sexta-feira, setembro 30, 2005

Quase nada

Passo e amo e ardo
Água? Brisa? Luz?
Não sei. E tenho pressa:
levo comigo uma criança
que nunca viu o mar.

ANDRADE, Eugénio de, Ostinato Rigore, Ed. Abete, 1975, p.110

quinta-feira, setembro 29, 2005

Ontem



Ontem fui a Santa Cruz. Aqui em Lisboa, um dia soalheiro. Lá, frio, vento e muitas nuvens. Parecia que já estávamos bem entrados no Outono.
Da casa vê-se o mar. Imenso e poderoso. Omnipresente.
E esta rocha que parece um cão enche a paisagem.
É sempre um prazer visitar amigos queridos e sentir o mar.

Casa nova!!!!

Bem como podem ver não consegui salvar o meu "Para Além de Mim". Salvei no entanto, todos os posts que lá tinha colocado.
Depois de muita trabalheira, e porque não queria começar este espaço sem a presença do passado, todos os posts foram aqui recolocados.
Perderam-se, infelizmente, todos os vossos comentários :-((
Mas ... cara alegre, e toca a recomeçar!!!

Contratempo

Ainda estou a ver se consigo resolver o problema, mas como ainda sou muito caloira nestas andanças, provavelmente terei que refazer todo o blog.
Me aguarrrdem!!!!

(publicado em 27/09/2005)

Fim de um ciclo

São duas e meia da manhã e nao consigo republicar o meu blog.Desapareceu tudo, salvo os índices.Acho que não consigo fazer mais nada hoje.Se alguém tiver alguma ideia...

(publicado em 27/09/2005)

Dia

Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética II, Caminho, Lisboa, 1995, p.25

É mais ou menos assim que me sinto hoje. Em paz comigo própria. Nada como iniciar a semana com uma massagem Shiatsu. Foi o que fiz esta manhã e só por isso fiquei calma, relaxada, feliz, em paz comigo e com o mundo. Se não experimentaram, experimentem. Só é pena é não poder ser todos os dias! Espero que mantenha o efeito para toda a semana.

(publicado em 26/09/2005)

Ao fim

Ao fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
São também muito poucas as pessoas
que tocam nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.
E ao fim são pouquíssimas as coisas
que em nossa vida a sério nos importam:
poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

Amalia Bautista, "Trípticos Espanhóis", 3º, Relógio d'Água, p.43

(publicado em 25/09/2005)

O meu talento escondido

Your Hidden TalentYour natural talent is interpersonal relations and dealing with people.You communicate well and are able to bring disparate groups together.Your calming presence helps everything go more smoothly.People crave your praise and complements.

What's" Your Hidden Talent?

(publicado em 25/09/2005)

O passado e o presente

Frequentei nestes últimos quatro dias um curso que tinha como mote o aniversário dos 250 anos do Terramoto de 1755. Chamaram-lhe "História e Ciência da Catástrofe".
Decorreu este curso no Museu Nacional de Arte Antiga, onde foi inaugurada uma exposição alusiva ao tema - Tremeu a Terra, Tremeu o Pensamento - e na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa.
Muitas e variadas foram as intervenções. Desde historiadores a geólogos, arquitectos e especialistas em psicologia social, várias e interessantes foram as abordagens feitas a este tema.
Hoje, e após o encerramento dos trabalhos, estava preparada uma visita à Lisboa Pombalina, guiada por Mário Lopes e Rita Bento, ambos de Instituto Superior Técnico.
E aqui se fez também a ponte entre o passado e o presente. Entre a herança da Lisboa de Pombal e a actual Baixa lisboeta.
Mostraram-se algumas das características da construção preconizada no período pós-terramoto: a gaiola pombalina - uma estrutura treliçada tridimensional de madeira, inserida no interior da alvenaria das paredes interiores dos edifícios acima do 1º andar e que lhes conferia resistência a cargas horizontais, e ainda a estrutura regular dos quarteirões da Baixa. Pudemos ver num prédio em recuperação as ditas "gaiolas" bem preservadas (pelo menos por enquanto).
Acontece no entanto, que ao longo do séc XIX e XX várias intervenções foram levadas a cabo nesses edifícios que puseram em causa a segurança inicial.Sâo elas por exemplo, o corte de pilares ao nível do piso térreo, o corte dos painéis de gaiola para abertura de espaços no interior, e ainda o acrescento do número de pisos dos edifícios.
Estas alterações vieram reduzir a resistência sísmica dos edifícios da Baixa, assim como também conduzem a um risco significativo de perda de grande parte deste património de inestimável valor.
Para finalizar a visita, fomos conhecer e visitar o Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeeiros, associado ao BCP. Sob a intervenção do IPPC-IPPAR foram escavados 850 m2 a uma profundidade média de 3,5 m. A presença humana surge ali desde o séc IV A.C até ao séc XVIII. Pudemos observar a presença de tanques de salga de peixe, a demarcação de uma casa, os esgotos pombalinos, tudo isto perfeitamente integrado numa estrutura visitável, estando ao nível do chão uma cobertura em vidro que nos permitia ver, em baixo, a presença do passado.
A importância destas iniciativas prende-se nos dias de hoje com a importância da preservação do nosso património histórico e ainda com as lições que podemos e devemos aprender com o passado. Todos já ouvimos falar do risco de um grande tremor de terra. Quando, não sabemos. É preciso saber ler no passado e prevenir o futuro. E todos somos precisos. Não só os arquitectos e engenheiros, mas também os historiadores e os geólogos, num esforço conjunto de saber evitar danos maiores.
Porquê toda esta minha explicação? Porque a História também faz parte de mim e do meu viver. E já há algum tempo que não me sentia integrada neste "banho de saber". Foi bom mais uma vez ouvir falar de História, saber das investigações que estão a decorrer, encontrar amigos e pessoas com os mesmos interesses que eu.Já não está para além de mim. Pertence-me. Faz parte daquilo que sou.

