domingo, março 19, 2006

Ainda os sonhos ...

Gosto de me ver reflectida nas superfícies espelhadas. Vaidade de mulher ou não, é inevitável olhar para o meu reflexo quando passo ao lado de grandes montras. Gosto de me ver como os outros me vêem.
Gosto de notar a roupa a ondular ao ritmo dos meus passos ou à medida que a aragem a agita. Gosto de avaliar a minha figura esguia que avança com passo deslizante e seguro, quase sem levantar os pés do chão. Gosto de ver o cabelo que esvoaça. Gosto de me olhar nesse reflexo com os olhos dos outros. Momentos curtos estes em que me espreito com olhos que são simultâneamente curiosos e distraídos.
A maioria das vezes caminho com os olhos no chão e a expressão carregada. Rapidamente. Passos largos que em tempos ensaiei com o meu pai. É sinal de tristeza quando percorro as ruas lentamente e o olhar perdido em algo que não está lá. Os óculos escuros impedem que se veja a alma. Preservam a minha intimidade. Ocultam os meus sonhos.
São os meus companheiros de todos os dias: os óculos escuros e os sonhos. Os primeiros uma necessidade, os segundos ... impossível viver sem eles. Impraticável sobreviver sem eles.
Em criança sonhava com as bonecas que gostaria de possuir, com as brincadeiras que faria no dia seguinte; sonhava com um Natal numa única casa e com uma única família - eu que era repartida entre mãe e pai, entre estabilidade e medo. Sonhava com fins de semana sem trocas de casa e de roupas.
Adolescente, passei a sonhar com o príncipe encantado e com as festas a que gostaria de ir. Mais tarde, com o desabrochar da consciência social e política, sonhava com um mundo melhor em que também pudesse ajudar a fazer a diferença. Tempo do sonho por excelência, foi também o tempo das desilusões.
Quando jovem mulher os sonhos modificaram-se ao ritmo das mudanças da vida. Queria mais e melhor. Construir uma vida nova com grandes objectivos. Uma casa, uma família e dinheiro. Foi a época das grandes mudanças. O trabalho, o casamento, uma casa nova, uma família. Uma verdadeira construção. Vieram as filhas e passei a sonhar com o futuro - o delas - desejando-lhes o melhor. Viver em função delas colocou os meus sonhos num lugar subalterno. Acho que durante alguns anos até deixei de sonhar ...
O tempo passou entretanto. As filhas, adultas agora, constroem os seus próprios sonhos. Não coincidem com os meus. São os delas. O seu tempo chegou, e para mim é de novo tempo de voltar a ter sonhos. Menos grandiosos que antigamente mas igualmente importantes.
Já não desejo o Sol, apenas o seu calor.
Já não aspiro às estrelas, apenas a um pouco do seu brilho.
Já não sonho com o príncipe encantado, apenas com o encanto de um príncipe.
Continuo a sonhar com um mundo melhor, mas sem a luz utópica de outrora.
Hoje sonho com as pequenas coisas que me podem fazer feliz. Porque é de pequenas coisas - de breves momentos - que se constrói a felicidade. Um passeio à beira-mar. A carícia do Sol em cada manhã. Um livro à espera de ser lido. A palavra dos amigos. A presença do amor ... e a esperança.
Uma réstea de esperança brilhante e discreta, presente e vibrante, que me recorda que os sonhos não se abandonam. Abraçam-se. Agarram-se com ambas as mãos. Transformam-se, se preciso fôr para que subsistam, resistam e se concretizem.

11 Comments:

Blogger Maria Carvalho said...

Com as lágrimas dos meus sonhos presas no teu texto, tão, tão real. Obrigada, Dulce. Beijos.

2:50 da tarde  
Blogger vero said...

Querida amiga,
fico rendida às tuas palavras, nem sei explicar os sentimentos k afloram, quando acabo de te ler...
Beijinhos ***

3:36 da tarde  
Blogger Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) said...

Dulce. Tu texto, tan emotivo y real ha calado dentro de mi y me ha hecho valorar ciertas cosas que por estar ahí, no le doy importancia.

Tus trasiegos de niña con la maleta de viaje, con tus cosas, con tus casas...sí...esas cosas marcan en la vida. Pero tu serenidad y equilibrio te han ayudado a superarlas. Disfruta de esas maravillosas y sencillas cosas que te recofortan como son esos paseos a la orilla del mar, tu caminar rápido, tu mirada en el suelo...tu cabeza bullendo de recuerdos, de sueños y de tristeza.

Ahora comienza la primavera y el sol va a caer de nuevo sobre ti y te envolverá. Siéntete feliz porque tu sola presencia hace feliz a quiénes te rodean.

Dice una cación de Dyango: "será mejor querer y después perder que nunca haber querido..."

Y tú Dulce, naciste amando y sigues amando. Eso se percibe. Te felicito y te envío todo mi cariño y solidaridad. Besos. Concha. feliz porque tu presencia

6:44 da tarde  
Blogger Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) said...

Sobran las cuatro últimas palabras. Disculpa.

6:46 da tarde  
Blogger Su said...

amei ler.te
ainda tenho tanto sonho......mas o tempo....corre mais depressa....
jocas maradas

7:37 da tarde  
Blogger wind said...

Extraordinário texto! Respondi-te por mail. beijos

7:53 da tarde  
Blogger José said...

"... os sonhos não se abandonam. Abraçam-se. Agarram-se com ambas as mãos."
Mais uma vez, adorei este texto... levou-me a sonhar e a recordar... levou-me a viver.
A vida é feita de pequenos sonhos!
Obrigado por partilhares os teus.
Beijos

8:01 da tarde  
Blogger lena said...

Dulce adorei ler este teu texto e continua a sonhar, não deixes de o fazer, os sonhos não se medem pela grandeza, mas por aquilo que nos podem satisfazer em cada momento, transformam-se com o tempo, mas resistem

beijos para ti doce menina

lena

8:28 da tarde  
Blogger mixtu said...

a vida faz-se de pequenas cosas e quem se aperceber disso é feliz, a vida é como uma escada e não uma rampa, degrau a degrau...
excelente música
beijos

8:45 da tarde  
Blogger AQUENATÓN said...

E porque a coragem, o amor, a firmeza, são escassos representantes da humanidade e também porque tu és isso tudo, é que eu te elegi alma gémea.

É dessas qualidades que devemos viver.
Por isso te deixo a minha presença e a minha semente de amizade, porque o teu ser é belo e dá-se em sabedoria.
Para além de ti, há ainda o timbre musical da tua voz...

Bji

11:06 da manhã  
Blogger luis manuel said...

Os reflexos repetem-se. Pelos espelhos, pelas superfícies espelhadas, nos óculos escuros também.
Os olhos absorvem todas as imagens, todas as cores. Fotografam.
Retratam a própria vida, ou as próprias vidas. Algumas em tom de desafio.
E pelo silêncio, apenas os passos rápidos ecoam um som. Não se ouve o disparo do diafragma, os fotogramas são recolhidos mesmo com o olhar distante ou em baixo.
A abertura é a do pensamento, do espírito. A velocidade é a do sonho, do tempo.
Não existe programa algum. A operação é completamente manual, como só assim é possível enquadrar o Sol, o Mar ou a Lua.
O sonho concretiza-se em mil películas, algumas parecem repetidas. Propositadamente os objectos recolocam-se, os outros retomam a sua figura. O enquadramento remonta-se.
A esperança brilha, e a força de acreditar dá o equilíbrio necessário.
“É pelo sonho que vamos” escreveu o poeta Sebastião da Gama.

Um beijo, amiga.

4:26 da tarde  

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