sábado, setembro 30, 2006

Pois o tempo não pára ...

Pois o tempo não pára, nem importa
Que vividos os dias aproximem
O copo de água amarga colocado
Onde a sede da vida se exaspera.

Não contemos os dias que passaram:
Hoje foi que nascemos. Só agora
A vida começou, e, longe ainda,
Pode a morte cansar à nossa espera.

SARAMAGO, José, "Os poemas possíveis", Caminho, Lisboa, 1999, p. 178

sexta-feira, setembro 29, 2006

...

"Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade."

PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, p. 30

quinta-feira, setembro 28, 2006

...

"Qualquer coisa se perdeu quando o Paraíso Perdido se ganhou."

PESSOA, Fernando, "Aforismos e Afins", Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, p.29

quarta-feira, setembro 27, 2006

Velhos companheiros


Chega sempre a hora
De voltar dentro
De fechar a porta
Aferrolhar janelas
De convidar a espera
A esperar comigo.
Sentamo-nos em silêncio
Eu que espero e a espera,
E deixamos que o escuro se instale também.
E já somos três
Eu que espero, e a espera
E o escuro também, velha companhia.
Olhamos o tempo
Num relógio sem corda
Que só marca a noite
E esqueceu o dia.

Encandescente, Colecção Polvo, Lisboa, 2005, p. 55

(Foto em www.trekearth.com )

terça-feira, setembro 26, 2006

...

No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar.
Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas de quem sabe amar.

Qualquer que ele seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,
Qualquer fosse o voo.

Por certo eles foram mais reais e felizes.

Álvaro de Campos, "Poesias", Clássica Editora, Lisboa, 1993, p.11

segunda-feira, setembro 25, 2006

Uma qualquer pessoa (excerto)

Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: é para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

António Gedeão, Obra Poética, p.95

domingo, setembro 24, 2006

A propósito de Solidão

"Sempre que me aventuro pelos corredores do metro sinto-me rodeada de pessoas sós. Impressiona-me o paradoxo: multidões de solitários. Movemo-nos entre gente ansiosa por uma simples palavra de afecto; mulheres que aprendem a miar para poderem conversar com o gato.
(...) Vivemos, literalmente, uns em cima dos outros, em prédios de apartamentos, mas nunca fomos tão estranhos uns aos outros quanto agora. Podemos ouvir todas as manhãs os vizinhos a cantar enquanto tomam duche, podemos ouvi-los a discutir ou a fazer amor, sem, todavia, sabermos que rosto têm."

Faíza Hayat, Crónica, Conversas com o espelho, in XIS, suplemento do jornal Público de 23/09/2006

Ainda a propósito da Solidão e no mesmo suplemento:

"A solidão é hoje um dos medos mais sentidos nas nossas sociedades. Medo de vivermos sós, de morrermos sós, de não termos ninguém que nos acompanhe. Facilmente criamos a ilusão de que estarmos fisicamente perto de alguém, nos vai colmatar uma solidão indesejada. E este é, no entanto, um dos maiores privilégios de que alguém pode gozar: o de estar sózinho. Voluntariamente, entenda-se. Porque a solidão imposta é uma coisa duríssima, difícil de aceitar e de viver com. Porque não procurada, não é consciente nem libertadora.
Estarmos sós, quando o procuramos, não sendo uma imposição, permite-nos um confronto mais real com o nosso eu mais escondido. Porque apenas sozinhos nos podemos confrontar connosco próprios, com o nosso eu mais verdadeiro. É na solidão procurada que nos começamos a conhecer. Porque paramos. E é na paragem, no silêncio, que conseguimos ver melhor as coisas."

Rita Lencastre de Sousa, "A solidão procurada" in XIS suplemento do jornal Público, 23/09/2006

Duas abordagens do mesmo tema mas sob perspectivas diferentes.

Deliciei-me com a primeira crónica que costumo procurar em primeiro lugar no jornal de sábado. A imagem da mulher que aprende a miar para poder conversar com o gato acho que é bem o retrato de uma solidão que se quer contrariar a todo o custo.
Quanto ao segundo texto que valeria a pena ler na íntegra (ou então é apenas a mim que diz alguma coisa ...) retirei apenas este pequeno excerto. Porque me diz muito. Porque entendo que é realmente assim. Porque a solidão pode ser uma mais-valia nas nossas vidas. Saber usá-la e aproveitá-la é algo que muitos não conseguem ... ou não sabem.

sábado, setembro 23, 2006

...