(publicado em 24/09/2005)

Ainda há mar

Ainda há naus e viagem algures em nós
Ainda há mar
Ainda há naus para chegar ao outro lado
Lá onde só se espera
O inesperado

Talvez um dia por detrás do Ilhéu
Do meio da mágoa e da neblina
Porque ainda há viagem e Taprobana
Ainda há naus para passar
Além do tédio e da rotina

Ainda há mar

Ainda há naus para a abstracção
Matemática doa astros e dos ventos
Navegação do mito e seu teorema
Ainda há mar

Ao menos no poema

ALEGRE, Manuel, "Atlântico", D. Quixote, Lisboa, 1989, p.242

(publicado em 24/09/2005)

Argumento

De versos em que me escondo
encho os meus próprios ouvidos

Digo abrigo em lugar de ombros
rua em vez de paraíso

dádiva em lugar de roubo
em vez de pólvora vidro

rosto rasto ruga rogo
em vez de pólen e cisco

Só vivo se me prolongo
Caminho se não caminho

Sempre uma deusa bifronte
esta língua em que me exprimo

Digo remos vejo sombra
Chamo ramos ao que é vivo

Sonho que sonho o que sonho
E recomeço E desisto

É não indo ao meu encontro
que me encontro a sós comigo

Ah no incesto das ondas
com que pânico me atinjo

MOURÃO-FERREIRA, David, "Quatro Tempos", p.60

(publicado em 23/09/2005)

Manhã de Outono

A primeira manhã de Outono acordou radiosa, com aquela névoa que alastra do horizonte e que torna tão mágica e fresca a paisagem.
Ao atravessar a ponte, e quando aos meus olhos se abriu o esplendor do rio e da cidade, não pude esconder um sorriso. Aquela felicidade interior que faz com que o nosso coração bata mais depressa e o ar que inspiramos não caiba no peito. O rio estava de um azul claro metálico - resplandecente - e de longe vinha aquela névoa que se espalhava levemente, brilhando ela também ao sol matinal.
Lisboa nunca está tão bela como nestas manhãs. Preguiçosa e serena, estende-se até à beira-rio, brilhando em múltiplos pontos de luz.
A passagem, infelizmente é demasiado rápida. Apetecia-me parar e sair do carro. Debruçar-me sobre este rio e manipular o tempo, guardando para mim este momento e este espaço, e renascer eu também, com a cidade e o rio nesta manhã.

(publicado em 22/09/2005)

...

"Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome"

LISPECTOR, Clarice, "Perto do Coração Selvagem", Relógio d'Água, Lisboa, 2000, p.69

(publicado em 22/09/2005)

Lisbon Revisited (excerto)

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome e carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

CAMPOS, Álvaro de, "Poesias", Clássica Editora,Porto, 1993, p.230

(publicado em 21/09/2005)

Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética II, p. 60

(publicado em 20/09/2005)

Para responder a um desafio...

