quinta-feira, março 16, 2006

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O casamento é um soneto. Cheguei a esta irrecusável conclusão observando que todos os remorsos líricos inspirados pelo amor conjugal saem em forma de soneto. Porque o soneto é o sistema estrófico do amor a definhar-se em procriação: duas quadras que se unem para fazer dois filhos que são os tercetos finais da catástrofe conjugal.
O casamento, dizem, é o desenvolvimento de uma ideia de harmonia, uma cadência perfeita, acabando no pensamento elevado da multiplicação dos corpos para desbravarem as selvas de cristal da via láctea. Mas a ideia subordina-se ao concreto dos cônjuges que são as estrofes rigorosamente contidas em seus limites farpados e o fim de cada estância de trabalho de gritos para reorganizar a solidão unânime dos amantes é marcada por uma vírgula de nítido rancor. Só de costas os cônjuges podem reassumir a fotográfica pose matrimonial fazendo nessa posição incómoda filhos que naturalmente se distinguem na guerra. Só de costas como as estrofes que no soneto simulam visar a unidade. Daí o casamento ser um soneto monotonamente recitado pelo código civil.
A Idade Média que é o casamento acabando em pouca vergonha foi genialmente inábil para compôr a música sonolenta do soneto.
A Renascença que é a pouca vergonha acabando em casamento teria que inventar o soneto pois que nele Petrarca inventava o casamento que não fez com a Laura. Um homem que queria casar, exasperando-se na proibição do doce ressonar do casamento, eis Petrarca, o chineleiro do sonho burguês da Renascença que de poético só teve as antigas deusas abandonadas à fúria das camas dos papas que eram os únicos que realmente não queriam casar.
Mas, ó contradição dos homens que no amor começam como o caminho acaba, quereis um amor impossível, vós que de Isolda e Tristão herdastes os melancólicos ademanes de flores batidas pela morte? Casai-vos! Encarnai no corpo que noutro toca a sua destruição diária! e então sim tereis a vossa dose de amor impossível, meticulosamente planeado pelo desastre.
É aqui que o soneto em sua clínica brancura enlouquece e se desprende na beleza à solta de um duplo suicídio.

CORREIA, Natália, "A mosca Iluminada", Quadrante, pp.32/33

(Hoje faz 13 anos sobre a morte de Natália Correia)

3 Comments:

Blogger wind said...

Espectacular! Este texto não conhecia. Ela era Grande mesmo:) beijos

12:41 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Genial!

12:18 da tarde  
Blogger lena said...

não me llembro de ler este texto. mas lembro-me do livro, está excelente, o que partilhaste,
sim passaram 13 anos, mas conninua muito viva entre nós

beijinhos para ti doce Dulce

10:12 da tarde  

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