"Pode-se viver na casa mais bonita do mundo, mas é a nossa alma, do princípio ao fim, que habitamos."

PAIXÃO, Pedro, "Viver todos os dias cansa", Livros Cotovia, Lisboa, 1995, p.93

sexta-feira, setembro 22, 2006

...

"As pessoas deviam ter mais de uma vida ou, pelo menos, uma que pudesse também andar para trás de vez em quando. Para corrigir o que saíu mal à primeira, aprender a saborear as poucas horas boas - tal como uma canção que quanto mais se ouve mais se gosta - e, sobretudo, para poder ir primeiro por um lado e depois por outro e depois, sim, seguir pelo caminho encontrado."

PAIXÃO, Pedro, "Viver todos os dias cansa", Livros Cotovia, LIsboa, 1995, p.27

quinta-feira, setembro 21, 2006

Nostalgia

A nostalgia do primeiro dia de chuva. Acordar - a noite ainda menina - e o ruído da chuva lá fora a ganhar terreno ao sonho. Aos poucos, a percepção da realidade. O quarto ilumina-se com aquele clarão violento e esbranquiçado que precede o trovão. Ficam os sentidos alerta para o próximo estrondo ... para mais um estremecimento, até que o sono ganhe de novo a parada quando me aconchego e enrolo à procura do silêncio e do esquecimento.
No clarear do dia surpreende-me de novo o cinzento triste do céu que entrevejo através das cortinas - aquela luz mortiça própria dos dias de Inverno. Sei que chove. Ouço na estrada o ruído provocado pelos carros que rolam no piso molhado.
Penso que não me apetece nada levantar. Porque não ficar aqui? Enganar o relógio e a rotina e adormecer como se a noite apenas agora começasse?
Ponho os braços fora da roupa e logo arrefeço. É o frio que volta.
O telemóvel vibra pela décima vez lembrando-me que está na hora. Mas hora de quê? pergunto-me. Definitivamente desligo-o e começo a inventar desculpas para ficar ali. Perco-me em conjecturas complicadas e sonhos com o príncipe encantado. Dentro de casa o silêncio é completo. Volto-me para o outro lado e entreabro os olhos para avaliar a luz que me chega da rua.
Tenho que me levantar! Tenho fome! Os sentidos já despertaram por completo e obrigam-me a encontrar justificações para me pôr de pé. Tão diferente, este levantar em dias de chuva! Tão diferente dos dias longos e claros do Verão em que acordo, e como uma mola, salto da cama.
Agora já com o pequeno almoço tomado e sentada à mesa do café, vejo pela montra a chuva que cai. Quero concentrar-me naquele ruído gostoso que ouvi de manhã na minha cama provocado pelo atrito das rodas no piso molhado, mas aqui dentro nem a música de fundo consigo distinguir com clareza. O ruído das conversas sobrepõem-se. A chuva é tema de conversa. São as primeiras ... compreende-se. Fala-se das botas que se foram buscar ao fundo do armário. Da chatice de carregar os chapéus de chuva.
É o Outono que começa. E com ele regressa alguma nostalgia.
A lembrança de Invernos passados! Do aconchego morno dos cachecóis e casacos de lã. O aroma das castanhas assadas. O conforto quando à noite me cubro com o edredão. O capuccino que aquece o corpo e alma. As mantas sobre os joelhos. Tudo isto acorda esta nostalgia dos primeiros dias de chuva!

quarta-feira, setembro 20, 2006

...

Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Dia do Mar", Caminho, Lisboa, 2005, p. 54

terça-feira, setembro 19, 2006

Sabes quantas vezes o sonhei?