Há rostos que para sempre perdurarão na minha memória.
O rosto da minha mãe - quando se ria -, a sua expressão final de alheamento, e o seu rosto na morte.
O rosto das minhas filhas, primeiro pequeninas, e agora nas suas variadas facetas; o seu riso de felicidade (vou sempre vê-lo e ouvi-lo), e a sua expressão de tristeza.
Outros rostos vou recordar sempre; o rosto do meu companheiro de jornada (são muitos anos neste caminho que percorremos juntos); o rosto do meu pai; o rosto dos meus amigos.
Há ainda os rostos que por mim passaram ao longo da vida. Pessoas com quem interagi, outras com quem apenas me cruzei e ainda algumas com quem criei alguma espécie de empatia.
Outras coisas recordarei sempre com prazer. A imagem do mar. A sua cor intensa e a sua magia que sempre me preenche e transforma.
A frescura das manhãs de Verão.
As viagens. Sair do meu canto e partir. É toda uma experiência nova de cheiros e cores; de paisagens e gentes.
Outra coisa a recordar são as sensações.
Mais uma vez o cheiro do mar - fresco e salgado. Sentir aquela chuva miudinha sobre o rosto, fresca e persistente.
O vento nos finais de tarde de Verão. Fechar os olhos, abrir os braços e voar, apenas voar no seu embalo.
O aroma do café da manhã.
Abrir pela primeira vez um livro que se acabou de comprar. A antecipação da leitura. O cheiro dos livros novos.
E as emoções. Há emoções que nunca se esquecem.O nascimento das minhas filhas. A morte da minha mãe. Tão diferentes e igualmente tão profundas. A antítese uma da outra. A alegria e a tristeza. Deixaram marcas muito fundas na minha pele.
Tudo isto faz parte de mim. Participa daquilo que sou. Construiu-me como mulher.
Está no entanto, para além de mim, fora dos olhares alheios. Protegido e bem embrulhado no fundo do baú que é o meu coração.

(publicado em 19/09/2005)

...

"O tempo só tortura e fatiga aqueles que se entregam a fúteis preocupações egocêntricas ou o gastam em divertimentos, mas passa depressa para aqueles outros que se esquecem de si próprios, entregues a um trabalho que os supera. Perante a grandeza de um sonho corajoso, impossível, o tempo parece deixar de existir."

ANDRIC, Ivo, "A Velha Menina", Diário de Notícias, 2003, p. 59

(publicado em 19/09/2005)

...

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

CAMPOS, Álvaro de, "Poesias", excerto de "Tabacaria", p.233

(publicado em 16/09/2005)

...

"Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.A vida é pois um intervalo, um nexo, uma relação, mas uma relação entre o que passou e o que passará, intervalo morto entre a Morte e a Morte"

PESSOA, Fernando, "O livro do Desassossego", Novis, p.319

(publicado em 17/09/2005)

Libelo

Por caminhos só rectos, não sei ir.
Nos ínvios por que vou, não sei ficar.
Suspenso do passado e do porvir,
Venho e vou!, venho e vou!, não sei parar,

Abri asas nas mãos para fugir,
E raízes nos pés para amarrar.
(levava chão nos pés indo a subir,
Trazia céu nas mãos vindo a baixar...)

Eis, porém, que estes dons ultra-humanizam,
E os homens, meus irmãos, se escandalizam
E me espontam as asas e as raízes.

Assim se castram eles próprios, pobres!,
E tendo-se, mais vis, por mais felizes,
Se satisfazem com seus magros cobres...

José Régio, "Antologia Poética", Quasi, p.41

(publicado em 17/09/2005)

...

"Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas"

PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Colecção Novis, p.131

(publicado em 16/09/2005)

Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens.
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.

José Carlos Ary dos Santos

(publicado em 15/09/2005)

...

"A arte é um dom que cura a alma dos fracassos e dos dissabores."

SABATO, Ernesto, "Resistir", p.100

(publicado em 15/09/2005)

Poema Concreto

O que tu tens e queres
saber (porque te dói),
não tem nome. Só tem
(mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida
a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso
perdida nos teus escuros.
É como se tu comesses
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que não tens e falta
num lugar que nem sabes,
mas que é na tua vida,
quem sabe é em teu amor.

O que tu tens, não tens.

Thiago de Melo, "Canto do Amor Armado", p.112

(publicado em 14/09/2005)

...

"Precisamos de nos opôr ao desperdício e à fealdade do mundo, às multidões que circulam em torrentes que se espezinham. Devemos deslizar, com precisão e suavidade, colocar estiletes no meio dos romances e atar cuidadosamente maços de cartas com uma fita de seda verde e varrer com uma escova as cinzas da lareira. Nenhum esforço deve ser poupado para afastar de nós o horror da fealdade. Precisamos de ler escritores de virtude e severidade romanas; procuremos a perfeição nas areias do deserto".

WOOLF, Virginia, "As Ondas", p.145

(publicado em 13/09/2005)

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"Que seja a última vez que nasces e sais de casa sózinha!!"(foi o que me disse a minha caçula quando fui tomar o café da manhã) :-))

(publicado em 12/09/2005)

...

"É impossível desembaraçarmo-nos do odor persistente da nossa identidade. Desliza através de uma fenda qualquer da nossa estrutura."

Idem, ibidem, p.93

(publicado em 11/09/2005)

...

"(...) odeio os espelhos que me revelam o meu verdadeiro rosto. Quando estou sózinha, acontece-me muitas vezes mergulhar no vazio. Preciso de poisar furtivamente os pés no rebordo do mundo para não cair no nada."

