segunda-feira, fevereiro 27, 2006

A invenção do Amor (excerto)

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisa da
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas

Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...
Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
...
Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A polícia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo

(mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

FILIPE, Daniel, "A Invenção do amor e outros poemas", Editorial Presença, Porto, pp.25/29, 30/31, 33/34, 42/43

8 Comments:

Blogger AQUENATÓN said...

Lindo texto, Dulce !
Obrigado pela sua partilha conosco.

Julgo ter visto algures esse casal fugitivo...
mas juro, que nunca denunciarei os que por amor se dão e fogem de tanta hipocrisia do mundo...
Para esses, a minha infinita ternura e compreensão.


Bji

3:27 da tarde  
Blogger Ana Fundo said...

Olá,
Passei para te mandar um beijinho e dizer que estou de novo activa no meu blog.
Passa por lá.
Bjkas
Ana Paula

4:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Passei por aqui pelos dedos do Acaso; não é por acaso que levo nos dedos jeitos de voltar outra vez...
jorge
http://andarilho.squarespace.com/

4:58 da tarde  
Blogger wind said...

Sempre gostei deste poema. Um hino ao amor e contra a guerra, da ddesumanização. beijos

8:16 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Tens aqui um lindo excerto da “a invenção do amor”, Dulce. É urgente, cada um inventar o seu próprio amor e alimenta-lo para nunca morrer… Que seríamos, nós sem amor? Possivelmente uns calhaus sem forma…

Um terno beijo, boa semana!

12:42 da manhã  
Blogger Menina Marota said...

A Invenção do Amor... como gosto deste Poema do Daniel Filipe.

Grata pela partilha

Um abraço carinhoso ;)

12:54 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Sublime!! Sou demasiado pequena para qualquer palavra...Beijinhos.

1:57 da tarde  
Blogger lena said...

um dos mais belos poemas que já li, é um hino de amor, não me canso de o ler, partilhas sempre algo especial, Dulce e este poema de Daniel Filipe é mesmo especial

obrigada por trazeres este excerto até aqui


beijinhos meus, muitos

11:23 da manhã  

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