Voltei-me e já não te vi!
E no entanto, ainda há pouco o olhar entoava as palavras que não dizíamos. Os gestos contavam já da falta do meu (teu) corpo.
Dei uma volta, rodei o corpo para te procurar de novo ... ainda e mais uma vez! Não te vi.
As portas fechadas.
As janelas desafiando a lucidez do olhar.
Apenas aquele ruído da partida - um som que começa forte e se vai aos poucos diluindo na razão inversa do aumento da saudade!
O oposto da chegada, quando a pulsação se assemelha a um cavalo a galope.
Quando o olhar inquieto, não encontra onde pousar.
Quando as mãos cansadas do vazio, procuram o calor das tuas.

(Sabes quantas vezes o sonhei?)

Depois ... depois, recompenso o olhar no verde claro das algas marinhas enquanto as horas se atropelam numa câmara lenta de bicos de pés ...
... até que dou por mim a olhar para trás ... e não te vejo mais ...

Fica apenas por explicar o sorriso que ainda me ilumina.

(O sonho depois do sonho!)

segunda-feira, setembro 18, 2006

O poema íngreme

Se numa tarde encostei o olhar ao vidro
Embaciei-me de dúvidas quando te reflecti.
Virás tu parar nesta imprudência íngreme,
que é a encosta do amor?

Tiago Salazar, in "Tantas mãos a mesma Primavera", Oficina do Livro, p.65

domingo, setembro 17, 2006

...

Dançam as árvores puras sacudidas
Pelas chuvas verdes
O dia tem em si mãos interrompidas
Que um desejo absurdo ergue.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Dia do Mar", Caminho, LIsboa, 2005, p.96

sábado, setembro 16, 2006

Setembro

Setembro é um mês um pouco triste. Não desesperadamente triste. Apenas um pouco. Digamos, como a tristeza de uma noiva depois da festa, enquanto limpa e guarda o vestido no armário. Eu gosto dessa leve melancolia, do céu ainda brilhante e limpo, mas onde a luz já principia a declinar.

Gosto. Nem sempre gosto.

Quando hoje acordei Setembro debruçava-se sobre mim, como uma mãe. Levantei-me. Olhei-me ao espelho e percebi que também no meu corpo a luz começa a declinar. Estou a chegar a Setembro. Sinto-me como Plutão. Habituei-me a ser um planeta – e agora isto.

Não me importaria de atravessar o Outono, inclusivé o Inverno, se soubesse que depois viria a Primavera e finalmente – outra vez! – o grande sol do Verão. O que me perturba é a certeza de não haver uma outra Primavera, um outro Verão. Sim, verei a Primavera chegar aos outros, hei-de rever (talvez) o meu próprio Verão, um dia, no corpo da minha filha, mas isso, lamento muito, não me consola.

Compreendam-me: o que me aflige é a velhice, com a sua lenta procissão de pequenos males, o corpo em revolta, não a morte. Acho a morte necessária, como o esquecimento. “Começo a sentir-me velho” disse-me o meu avô um dia, depois de completar noventa anos: “O corpo já não me obedece. Sou eu agora quem tem de lhe obedecer”. Era isto que o revoltava (e o que me revolta a mim), que a matéria triunfe sobre o espírito.

Um corpo é algo apenas um pouco mais sofisticado do que um vestido. Vestimo-lo para comunicar e interagir com a realidade. Quando se gasta devíamos poder substitui-lo.

Setembro, pois. Saio para a rua e deixo-me levar pela luz. A luz em Barcelona, nestes dias, é limpa e quase líquida. Sento-me à mesa de uma esplanada. Um empregado debruça-se atencioso, para saber o que pretendo tomar. Um chá, peço. Recita-me os chás que tem. Reconheço o sotaque e mudo para a nossa língua. Sim, é brasileiro, de um lugar chamado Conceição de Mato Dentro, em Minas Gerais. Digo-lhe que gostaria de viver num lugar chamado Conceição de Mato Dentro. O rapaz ri. Tem um riso bonito. Assegura-me que Setembro é raro em Conceição de Mato Dentro: “Apenas uma vez por ano. E passa rápido”. Digo-lhe que me convém.

Chama-se Pablo, mas não porque haja espanhóis na família. Pablo, como o pintor. A mãe gostava de Picasso. Pablo trabalha de manhã a servir à mesa. À tarde estuda artes dramáticas. Sinto, pela forma como me olha, que não adivinha em mim a luz decadente de Setembro. Pede-me o meu e-mail. Escrevo-o num guardanapo, levanto-me e vou-me embora.