WOOLF, Virginia, "As ondas", Relógio d'Agua, p.37

(publicado em 11/09/2005)

Quotidiano

Morre todas as noites uma águia
que só da minha vida se alimenta

Que mistura de cânhamo e de carne
no seu rasto de sangue me desvenda

Morre todas as noites no momento
em que volta a nascer a madrugada

E para lhe fugir ainda é cedo
E para celebrá-la já é tarde

David Mourão-Ferreira, "Quatro Tempos", p.24

(publicado em 10/09/2005)

Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.

Sophia de Melo Breyner, Obra Poética

(publicado em 10/09/2005)

E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos os choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

MOURÃO-FERREIRA, David, "Música de cama", p.73

(publicado em 09/09/2005)

...

"O tempo disponível para ler e o desejo de ler, nem sempre coincidem. Porque, se virmos bem, ninguém tem tempo para ler. (...) A vida é um perpétuo entrave à leitura.
(..) O tempo para ler é sempre um tempo roubado. (Como aliás o tempo para escrever, ou para amar.)
Roubado a quê?
Digamos que ao dever de viver.
É sem dúvida por essa razão que o metropolitano - símbolo tranquilo do referido dever - é a maior biblioteca do mundo.
Tanto o tempo para ler como o tempo para amar dilatam o tempo de viver.
Se encarássemos o amor pela perspectiva do emprego do tempo, o que sucederia? Quem tem tempo para estar apaixonado? No entanto, alguma vez se viu um apaixonado não ter tempo para amar?
Nunca tive tempo para ler, mas nada, nunca, me impediu de acabar um romance de que gostava.A leitura não resulta da organização do tempo social, ela é como o amor, uma maneira de ser".

PENNAC, Daniel, "Como um romance", Edições Asa, Porto, 1995, p.119/120
(O sublinhado é meu)

(publicado em 09/09/2005)

Os nascimentos

Nunca nos recordaremos da nossa morte
Tão pacientes fomos
para sermos
que anotámos
os números, os dias,
os anos e os meses,
os cabelos, as bocas que beijámos,
e aquele minuto antes de morrer
deixá-lo-emos sem anotação:
damo-lo a outros de lembrança
ou simplesmente à água,
à água, ao ar, ao tempo.
E de nascer tão-pouco
guardámos a memória,
ainda que importante e jovial
tenha sido a nossa vida:
e agora não te lembras sequer
do mais pequeno pormenor,
não guardaste sequer um raio
da primeira luz

Sabe-se apenas que nascemos.

Sabe-se que na sala
ou no bosque
ou no palheiro do bairro piscatório
ou nos canaviais rumorejantes
há um estranho e profundo silêncio
um minuto solene de madeira
e uma mulher que vai parir.

Sabe-se apenas que nascemos.

Mas da profunda agitação
de não ser para existir, para ter mãos,
para ver, para ter olhos,
para comer e chorar e despojar-se
e amar, amar, e sofrer, sofrer,
daquela transição ou calafrio
do conteúdo eléctrico que um corpo
toma para si como se fora uma taça viva,
e daquela mulher desabitada,
a mãe que ali fica com o seu sangue
e a sua dilacerada plenitude,
com o seu fim e princípio, e a desordem
que altera o pulso, o chão, os cobertores,
até que tudo se recolhe e mais

um nó é dado com o fim da vida,
nada, não ficou nada na tua memória
do mar bravio que ergueu uma onda
e derrubou da árvore uma maçã sombria.

Não tens mais recordações que a tua vida.

Pablo Neruda in "Plenos Poderes", p.61/3/5

(publicado em 9/09/2005)

O açude

Não sei nem jamais
saberei o nome
(se acaso tem nome)
do bicho que dorme
no escuro do açude
sem fundo que sou.
Nascido, senão
comigo, de mim,
é um bicho, ou como
se fosse; e que dorme.
Nem sempre ele dorme.
Talvez o agasalhem,
de sono enrolado,
as mais fundas águas
que em minha alma dormem:
as águas e o bicho,
num sono só, feito
de grávidos nadas
espessos e imóveis.
Mas nem sempre imóveis.
Um dia estremecem:
sem causa, e de súbito,
um tremor percorre,
longínquo, levíssimo,
o nervo das águas,
- essas águas fundas
que enrolam, dormidas,
o sono do bicho,
que já não é sono:
mal findo o arrepio,
começa a lavrar
o incêndio no açude.

Thiago de Melo in Canto do Amor Armado

(publicado em 08/09/2005)

...

"As frases, quando ditas, são como portas, ficam abertas, quase sempre entramos, mas às vezes deixamo-nos ficar do lado de fora à espera de que outra porta se abra, de que outra frase se diga..."

SARAMAGO, José, "O Ano da morte de Ricardo Reis", p.183

(publicado em 07/09/2005)

...

