Na mesa de cabeceira amontoam-se os livros por acabar e no entanto ... aqui vou ficando presa a esta janela que me traz o mundo à ponta dos dedos.
Voltei há pouco do ensaio. Um desejo de há muito, há pouco tempo concretizado - cantar. A voz não é a que eu gostaria - mais potente e mais flexível - mas é a que me resta. Valha-me o ter deixado de fumar há quase quinze anos ... Com algumas apresentações a aproximarem-se o maestro torna-se mais exigente, para culminar no último ensaio num estado de exigência que nos deixa a todos à beira de um ataque de nervos, e no entanto ... todos nós voltamos ... dia após dia ... com a mesma vontade de cantar e, como alguém diria, "de encantar"!
Ao chegar a casa, os gestos repetem-se. É a conversa e o mimo aos gatos que me recebem com marradinhas e pedinchices. Liga-se o computador e faz-se o chá. Espreita-se a tv onde o Malato continua a surpreender-me. (não sei se sou demasiado exigente ou se já perdi a paciência para a programação da nossa televisão) Tiro o som à caixinha mágica porque começo a pensar em escrever alguma coisa.
Não! Devia, era ir para a cama!
Os meus horários cada vez estão mais distendidos para o lado da noite. Perco-me por aqui nesta rede de caminhos que se cruzam e entrelaçam levando-me de sítios conhecidos a outros a que nunca antes tinha pensado ir. É mais ou menos como as conversas. Já dizia a minha avó que são como as cerejas. Atrás de umas vêm outras.
Por isso me lembrei dos livros que me esperam na mesa de cabeceira.
Vejamos: há os últimos três capítulos do livro da Isabel Allende, A Soma dos dias, que teimo em chamar de a sombra dos dias. Umas míseras quinze páginas que se vêm arrastando ao longo de alguns minutos que eu tento ganhar ao sono em cada noite que passa. Depois, O Codex que começou muito bem, velocidade elevada, ritmo certo, para depois derrapar em intermináveis descrições que me tiram a vontade de continuar. E no entanto, falta muito pouco ... E por último, um livro de contos: Cal, de José Luís Peixoto, que me levou ligeira até à página cento e vinte e dois, para depois estacar perante um trecho de teatro que teimo em não ler.
Dantes, nunca deixava um livro assim, meio lido. Dantes, não acumulava livros à cabeceira. Lia-os de ponta a ponta, obrigando-me a deglutir até aquelas partes mais monótonas, fazendo por vezes um esforço para chegar à última página, mas isso era antes ... antes dos cinquenta, antes de olhar para mim e aceitar aquilo que sou com todas as imperfeições a que tenho direito. Antes de mim!
(...)
(olhando para esta caixa sem som encontro de repente alguém que estava adormecido no fundo da memória. Frei Hermano da Cãmara. debato-me se ponho som na tv ou não, no fundo tentando não estragar o resto do que guardo)
(...)
(não resisti e nesse gesto recuei 30 anos ... )
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(não resisti e fui pesquisar na net a biografia do dito Frei: 75 anos em 2008 ...)
(...)
(não resisto a pensar que certas opções de vida não desgastam ... ou então é a vida artística que o exige ... Que mal haverá em deixarmo-nos envelhecer naturalmente? As rugas e os cabelos brancos também contam a nossa história ... Relembro a minha avó prematuramente envelhecida pelo desgosto da perda de um filho. Relembro-a nos seus belos cabelos brancos suavemente ondulados e na sua postura orgulhosamente erecta. Feições ríspidas, ou tristes talvez, e no entanto ... a melhor contadora de histórias que eu poderia ter tido. A avó mais doce ...)
(...)
Falava eu de imperfeições antes de me ter perdido nestas nocturnas cogitações ... e de livros, e de escolhas.
Um-dó-li-tá, dizíamos nós na infância ... evitando assim a responsabilidade de uma escolha.
Um-dó-li-tá, e o dedo espetava-se para a frente na urgência de chegar ao fim.
E agora de novo ... só mais uma vez ... um-dó-li-tá ...
Está decidido ... vou dormir!!