Quanto tempo dura Setembro?

Faíza Hayat, Crónica, in Revista Xis, suplemento do Público de 16/09/2006

sexta-feira, setembro 15, 2006

Desistir

Um dia perguntaste-me o que faria se morresses. Respondi-te com um nó na garganta, que desistiria de viver. O silêncio e a perda resumidos num gesto. Concentrados numa única palavra: Desistir.
Lembrei-me desta conversa hoje e agora, e recordo igualmente outras pessoas que me dizem muito ou que foram e continuam a ser para mim, referência obrigatória.
Lembrei-me de ti com quem falei ainda há pouco. Sentado no mármore do banco improvisado, à espera. E revi-te. Os ombros curvados sob o peso da vida. O semblante triste. No fundo do olhar procuro uma réstea de entusiasmo, a sombra de uma travessura que espreita, e apenas encontro a desilusão e o cansaço. A vontade de desistir que tanto me assusta. Os braços caídos. O querer amordaçado por amarras e mordaças.
Depois ... voltei atrás, e recordei que ela também desistiu. Nunca antes o havia feito. Uma vida construída com a força de uma vontade de ferro. Contra tudo e contra todos se necessário fosse. Remando contra a maré ... quantas vezes, e tantas outras com ventos contrários ...
E no fim - no fim a consciência de que nada mais havia por que lutar. Apenas lhe restava desistir. E ao desistir, a morte ganhou terreno - avançou onde já não havia barreiras. Avançou, e vitoriosa, arrebatou-a.
Tenho medo dessa atitude. Dessa vontade de desistir. Dessa abertura que liberta o caminho à derrota e à morte.
Tenho medo de mais uma vez não ter os meios para a combater. Porque não está nas minhas mãos. Essa luta não é minha. E no entanto, conheço esse sentimento. Sei que um dia poderei vir a senti-lo. Sei que um dia posso soçobrar perante algo que não posso combater. E só me restará um caminho: Desistir.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Passagem das Horas (excerto)

(...)
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
(...)

PESSOA, Fernando, "Poesias de Álvaro de Campos", Clássica Editora, p. 204

quarta-feira, setembro 13, 2006

Diz tu por mim, silêncio

Não era hoje um dia de palavras,
Intenções de poemas ou discursos,
Nem qualquer dos caminhos era nosso.
A definir-nos bastava um acto só,
E já que nas palavras me não salvo,
Diz tu por mim, silêncio, o que não posso.

SARAMAGO, José, "Os poemas Possíveis", Caminho, Lisboa, 1999, p.174

terça-feira, setembro 12, 2006

HOJE ...

Hoje é dia de Festa!!!
baes ...


Há flores ... mil rosas de todas as cores ...

E um bolo também não pode faltar ...

porque hoje ...

hoje ...

faço anos !!!!

Quantos? perguntam ...

... 50

coisa pouca !!!

:-)))

Festejem comigo !!!


domingo, setembro 10, 2006

Schhhhh............


Suspenso. O tempo e a vida. Ali, à beira do lago.
Uma clareira no meio da floresta. Luxuriante. Plena de aromas. De árvores centenárias que almejavam o céu. No alto, um rendilhado bordado de arco-iris. No ar a frescura das manhãs.
Fora daqui o ar estava abafado e as ruas ruidosas e poeirentas. Fora daqui, os relógios cumpriam o seu destino. Fora daqui, movia-se o mundo. Fora daqui ... porque à beira daquele lago tudo parara.
Tinha forma irregularaquele lago, e nas suas águas verde escuro flutuavam pequenas folhas, minúsculas flores que caíam do céu. O caminho contornava-o - sinuoso e sombrio - vereda estreita que a sombra protegia. O banco que me acolhia, permitia abarcar com a vista todo este espaço. Descansar o olhar. Mergulhar em toda esta beleza.
Agora, já longe, sinto que um véu de água me tolda a visão. Uma saudade imensa daquele dia. Daquele profundo silêncio. Daquela imensa paz.
À beira daquele lago as vozes tinham que ser sussurradas, e as palavras pensadas para que não violassem toda aquela pureza.
À beira daquele lago só era permitido estar. De uma forma quase irreal. Quase mística. Diluídos na paisagem. Como se a integrássemos.