"O homem expressa-se para chegar aos outros, para sair do cativeiro da sua solidão. A sua natureza de peregrino é tal que nada preenche o desejo de expressar-se. É um gesto inerente à vida, não à utilidade, que transcende qualquer possibilidade funcional. Os homens, à sua passagem, vão deixando o seu vestígio; do mesmo modo, ao voltarmos a casa depois de um dia de trabalho esgotante, uma mesinha qualquer, um par de sapatos gastos, uma simples lâmpada familiar, são símbolos comovedores de uma costa que ansiamos alcançar, como náufragos exaustos que conseguiram chegar a terra depois de uma longa luta contra a tempestade."

SABATO, Ernesto, "Resistir", D. Quixote, Lisboa, 2005, p.21/2

(publicado em 07/09/2005)

E ainda mais uma vez José..

"Cuidado, sábio, nessa casa matam. Respondi-lhe: Se é por amor, não importa".

Idem, ibidem, p.65

(publicado em 07/09/2005)

...

"Faças o que fizeres, neste ano ou daqui a cem, estarás morto para sempre. (...)
Desde então comecei a medir a vida não por anos mas por décadas. A dos cinquenta tinha sido decisiva porque tomei consciência de que quase toda a gente era mais nova do que eu. A dos sessenta foi a mais intensa pela suspeita de que já não tinha tempo para me equivocar. A dos setenta foi terrível por uma certa possibilidade de que fosse a última. Não obstante quando acordei vivo na primeira manhã dos meus noventa anos na cama feliz de Delgadina, atravessou-me a ideia complacente de que a vida não fosse algo que corre como o rio revolto de Heraclito, mas sim uma ocasião única de dar a volta na grelha e continuar a assar do outro lado durante mais noventa anos."

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel, "Memória das minhas putas tristes", D.Quixote, Lisboa, 2005, p.108

(publicado em 06/09/2005)

...

"Porque me conheceste tão velho? Respondi-lhe a verdade: A idade não é a que temos mas a que sentimos"

GARCÍA MARQUEZ, Gabriel, "Memória das minhas putas tristes", D.Quixote, Lisboa, 2005, p.63

(publicado em 05/09/2005)

Estatutos do Homem

Artigo 1.
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida
e que de mãos dadas
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo 2.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo 3.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas
e que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo 4.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo 5.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura das palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo 6.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo 7.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo 8.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama,
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo 9.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal do seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo 10.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo 11.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama,
e que por isso é belo,
muito mais belo do que a estrela da manhã.
Artigo 12.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
sobretudo brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begónia na lapela.
Parágrafo único
Só uma coisa fica proibida:
Amar sem amor.
Artigo 13.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente,
como um fogo ou um rio,
ou como a semente do trigo,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Thiago de Melo
in "Canto do Amor Armado", p.37/8/9

(publicado em 04/09/2005)

...

"Nada é inteiramente verdadeiro, e mesmo isto não é inteiramente verdadeiro"

Multatuli

(publicado em 01/09/2005)

9/10/1934

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente - ;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles;
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada.
Para eles o sonho sonhado ou vivido.
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos

(publicado em 31/08/2005)

Desencontro

Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas;
a luz que pousa nas paredes frias,

outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.

Jorge de Sena

(publicado em 31/08/2005)

Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

(publicado em 29/08/2005)

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"A felicidade é isso, estar quieto nos limites em que se está a dizer que não ao que está para além. Ser-se todo onde se é e não onde não (...)"

FERREIRA, Virgílio, "Para sempre", Círculo de Leitores, p.67

"Amar é pôr ao alto e ao longe, treme-se como diante de um deus tresloucado. Amar muito é ter pouco de nós com que se possa ser gente"

FERREIRA, Virgílio, "Para sempre", Círculo de Leitores, p.107

(publicado em 28/08/2005)

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"Quero dar e receber e quero a solidão onde possa desdobrar em paz tudo o que possuo"

WOOLF, Virginia, "As ondas", Relógio d'Água, p.45

(publicado em 26/08/2005)

Amiga/Irmã

São laços tão recentes aqueles que nos unem, mas fortes o bastante para que te chame minha amiga, minha irmã. Este é também o teu sentir e fico feliz quando penso que (com alguma sorte) envelheceremos juntas, e juntas havemos ainda de passar longas tardes conversando como a de hoje. A amizade é um bem demasiado precioso para mim e o tempo às vezes, injustamente é certo, pode ser demasiado curto.

(publicado em 26/08/2005)

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O mar é a minha grande paixão. Acompanha-me nos bons e nos maus momentos; de Verão ou de Inverno, calmo como um espelho ou borrascoso, espumando de raiva e sal, alto no céu ou caindo sobre o horizonte. O texto que de seguida reproduzo, alia a beleza do mar e a do nascer do sol, e é para mim um dos mais belos que já li.

