quarta-feira, março 08, 2006

Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

GEDEÃO, António, "Obra Poética", Edições João Sá da Costa, Lisboa, 2001, p.62/63

(Hoje é Dia Internacional da Mulher ou Dia de Limpeza das Consciências?)

8 Comments:

Blogger wind said...

Dia da limpeza das consciências! Bom poema para este dia:) beijos

10:13 da manhã  
Blogger José said...

Neste país de liberdade, quantas não são as Luísas que tem uma vida oprimida,... para conseguirem sobreviver...
Um beijinho a todas as mulheres, hoje.
E um beijinho para ti, Dulce, por esta escolha tão apropriada.

12:22 da tarde  
Blogger Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) said...

Todas las mujeres somos un poco Luisas. Todas. La renuncia nació con nosotras.

Un beso Dulce. Que tengas un buen día, mujer trabajadora. Concha.

1:02 da tarde  
Blogger saisminerais said...

Olá doce amiga, Foste a pesoa que meus olhos procuraram primeiro quando entrei na quinta da ribeirinha em Povoa de santarrém
mas depois de constatar que afinal não estavas presente, mas estiveste em pensamento, sentar-me -ia a teu lado...
quando subi para ler meus poemas ocorreu-me que tu entendias na perfeição o que li. Como vês estavas lá.
espero dia vinte e cinco´, então verr-te, será?
deixo aqui um beijinho
e espero que estejas de optima saúde

1:34 da tarde  
Blogger Choninha said...

Obrigada Dulce pela partilha do poema, que não conhecia.

4:26 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Pelo que já deves conhecer de mim, dias internacionais de seja do que for não grudam muito...Este poema do António Gedeão, que já conhecia, às vezes conheço alguma coisa, foi extraordinariamente bem colocado hoje, aqui, por ti, Dulce. Para mim, é um poema dramático, pungente, cheio de dor e que retrata a sociedade ainda, actual. Infelizmente. Para ti, o meu aplauso.

8:27 da tarde  
Blogger escrevi said...

Muito bem.
O pior é que ao fazer a limpeza varrem o lixo para debaixo do tapete.

11:49 da tarde  
Blogger JPD said...

O A. Gedeão é dos melhores poetas contemporâneos.
Bjs

10:00 da tarde  

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