terça-feira, abril 24, 2007

Três personagens. Um único acto.

Abriu o portão e deixou que o carro deslizasse para dentro da garagem. O arranhar do travão de mão despertou-a. Chegara ao fim de mais um dia. Ou não. Começava agora a noite e outro ritmo se iniciava também. A filha disparara já direita a casa e ouvia os seus passinhos miúdos a subir as escadas em direcção ao quarto. Os dias grandes que agora começavam deveriam alegrá-la. O jardim resplandecia! Verde polvilhado de inúmeras cores. O ar estava morno e a passarada adivinhava já o fim de tarde num chilreio feliz. A casa acolheu-a em silêncio. Subiu para se despir. No sofá ficara a mala que a miúda pousara descuidadamente. Arrumava-a? Chamava-a para que a arrumasse? Não! Para quê? Nada interessava já. Dizia-lhe depois - mais tarde quando o silêncio deixasse de pesar como agora. Despiu-se lentamente enquanto que ao lado ouvia a filha numa ladainha infantil conversando ... conversando. E ela? conversava com quem? Olhou para si mesma reflectida no pequeno espelho. A magreza extrema era a face mais visível da tristeza. Depois olhou-se na pequena moldura. Vinte anos a menos. No olhar, ainda presente a expectativa do futuro. Procurou-se agora no pequeno espelho. Nada. Por mais que olhasse não encontrava nada neles. Buracos vazios e ocos onde cabia uma mão cheia de fracassos. Mamã, ouviu do quarto ao lado, mamã! e o chamamento arrastou-a para o presente. Ainda era cedo, podia sentar-se um bocado com a miúda. Ouvi-la contar sobre as brincadeiras do dia. Perguntar se havia trabalhos de casa. Ajudá-la. Não, não tinha paciência de ouvir os seus relatos inúteis nem estava interessada no seu pequeno mundo. Só queria ... só queria ... nem ela própria sabia o quê! Fechar as portas, as janelas, os olhos e a vida e deixar-se ficar assim naquele buraco escuro e sujo que ajudara a construir. O seu corpo. Ou o que restava dele.


Entrou em casa. Contrastava a luz interior com a intensidade de uma tarde ainda soalheira. Na televisão aquele concurso detestável que antecedia as notícias. Ninguém à vista. Momentâneamente substituiu a máscara de frieza que colocara, pelo seu verdadeiro rosto. Através das grandes vidraças viu os gatos que brincavam no jardim. Mãe e filho. Sorriu com ternura e deixou-se ficar uns minutos a observá-los. Depois abriu as portas e foi ao seu encontro. Chamou-os com voz terna e pegou num e depois no outro para lhes fazer as festas que já esperavam. O silêncio era quebrado pelos miados doces de ambos e pelo chilrear da passarada que se abrigava na grande palmeira. A tarde caía e era doce a luz do crepúsculo. Dourada e breve, adoçava o verde do jardim e matizava a multiplicidade de cores. Se pudesse ficar ali ... se pudesse tirar a máscara para sempre pensou, e logo os olhos se turvaram, obscurecidos pelo denso passado e entristecidos por um futuro incerto. As notícias estavam a começar. Sentou-se no seu canto do sofá e a filha veio correndo pelas escadas. Já chegaste pai, e abraçou-se ao seu pescoço. Sentou-a ao colo e as notícias ficaram para trás, diminuídas pela vivacidade dos relatos da miúda. Brincadeiras entrelaçadas em mimos. Palavras poucas que o hábito sempre fora esse. Por detrás de si ouvia os passos na cozinha. O jantar que se aprontava. A miúda correu ao chamamento da mãe e ele ali ficou - no rosto vincado a sombra do último sorriso. Nas mãos agora quietas, o calor da última carícia. O olhar afundava-se no pequeno ecrã. Sonhava. Ou não. Pensava no passado e no que construira. Filhos. Pedras. E sonhos que acalentara bem no fundo do seu coração. Bem escondidos para que ninguém soubesse que se atrevia a sonhar. Como poderia? Os sonhos desmoronavam-se como castelos de areia. Se eles soubesssem que tivera sonhos. Se eles desconfiassem que se atrevera a sonhar ...

17 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sonhos… Sonhos sempre houve, calados, silenciados, oprimidos, interiorizados, com aquele sentimento de ter culpa de NADA!
Agora depois de ter dado vida a certos sonhos, liberto de certos medos e olhando para o espelho pesa a culpa de toda a sua inércia por nunca ter gritado, por ter passado os melhores anos da sua vida enclausurado, por nunca ter recebido uma palavra, um carinho, uma mão, por a única pessoa que o conhecia um pouco e com a qual ele desabafava ter deixado de sonhar, ter partido sem ter havido uma despedida sem ter dado um aviso ou um pedido de ajuda, por sentir culpa que se calhar não estava dotado para ouvir o grito que do outro lado pedia ajuda.
Agora onde existia o nada tem quase tudo, tudo o que sonhara e mais liberto dos seus nós, o seu passado de pessoa respeitadora continua a ser uma sombra na sua própria liberdade, de quem em Abril nasceu.