"O sol ainda não nascera. O mar apenas se distinguia do céu pelo leve preguear das águas, semelhante a um tecido finamente enrugado. Lentamente à medida que o céu clareava, uma barra de sombra desceu no horizonte, separando o céu do mar, e o grande tecido cinzento ficou marcado por grossas linhas que se agitavam sob a superfície, perseguindo-se num ritmo infindável. Ao aproximarem-se da praia as ondas erguiam-se, tomavam forma e desfaziam-se arrastando pela areia um ténue véu de espuma branca. A ondulação detinha-se, partia de novo, suspirando como alguém que dorme e cujo sopro vai e vem sem que a sua consciência o saiba. Pouco a pouco, a barra escura do horizonte clareou como as impurezas de um vinho antigo que se depositassem na garrafa, deixando transparecer o seu vidro. Lá no fundo, também o céu se tornou translúcido, como se nele se houvesse desprendido um sedimento branco, ou o braço de uma mulher reclinada no horizonte erguesse ao alto uma lâmpada. Faixas de branco, amarelo e verde alongaram-se sob o céu como longas folhas de um leque. Depois a mulher ergueu a lâmpada ainda mais alto; o ar inflamado pareceu cindir-se em fibras vermelhas e amarelas, elevando-se da superfície verde num frémito ardente, como as chamas envoltas em fumo de uma fogueira. Pouco a pouco, todas as fibras de fundiram numa única massa incandescente e o cinzento do céu transformou-se num milhão de átomos de um suave azul. A superfície do mar tornou-se transparente e as grandes linhas escuras quase desapareceram no ondular das águas e na sua cintilação. O braço que sustinha a lâmpada continuou a subir devagar até que uma grande labareda surgiu.Um disco de fogo ardeu no rebordo do horizonte e o mar à sua volta tornou-se um esplendor de ouro"

WOOLF, Virginia, "As Ondas", Relógio D'Água, pp.7,8

(publicado em 24/08/2005)

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Que l'amour est un sentiment étrange
Oui, tout le temps, évolue et change
Quand elle te dit des choses agréables
C'est sûr qu'elle devient bien plus désirable
Mais si elle vous gronde ou vous ennuie
Les sentiments por elle de suite deminuent
C'est comme le temps qui varie tout le temps
Tantôt un amour immense, tantôt la haine qui commence
Et il faut dire que le juste milieu
Devient parfois assez ennuyeux.

KOGAN, Georges, "Boniments et Sentiments", p.19

(publicado em 24/08/2005)

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"Ecoute... ecoute.... Dans le silence de la mer il y a commme un
balancement maudit qui vous met le coeur à l'heure (...)"

Léo Ferré, "Preface" ( Il n'y a plus rien)

(publicado em 22/08/2005)

Elogio da Dialéctica

A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração:
isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais alcançaremos.

Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.

Bertolt Brechtin Poemas, Editorial Presença,Lisboa, 1973, p.61

(publicado em 22/08/2005)

Um dia

Um dia, mortos, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Sophia de Mello Breynerin Grades, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1970, p.9,10

(publicado em 22/08/2005)

Rondel

De amor quem amo nunca sei ao certo
e a quem me tem amor sei que esse amor
eu amo ardentemente e nada mais.
Dizer de amor, sei bem de quem não digo;
não sei, porém, já se o disser, de quem.
Tudo se perde no que quero. Às vezes,
quando possuo, não possuir quisera.
E teu amor me quer. Como saber
se quero ou se não quero que se perca?
Dizer de amor, assim, pensando em tudo?
Ser esse amor que sou em teu amor?
Como é possível nascer outro, enquanto
o mesmo me conheço e a quem nasço?
Qual um ou outro? O que se esquece? Aquele
que se recorda? O que não pensa? O que
finge lembrar-se? Mas lembrar o quê?
Eu amo ardentemente e nada mais.

in Poesia I, Jorge de Sena, Moraes Editores, 1977

(publicado em 20/08/2005)

De volta...

Cá estou de novo. Acabaram-se as férias. É tão difícil acostumar o olhar à cidade e esquecer todo o azul que me preencheu nestes dias que passaram tão depressa.
O que me fica das férias e que recordo durante o ano, é o azul do mar e do céu e o som das ondas rebentando, ás vezes de mansinho, outras vezes não, mas sempre um som que me preenche e que muitas vezes relembro quando preciso de me afastar do quotidiano.
Enfim, mas voltar a casa também tem algumas coisas boas: é o nosso espaço, a nossa cama, o nosso computador, o meu blog e os blogs que visito frequentemente (do que senti alguma falta e que já me fez dizer que para o ano tenho que levar o computador!!) , os amigos (com quem não deixei de falar nas férias, mas que estavam mais longe..) e mais algumas coisitas que não me lembro agora.Recomecemos então........

