quinta-feira, setembro 29, 2005

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"A pertença do homem ao simples e ao próximo acentua-se ainda mais na velhice, quando nos vamos despedindo de projectos e nos aproximamos mais da terra da nossa infância, não da terra em geral mas daquele bocado, daquele ínfimo bocado de terra onde decorreu a nossa infância, onde tivemos as nossas brincadeiras e a nossa magia, a irrecuperável magia da irrecuperável infância. Então, recordamos uma árvore, a cara de um amigo, um cão, um caminho poeirento à hora da sesta do Verão, com o seu rumor de cigarras, um ribeirinho. Coisas assim. Não grandes coisas, mas pequenas e modestíssimas coisas, mas que no ser humano adquirem uma magnitude incrível, sobretudo quando o homem que vai morrer sózinho, pode defender-se com a recordação, tão angustiantemente incompleta, tão transparente e tão pouco carnal, daquela árvore ou daquele ribeirinho da infância; que estão separados não só por abismos de tempo mas também por vastos territórios.Acontece que vemos muitos velhos que quase não falam e que parecem olhar à distância todo o tempo, quando na realidade olham para dentro, para o mais profundo da sua memória. Porque o que resiste ao tempo e aos poderes de destruição é a memória, algo como a forma que a eternidade pode assumir neste trânsito incessante. Ainda que nós (com a nossa consciência, os nossos sentimentos, a nossa dura experiência) tenhamos mudado ao longo dos anos; e que a nossa pele e as nossas rugas se vão convertendo em prova e testemunho desse trânsito, há algo no ser humano, lá muito dentro, em regiões muito obscuras, aferrado com unhas e dentes à infância e ao passado, à origem e à terra, à tradição e aos sonhos, que parece resistir a esse trágico processo resguardando a eternidade da alma na pequenez de uma súplica"
SABATO, Ernesto, "Resistir", Editorial D. Quixote, Lisboa, 2005, pp.32,33

(publicado em 28/07/2005)