(Foto, minha)

sábado, setembro 09, 2006

...

O que é que tu estás a fazer em mim?
Eu estou a escrever em ti.
Para mim?
Para os que sabem ler.
Amanhã vou para dentro de ti.
Não gosto que invadas assim o meu espaço.
Não sabia que o meu amor era uma astronauta.
Não sejas parvo.
Vou para dentro de ti. Sabes onde fica?
Nem quero adivinhar.

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.57

sexta-feira, setembro 08, 2006

Eu te amo

Se já perdemos a noção da hora
Se juntos jogamos tudo fora
Me conta como hei-de partir!

Se, ao te conhecer, dei p'ra sonhar, fiz tantos desvarios,
Rompi com o mundo, queimei meus navios,
Me diz para onde é que inda posso ir!

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir!

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu!

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu.

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara vou sair.

Não, acho que estás só fazendo de tonta
Te dei meus olhos p'ra tomares conta
Agora conta como hei-de partir

Chico Buarque de Holanda

quinta-feira, setembro 07, 2006

Escrivaninhas

Gavetas e gavetinhas.
Prateleiras diversas.
Pequenas portas e compartimentos escondidos.
Torneados que ocultam pequenos esconderijos.
Assim são as escrivaninhas.
Realmente, não sei bem o que me atrai nelas. Se o seu encanto de móvel antigo, se o ar de mistério que delas emana.
Esta, como todas, tem também o seu compartimento secreto. Para além das pequenas gavetas que se expõem à vista de todos, sei que algures por detrás de um simples mecanismo, se esconde um outro compartimento - um espaço ínfimo e oculto - onde podemos guardar aquilo que não queremos exposto.
Como nas nossas vidas também. A maior parte está à vista de todos, mas sempre existe uma pequena parte bem escondida.
Protegida dos olhares.
Que se descobre através de um gesto secreto.
De uma palavra-passe.
De um olhar.
Que se esconde atrás de uma fachada.
Que se oculta por detrás de uma máscara, ou de várias.
Que se disfarça com um ténue mas eficaz véu de mentira.
Como uma escrivaninha. Esta, mais simples nos seus mecanismos de ocultação, mas igualmente eficazes.
Decidi-me! Vou comprar uma para mim. Depois das máscaras caídas há ainda que arrumá-las num qualquer sítio - num qualquer compartimento secreto - oculto atrás de um simples mecanismo. Uma escrivaninha!

(Foto minha)

terça-feira, setembro 05, 2006

Sonho, ou não?

As janelas abriam-se sobre o vale. O som que ouvia era um misto de chilreio e arranhar de cigarras que cortava o silêncio. O ar era puro e fresco - tão puro e tão fresco como a água cristalina que brota das fontes de montanha. A manhã - ainda menina.
Perante esta paisagem sentia-me tão pequena. Descomunalmente ínfima quando comparada com o que a natureza me oferecia.
Sentei-me naquela cadeira que parecia estar ali à minha espera. O corpo perfeitamente encaixado nos seus contornos. O Sol, por detrás de mim ainda, apenas fazia sobressair algumas tonalidades, tornando-as mais claras e brilhantes. As pedras polidas do caminho que circundava a casa, reflectiam-na na perfeição. Quase espelhos onde se mirava o céu.
Lá dentro no quarto, os passos quase se não ouviam, abafados pela madeira do soalho. A voz cálida, soava baixinho como sussurros de amor ditos ao ouvido.
Os olhos foram pesando, a batida do coração espaçando-se, os pensamentos enovelando-se - perdendo o nexo.
Deixei que a cabeça reconhecesse o conforto do espaldar da cadeira. Perdi-me no vazio de um sono desejado.
E sonhei ...
... que eram teus os passos que ouvia
... que era tua a voz doce que embalava o meu sono
... que eram tuas as mãos que percorriam o meu cabelo
... que era no teu corpo que enroscava o meu
... que o silêncio era apenas interrompido pelas doces palavras com que nos amávamos
Acordei já o sol ía alto. Um círculo de luz desenhado aos meus pés. Não na varanda, mas na madeira do chão do meu quarto. A persiana meio aberta deixava entrar aqueles raios que desenhavam sonhos.
Não havia chilreio de pássaros nem o arranhar insistente das cigarras. As almofadas da cama tinham sido o encosto perfeito para o sono.
Virei-me de lado.
Olhei-te enquanto dormias, e com um sorriso enrosquei-me no teu corpo para adormecer de novo.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Fim de viagem