(publicado em 19/08/2005)

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"...(...) há coisas indestrutíveis que acompanham o corpo até à morte como se tivessem nascido com ele. E uma delas é o que se criou entre um homem e uma mulher que viveram juntos certos momentos"

LISPECTOR, Clarice, "Perto do coração selvagem", Relógio d'Água, Lisboa, 2000, p.127

(publicado em 04/08/2005)

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É mais ou menos assim que vou passar os próximos quinze dias :-))
E quando não estiver na água vou estar a ler, porque de livros vai carregada a mala.
Até à volta!!

(publicado em 03/08/2005)

As donzelas

Conheci a algumas. Não parecem
mortais. E nem se enfadam nem se riem
às gargalhadas. E acordam sempre
como se já estivessem maquilhadas,
rosadas, sem malícia, saudaveis.
Não usam nunca fato com casaco,
mas sim um véu de tule até aos pés.
Andam descalças mesmo no inverno,
nunca têm calor nem têm frio.
A vida inteira passam à espera.
Nunca se impacientam. Mas às vezes,
das vezes a imensa maioria,
não há dragão que queira sequestrá-las
nem cavaleiro andante que as salve.

Amalia Bautista, in Trípticos Espanhóis, Relógio D'Água p.39

(publicado em 03/08/2005)

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Dentro de mim existe um mundo,
bem abaixo da superfície, onde está escuro e ninguém chega.
Quem me conhece bem diz que consegue ver dentro do meu olhar.
Para além do olhar.
Para além de mim.
Mas nunca dentro de mim.

(publicado em 02/08/2005)

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"Se há algo de apocalíptico, é este viver como se amanhã não houvesse mundo e só nos restasse dissimular a tragédia"

SABATO, Ernesto, "Resistir", Dom Quixote, p.93

(publicado em 01/08/2005)

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"Deus move o jogador e este move a peça. Que Deus por trás de Deus o jogo começa?"

BORGES, Jorge Luís, cit. in PÉREZ-REVERTE, Arturo, "A tábua de Flandres", D. Quixote, Lisboa, 1993, p.11

(publicado em 31/07/2005)

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"A maior parte das vezes nós nem sequer nos aproximamos do umbral do que está a acontecer no mundo, do que está a acontecer com todos nós, e então perdemos a oportunidade de intervir, de conseguir morrer em paz, domesticados na obediência a uma sociedade que não respeita a dignidade do homem"

SABATO, Ernesto, "Resistir", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.112

(publicado em 30/7/2005)

Inscrição sobre um rio

De nós apenas fique a extrema glória
de termos sido castos e corruptos!
E que se volva eterna a transitória
e luminosa cor destes minutos!

Que o nosso amor seja maior que nós,
secreto e audacioso como um rio!
Que tenha, como nós, a nossa voz...
Mas que o seu timbre seja menos frio.

David Mourão Ferreira, Obra Poética

(publicado em 29/07/2005)

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"A pertença do homem ao simples e ao próximo acentua-se ainda mais na velhice, quando nos vamos despedindo de projectos e nos aproximamos mais da terra da nossa infância, não da terra em geral mas daquele bocado, daquele ínfimo bocado de terra onde decorreu a nossa infância, onde tivemos as nossas brincadeiras e a nossa magia, a irrecuperável magia da irrecuperável infância. Então, recordamos uma árvore, a cara de um amigo, um cão, um caminho poeirento à hora da sesta do Verão, com o seu rumor de cigarras, um ribeirinho. Coisas assim. Não grandes coisas, mas pequenas e modestíssimas coisas, mas que no ser humano adquirem uma magnitude incrível, sobretudo quando o homem que vai morrer sózinho, pode defender-se com a recordação, tão angustiantemente incompleta, tão transparente e tão pouco carnal, daquela árvore ou daquele ribeirinho da infância; que estão separados não só por abismos de tempo mas também por vastos territórios.Acontece que vemos muitos velhos que quase não falam e que parecem olhar à distância todo o tempo, quando na realidade olham para dentro, para o mais profundo da sua memória. Porque o que resiste ao tempo e aos poderes de destruição é a memória, algo como a forma que a eternidade pode assumir neste trânsito incessante. Ainda que nós (com a nossa consciência, os nossos sentimentos, a nossa dura experiência) tenhamos mudado ao longo dos anos; e que a nossa pele e as nossas rugas se vão convertendo em prova e testemunho desse trânsito, há algo no ser humano, lá muito dentro, em regiões muito obscuras, aferrado com unhas e dentes à infância e ao passado, à origem e à terra, à tradição e aos sonhos, que parece resistir a esse trágico processo resguardando a eternidade da alma na pequenez de uma súplica"
SABATO, Ernesto, "Resistir", Editorial D. Quixote, Lisboa, 2005, pp.32,33