5:30 da tarde  
Blogger Isamar said...

Um post muito bonito feito com criatividade e eloquência. Atrevo-me a perguntar: para quando um livro, Dulce?
Sem demora! Quero ler-te no cantinho do sofá.
Beijinhos

6:07 da tarde  
Blogger poetaeusou . . . said...

+
Na televisão aquele concurso detestável que antecedia as notícias.
+
boa
+
j
*

9:01 da tarde  
Blogger vinte e dois said...

Estive a fazer uma leitura atenta das palavras que tens escrito (não consegui infelizmente ler ainda tudo) e queria deixar-te aqui os meus parabéns pela forma como escreves ;) Muito bonito. E um obrigado pela visita ;)

9:50 da tarde  
Blogger Cadinho RoCo said...

Ao entardecer, no espelho o verde gramado pela esperança de novo sonho.
Cadinho RoCo

4:55 da manhã  
Blogger Kalinka said...

Olá Dulce
Mais uma vez ADOREI LER-TE.
Trazes na tua escrita, factos reais que poderiam ser de qualquer um de nós que te lê. Registo estas palavras tuas:
...Depois olhou-se na pequena moldura. Vinte anos a menos. No olhar, ainda presente a expectativa do futuro...
é isso, por vezes olho para as minhas fotos com 30 anos e, o meu olhar era bem mais esperançoso do que o de hoje.

Ano de 2001 - 25 de Abril
Neste ano e neste dia, eu estava «presa» por outra razão... presa ao Amor/Paixão.
E, divagando, aqui vos ofereço estas palavras:
Hoje queria,
Encher-te de rosas cor de pêssego,
Queria acordar-te
Com uma flor pelo corpo,
Queria hoje...
Hoje queria amar-te muito,
Queria hoje,
Porque...
O quero todos os dias.

Espero que passes um bom feriado.
Beijos e abraços.

1:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

fantástico post escritora...
por favor participe em www.luso-poemas.net. é um cantinho de literatura onde todos podem mostrar o seu dom, conversar com artistas com o mesmo gosto, trocar ideias e assim contribuir para que a chama fantastica da nossa cultura se manhtenha em cada um de nós.

de uma visita e se quiser participar, seria uma honra para nos ter tremendo artista no nosso cantinho.
grande abraço. luso poemas

2:59 da tarde  
Blogger Unknown said...

A sombra dos dias...existem contudo ilhas no meio da monotonia.
Um texto que demonstra bem a validade do princípio "escrevo, logo existo".
Blogosfera sem limites, creatividades literárias - e outras - ao sabor do vento...saberes partilhados em registo sincrono ou assincrono.
Um prazer para os sentidos !

7:48 da tarde  
Blogger Moura ao Luar said...

Viver de costas voltadas, sonhar em silêncio, cada um para seu lado e ser infeliz até que vemos que a vida já passou...

7:52 da tarde  
Blogger augustoM said...

A depressão e a dor que causa, sonhos perdidos e outros não achados e, tudo em fim, tinha remédio, quando nos limitamos a aceitar a vida que temos, e não quer a não temos.
A dor é a ausência da satisfação do desejo, e nós infelizmente, somos um desejo contínuo.
Um beijo. Augusto

10:32 da tarde  
Blogger DE-PROPOSITO said...

Os sonhos, sempre os sonhos, alguns fantasmagóricos.
fica bem.
Felicidades.
Um beijinho para ti.
Manuel

10:53 da tarde  
Blogger paulotpires said...

como alguém disse: "a vida é o que acontece enquanto fazemos outros planos"

11:06 da tarde  
Blogger Maria said...

Até poderiam ser mais as personagens: o acto continuaria a ser único. Como única é a nossa capaciade de sonhar, de nos atrevermos a sonhar...

Beijos, Dulce

12:19 da manhã  
Blogger Teresa David said...

Uma bela e bem narrada história de sonhos e realidade. No fundo, os condimentos com que se cozinha uma vida! Muito bonito, parabens.
Já tenho nova história
Bjs
TD

10:30 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Brilhante. Enternecedor.
BKT

12:17 da tarde  
Blogger sonhadora said...

Esta noite deitei o sonho no leito ...e vejo estrelas.
beijinhos embrulhados em abraços

10:51 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Apenas para que saibas que estive aqui.
Eu nem me atrevo a sonhar… é perigoso, podemos magoar alguém.
Beijito

5:33 da tarde  

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