Escurece o dia. Passa a minha vida à desfilada na janela do comboio.
A Lua perfila-se vigiando os pensamentos. É minha cúmplice.
(Como é bom anoitecer ao teu lado ...)
Passo em revista os últimos dias. Descanso total.
Pensamentos felizes.
Mãos cheias de sorrisos.
Olhos plenos de carícias.
(Tão bela que está a Lua. Quase cheia ... só mais um pouco ...)
Passeios por ruas atapetadas de silêncio.
Palavras que esvoaçam ao encontro dos sonhos.
Sonhos que se transformam pela magia do querer.
(Tão bom estar aqui ... anoitecer contigo ...)
Lua cheia. Lua plena que me leva no seu rasto.
(... adormecer contigo ...)

Se

Se a aragem
reconhecesse o meu rosto
Se o espaço
reconhecesse a minha presença
Se a gravilha
reconhecesse o meu peso
Se a folhagem
reconhecesse a minha sombra
Se os sons
reconhecessem os meus passos
Se eu ...
indiscutivelmente presente
me revelasse,
encontrar-me-ía,
por fim.

sábado, setembro 02, 2006

Definição

Quarto. Um espaço mais ou menos quadrado. Mais ou menos espaçoso. Mais ou menos aconchegante.
Quarto. Um espaço onde se dorme. Onde se repousa. Onde se ama. Onde se morre.
Sempre um espaço íntimo. De recolhimento.
Há-os de vários tipos. Há o nosso - criado à nossa medida e gosto.
Há os dos nossos amigos, onde invejamos por vezes este ou aquele pormenor.
Há os de sonho - os que possuem tudo o queríamos ter.
Há os dos hotéis. Alguns virados para o mar, com largas e panorâmicas janelas onde acordamos o olhar. Espaçosos. Luxuosos. Claros.
E há os mais funcionais. Das pequenas pensões. Das estrelas menores. Apenas funcionais. Com o essencial. Sem paisagem. Com uma janela comum vestida de finos cortinados brancos românticamente arrepanhados. Janelas que abrem para páteos debruados de janelas. Janelas que abrem para páteos plantados de arvoredo.
Quartos onde nos enfrentamos sós num espelho que nos espreita, atento a todos os nossos passos. Quartos silenciosos que temos que preencher com a música que encostamos ao ouvido. Quartos em que a televisão é a única companhia com voz - e mesmo essa ... dispensamos. Quartos impessoais. Para agradarem a qualquer um.
Aqui, somos também outros. Ou podemos sê-lo se o quisermos. Depois da porta fechada deixamo-nos conquistar. Fundimo-nos no silêncio que preenche intensamente todos os espaços. Paramos frente ao espelho que já nos havia olhado, e olhamo-nos nós nele. Do outro lado alguém nos fita. Nós, ou o outro por detrás de nós que se quer fazer notar?
Abro a cama. Dispo-me. As almofadas levantadas convidam ao repouso. Olho o comando da televisão na mesa de cabeceira. Ligo? Não ligo? Fecho os olhos e carrego num botão à toa. Agridem-me sons agrestes que rapidamente silencio. Deslizo os pés nos lençóis. Gosto da sensação de frescura e do som que o contacto provoca.
Deixo-me afundar lentamente nesta calma. Abrigo-me naquele canto sossegado que antecipa o sono.
Sou eu ainda que estou aqui.
A música baixinho nos ouvidos vai e vem ... vai e vem ... vai ...

sexta-feira, setembro 01, 2006

Promessa

Na clara paisagem essencial e pobre
Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, "No tempo dividido", Caminho, Lisboa, 2005, p.34