(publicado em 28/07/2005)

1/08/1984

"Nasceu a minha segunda filha. No dia 26 de Julho, às 13,40 na ... comecei com contracções às 5 da manhã, e entre as 12 e as 13,40 estava tudo terminado. Saí da sala de partos às 14,30. O F.... e a minha mãe esperavam-me à saída. Tudo correu bem. Tudo correu depressa. Depois de um pequeno almoço frugal, um táxi conduzira-nos à ... sem pressas e sem mala. Entrei, convencida de que ainda não era para ficar. Mas era. Já tinha 3 dedos de dilatação. O F... quase que chegava depois da bébé ter nascido (...) Todos previam um rapaz. Só eu, intimamente, sem nada dizer a ninguém, sempre desejei mais uma rapariga.
Os dias na maternidade foram cinco e longos. Tive muitas saudades da minha filha J... e sempre que pensava nela chorava sozinha.
(...) Na penúltima noite, à janela, depois do meu marido sair, sentei-me a fumar um cigarro. Estava quase de chuva. Sentia uma angústia tão grande. Umas saudades de tudo. Agora que já tudo passou e que já estou em casa há um dia, ainda choro só de escrever estas linhas. A sensação de abandono é enorme. O vazio é terrível.
(...) Depois da chegada, adaptei-me bem. Mas a tarde foi longa. O meu marido foi depois do emprego, comemorar com duas colegas e chegou bastante tarde. Mas aguentei-me.
(...) Agora, um dia depois, dia 1 de Agosto, aproveitei esta pausa em que as duas estão a dormir para escrever esta prosa quase chorosa antes que me esqueça de a pôr no papel, porque da memória nunca mais de apaga.
Está na hora da mamada das 16,30. Vou acordar a pequena."

Esta pequena fez ontem 21 anos e é a "caçula" mais espectacular que uma mãe poderia desejar (eu sei que todas as mães dizem o mesmo...) . Amiga, conselheira, responsável, meiga, decidida, e mais não digo, porque já devo estar a babar-me...
Este post faz a ponte entre o seu nascimento e o dia dos seus 21 anos.

(publicado em 27/07/2005)

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"Não é porque as coisas nos parecem inacessíveis que não ousamos. É porque não ousamos que elas nos parecem inacessíveis"

Séneca, cit. in SINOUÉ, Gilbert, O livro de Safira, Difel, Lisboa, 1999, p.121

(publicado em 25/07/2005)

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"A solidão não é viver só; a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós; a solidão não é uma árvore no meio de uma planície onde só ela esteja; é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raíz"

SARAMAGO, José, O Ano da morte de Ricardo Reis, p.226

(publicado em 25/07/2005)

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"La nuit n'est jamais complète
Il y a toujours puisque je le dis
Puisque je l'affirme
Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
Une fenêtre eclairée

Paul Eluard

(publicado em 24/7/2005)

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"É fácil condenar quando se vai apagando a explosão da vida e a caravela dos dias navega num mar de rugas espalhadas pela vastidão de um rosto de beleza ausente, sob o céu de um arrebol de cãs"

ROSA, Luis, O Terramoto de Lisboa e a invenção do mundo", Edit.Presença, Lisboa, 2004, p.63

(publicado em 22/07/2005)

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"Lá em baixo o mar brilhava em ondas de estanho, deitava-se profundo, grosso, sereno. Vinha denso e revoltado, enroscando-se ao redor de si mesmo.
Depois, sobre a areia silenciosa, estirava-se ... estirava-se como um corpo vivo"

LISPECTOR, Clarice, "Perto do Coração Selvagem, Relógio d'Água, Lisboa, 2000, p.38

(Publicado em 21/07/2005)

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"Os actos são muitas vezes a simples eclosão de um caminho íntimo que desejamos, que ansiamos, recalcamos ou inibimos, mas que uma mola oculta já resolveu que executará, no momento próprio, contra todas as interdições"

ROSA, Luis, "O terramoto de Lisboa e a invenção do mundo", Edit. Presença, Lisboa, 2004, p.24

(publicado em 18/07/2005)

Day one!!

Depois de vários meses a ler alguns blogs que elegi como meus preferidos, aqui me lanço eu também neste projecto de criar um blog "of my own".
É uma experiência nova para mim, que sei que exige carinho e atenção para que floresça.
Aos que me visitarem, contem encontrar aquii citações de livros que li ou que vou lendo, pensamentos que me digam algo, poemas ou, conforme a minha habilidade fôr crescendo, imagens que me toquem de alguma forma.

Aqui vai a primeira:

É a normalidade que nos faz medíocres. É preciso coragem para se ser diferente"

ROSA, Luis, "O terramoto de Lisboa e a invenção do mundo", Editorial Presença, Lisboa, 2004, p.75

(publicado em 17/07/2005)