Setembro
Setembro é um mês um pouco triste. Não desesperadamente triste. Apenas um pouco. Digamos, como a tristeza de uma noiva depois da festa, enquanto limpa e guarda o vestido no armário. Eu gosto dessa leve melancolia, do céu ainda brilhante e limpo, mas onde a luz já principia a declinar.
Gosto. Nem sempre gosto.
Quando hoje acordei Setembro debruçava-se sobre mim, como uma mãe. Levantei-me. Olhei-me ao espelho e percebi que também no meu corpo a luz começa a declinar. Estou a chegar a Setembro. Sinto-me como Plutão. Habituei-me a ser um planeta – e agora isto.
Não me importaria de atravessar o Outono, inclusivé o Inverno, se soubesse que depois viria a Primavera e finalmente – outra vez! – o grande sol do Verão. O que me perturba é a certeza de não haver uma outra Primavera, um outro Verão. Sim, verei a Primavera chegar aos outros, hei-de rever (talvez) o meu próprio Verão, um dia, no corpo da minha filha, mas isso, lamento muito, não me consola.
Compreendam-me: o que me aflige é a velhice, com a sua lenta procissão de pequenos males, o corpo em revolta, não a morte. Acho a morte necessária, como o esquecimento. “Começo a sentir-me velho” disse-me o meu avô um dia, depois de completar noventa anos: “O corpo já não me obedece. Sou eu agora quem tem de lhe obedecer”. Era isto que o revoltava (e o que me revolta a mim), que a matéria triunfe sobre o espírito.
Um corpo é algo apenas um pouco mais sofisticado do que um vestido. Vestimo-lo para comunicar e interagir com a realidade. Quando se gasta devíamos poder substitui-lo.
Setembro, pois. Saio para a rua e deixo-me levar pela luz. A luz em Barcelona, nestes dias, é limpa e quase líquida. Sento-me à mesa de uma esplanada. Um empregado debruça-se atencioso, para saber o que pretendo tomar. Um chá, peço. Recita-me os chás que tem. Reconheço o sotaque e mudo para a nossa língua. Sim, é brasileiro, de um lugar chamado Conceição de Mato Dentro, em Minas Gerais. Digo-lhe que gostaria de viver num lugar chamado Conceição de Mato Dentro. O rapaz ri. Tem um riso bonito. Assegura-me que Setembro é raro em Conceição de Mato Dentro: “Apenas uma vez por ano. E passa rápido”. Digo-lhe que me convém.
Chama-se Pablo, mas não porque haja espanhóis na família. Pablo, como o pintor. A mãe gostava de Picasso. Pablo trabalha de manhã a servir à mesa. À tarde estuda artes dramáticas. Sinto, pela forma como me olha, que não adivinha em mim a luz decadente de Setembro. Pede-me o meu e-mail. Escrevo-o num guardanapo, levanto-me e vou-me embora.
Quanto tempo dura Setembro?
Faíza Hayat, Crónica, in Revista Xis, suplemento do Público de 16/09/2006
Gosto. Nem sempre gosto.
Quando hoje acordei Setembro debruçava-se sobre mim, como uma mãe. Levantei-me. Olhei-me ao espelho e percebi que também no meu corpo a luz começa a declinar. Estou a chegar a Setembro. Sinto-me como Plutão. Habituei-me a ser um planeta – e agora isto.
Não me importaria de atravessar o Outono, inclusivé o Inverno, se soubesse que depois viria a Primavera e finalmente – outra vez! – o grande sol do Verão. O que me perturba é a certeza de não haver uma outra Primavera, um outro Verão. Sim, verei a Primavera chegar aos outros, hei-de rever (talvez) o meu próprio Verão, um dia, no corpo da minha filha, mas isso, lamento muito, não me consola.
Compreendam-me: o que me aflige é a velhice, com a sua lenta procissão de pequenos males, o corpo em revolta, não a morte. Acho a morte necessária, como o esquecimento. “Começo a sentir-me velho” disse-me o meu avô um dia, depois de completar noventa anos: “O corpo já não me obedece. Sou eu agora quem tem de lhe obedecer”. Era isto que o revoltava (e o que me revolta a mim), que a matéria triunfe sobre o espírito.
Um corpo é algo apenas um pouco mais sofisticado do que um vestido. Vestimo-lo para comunicar e interagir com a realidade. Quando se gasta devíamos poder substitui-lo.
Setembro, pois. Saio para a rua e deixo-me levar pela luz. A luz em Barcelona, nestes dias, é limpa e quase líquida. Sento-me à mesa de uma esplanada. Um empregado debruça-se atencioso, para saber o que pretendo tomar. Um chá, peço. Recita-me os chás que tem. Reconheço o sotaque e mudo para a nossa língua. Sim, é brasileiro, de um lugar chamado Conceição de Mato Dentro, em Minas Gerais. Digo-lhe que gostaria de viver num lugar chamado Conceição de Mato Dentro. O rapaz ri. Tem um riso bonito. Assegura-me que Setembro é raro em Conceição de Mato Dentro: “Apenas uma vez por ano. E passa rápido”. Digo-lhe que me convém.
Chama-se Pablo, mas não porque haja espanhóis na família. Pablo, como o pintor. A mãe gostava de Picasso. Pablo trabalha de manhã a servir à mesa. À tarde estuda artes dramáticas. Sinto, pela forma como me olha, que não adivinha em mim a luz decadente de Setembro. Pede-me o meu e-mail. Escrevo-o num guardanapo, levanto-me e vou-me embora.
Quanto tempo dura Setembro?
Faíza Hayat, Crónica, in Revista Xis, suplemento do Público de 16/09/2006
5 Comments:
Credo, parecia que estava a ler uma coisa tua, mas independentemente disso, e isso já me assusta, sinceramente, eu sinto o mesmo que a escritora, a perturbação de haver cada vez menosSetembros...
beijos
Um poema lindissimo sobre Setembro. Sobre a vida . Excelente escolha.
Enganaste-me....parecias mesmo tu, fora Barcelona, pois ontem estiveste comigo, eh eh eh
Beijinhos grandes
E as fotos?????
Declínio. Um belo texto. Beijos.
a vida........detesto setembro........ gostei de ler
joca maradas
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