as emoções e calaram as vontades.
As mãos procuraram-se (ou encontraram-se, ela não sabe bem dizer ...) e assim ficaram sentados depois. Os olhos não se cansavam de se buscar e as palavras preenchiam doces silêncios.
Quando no meio das flores o carro parou, soube que o teria mais próximo. Contou-me que naquele primeiro dia as mãos foram tímidas e os beijos doces. Contou-me que os seus olhos claros brilhavam cada vez que pousavam nos seus. À medida que a amava. Contou-me que a sua língua era macia e quente e prometia sonhos e loucuras. Que as suas mãos eram meigas e curiosas.
Contou-me que naquele primeiro dia os seus sonhos se tornaram realidade.
Naquele primeiro dia, a sua vida recomeçou.

A.

terça-feira, julho 04, 2006

A essência

A essência da vida são os outros. A nossa época é-lhes contrária por várias estupidezes. As pessoas vangloriam-se de ser independentes, individualistas, auto-suficientes, egocêntricas, únicas, solitárias, livres. Dizem: “Quero lá saber o que os outros pensam!” sem perceber a terrível vaidade que isso implica.
Para ter a noção do pouco que valemos, basta subtrair ao que somos o que aprendemos, o que lemos, o que vivemos com os outros. É só ver o que fica. Coisa pouca. Sózinho quase ninguém é quase nada. É somente juntos que podemos ser alguma coisa. A verdade é que devemos tudo a quem já deu, já morreu, já disse, já escreveu. E a nossa felicidade devêmo-la, não a nós próprios, mas a quem vive ou viveu ao pé de nós. Será isso o que custa tanto a aceitar.
(...) No pouco tempo em que vivemos e trabalhamos, limitamo-nos a acrescentar um ponto ou outro à soma que já existe. Um dia morremos. A morte é o preço que se paga pelo facto de vivermos tão facilmente. Pelo facto de não termos de inventar a língua que se fala de não escrevermos os livros que se lêem, de não fazermos o pão que se come, de não sermos obrigados a estabelecer e a negociar as regras com que se vive.
Os outros são a sorte que nos cabe, são o azar que nos calha. São o nosso último recurso e a nossa primeira obrigação. Esta é a essência da sociedade. Enriquecemos quando os outros são ricos, empobrecemos quando eles são pobres. Deixêmo-nos de betices. O sentimento mais importante de todos é a solidariedade.
(...) Os outros são a nossa única justificação possível. Segui-los e servi-los , por questões de sabedoria e sentimento, é a nossa mais maravilhosa oportunidade.
O essencial é amar os outros. Pelo amor a uma só pessoa pode amar-se toda a humanidade. Vive-se bem sem trabalhar, sem dormir, sem comer. Passa-se bem sem amigos, sem transportes, sem cafés. É horrível mas uma pessoa vai andando.
Apresentam-se e arranjam-se sempre alternativas. É fácil.
Mas sem amor e sem amar, o homem deixa-se desproteger e a vida acaba por matar.
Philip Larkin era um poeta pessimista. Disse que a única coisa que ía sobreviver a nós era o amor. O amor, Vive-se sem paixão, sem correspondência, sem resposta. Passa-se sem uma amante, sem uma casa, sem uma cama. É verdade, sim senhores.
Sem um amor não vive ninguém. Pode ser um amor sem razão, sem morada, sem nome sequer. Mas tem de ser um amor. Não tem de ser lindo, impossível, inaugural. Apenas tem de ser verdadeiro.
O amor é um abandono porque abdicamos, de quem vamos atrás. Saímos com ele. Atiramo-nos. Retraímo-nos. Mas não há nada a fazer: deixamo-lo ir. Mais tarde ou mais cedo, passamos para lá do dia a dia, para longe de onde estávamos. Para consolar, mandar vir, tentar perceber, voltar atrás.
O amor é que fica quando o coração está cansado. Quando o pensamento está exausto e os sentidos se deixam adormecer, o amor acorda para se apanhar. O amor é uma coisa que vai contra nós. É uma armadilha. No meio do sono, acorda. No meio do trabalho, lembra-se de se espreguiçar. O amor é uma das nossas almas. É a nossa ligação aos outros. Não se pode exterminar. Quem não dava a vida por uma amor? Quem não tem um amor inseguro e incerto, lindo de morrer: de quem queira, até ao fim da vida, cuidar e fugir, fugir e cuidar?
(...) A essência da vida está fora de nós. Está nos outros todos juntos, sem lugar, sem tempo, sem saber como. A única coisa que temos é o amor.

CARDOSO, Miguel Esteves, "Último Volume", Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, pp.71/2/3/4

segunda-feira, julho 03, 2006

Incógnita


Mais para além de mim
Havia outro.
Um outro que não via,
Nem falava.
Havia alguém que me prendia
Ao sonho
E à vida,
Mas eu, - pobre de mim –
Eu não sabia,
E um dia quis-me libertar
Abrindo as minhas asas desmedidas
Num céu que julguei ver,
Mas que o outro não via.
Então,
Vi que o céu não bastava às minhas asas
E esperei que o outro me apontasse
Um novo Céu.
Esperei inutilmente,
Porque o outro,
O outro nunca mais me respondeu.

ARY DOS SANTOS, José Carlos, "Obra Poética", Edições Avante, Lisboa, 1999, p.445
(Foto em www.trekearth.com)

sábado, julho 01, 2006

Casa

se algum dia por acaso
eu voltar a rasgar a tua latitude neste planeta
podes abocanhar-me
caçar-me com os incisivos balançar-me na boca

não aceites as minhas habituais desculpas

de nómada
nem
acredites quando te disser que tudo o que tenho
cabe dentro de uma mala

começa por enconder-me os sapatos

convence-me a destruir os mapas de viagem
e a engolir âncoras pedras uma morada
com número na porta

mesmo que o meu desassossego geográfico
estremeça a perna direita
debaixo da mesa e agite o metal dos talheres
não hesites
leva-me para tua casa

prova-me que não tenho que apanhar o último comboio da noite
que incendeia a costa e que me ajuda
a fugir todas as madrugadas

recebe-me nas zonas sem roupa
do teu corpo

manobra-me a língua
usa-me
quando a tua carne já não precisar de mim
amarra-me
cuida do meu sono temporário

obriga-me a dizer-te aquilo que os meus dentes
sem coração nunca autorizaram:

esta noite durmo contigo

Hugo Gonçalves in "Tantas mãos, a mesma Primavera", Oficina do Livro, p. 41/2