segunda-feira, maio 05, 2008

Conversas nocturnas


A noite parecia estar no fim. A nova série, Contemporâneos, que antes havia sido apresentada como Comtemporâneos, o que me deixou pensativa a olhar e a pensar o que havia ali de errado ... não me convenceu! Depois, foi mais um passeio a um passado recente onde as memórias estão ainda tão frescas. Os velhos táxis, as imagens de Lisboa a preto e branco, as roupas das senhoras, a menina emília que apanhava malhas das meias - lembro-me bem de ver a minha mãe a fazer o mesmo - realidades hoje quase esquecidas por todos nós.
Parecia acabada a noite televisiva. Depois ... o telefone tocou. Falou-se do dia, do meu e do teu, e vim sentar-me à frente do computador e ligar a câmara, mas nada aconteceu. Do outro lado, os bocejos mostravam bem que a vontade era de dormir. Faça-se então a tua vontade. Durma-se! Às despedidas seguiu-se o silêncio.
Na sala, a tv falava baixinho e deixei-a ficar ... talvez os gatos ocupassem o meu lugar no sofá ... talvez a voz se cansasse de falar para uma sala vazia. Peguei um copo no armário e despejei o resto do Baileys. Não, não era o suficiente mas que fazer? era o que havia! Trouxe o copo para o escritorio e pousei-o na secretária. Desliguei o msn e com os cotovelos apoiados na mesa, apoiei a cabeça que teimava em tombar. Sono? não propriamente ... O ecrã olhava-me fixamente e incomodava-me a sua insistência. Pensei em escrever, mas o quê? Devia escrever ... deitar cá para fora aquele peso que tantas vezes me asfixia ... escrever o quê? para quê?
O tal livro que a L insiste que eu escreva. Até já tenho o título. Dois até. Conversas nocturnas. Ou melhor ainda - 38, rua da ferradura. Mas a pergunta mantém-se. Escrever o quê. Apenas sei escrever sobre mim, fechada no meu pequeno mundo que às vezes me parece imenso e perdido. Depois ... o telefone voltou a tocar. Era a L que está sozinha esta noite. Ela não sabe, mas eu gosto quando ela está sozinha. (Não sabias isto pois não L?sim, eu sei que me vais ler). Gosto de te saber feliz mas sinto também a tua falta nos outros dias. Egoísmo meu talvez ... sei que nestas horas estás disponível para mim e eu não sinto que esteja a roubar-te tempo. O tempo das confidências. As tuas e as minhas. Primeiro falaste tu, depois abri a comporta e foi a minha vez. Sei que contigo posso falar. Sei que mesmo que não concordes ou não compreendas, me ouves com carinho e atenção. Sei que posso dizer tudo. Falar das minhas dúvidas e dos meus medos. Porque tu és a irmã que não tive, a mão que segura a minha se eu precisar. (Não chores faz favor - nada de pieguices - já basto eu que pareço uma maria chorona!!)
Depois acabámos a falar de Inglaterra e do nosso próximo passeio. Já falta pouco ... tanta coisa que eu já fiz nestes últimos anos ... tanta ainda que gostaria de fazer ...
No fim também já bocejavas ... já tudo tinha sido dito ... hoje ías dormir sozinha. Sentias a falta da companhia ... do pé que se procura debaixo dos lençóis ... da presença que se adivinha antes de se sentir ... da respiração pausada que paira ao nosso lado. Também sei ...
Fiquei aqui, telefone desligado, a retribuir hipnotizada, o olhar insistente do monitor. Escrever para quê? Falar de quê?
Abri a cama. Desliguei finalmente a tv da sala que continuava a falar para o vazio. Apaguei as luzes da cozinha e vesti o pijama e o roupão. Os gatos estavam deliciosamente deitados nas suas pequenas almofadas. Esperavam-me mas, só mais um pouco ... voltei a sentar-me frente ao computador. O copo já estava vazio. Era a hora de atacar o chocolate negro sem açucar que guardo dentro da gaveta da secretária. Há dias em que consigo resistir-lhe pensando na linha e na praia que está tão próxima e no bikini que ficou por estrear do ano passado (será que me serve ainda?). Outros dias há que as mãos são mais céleres que a vontade e são dois ou três pequenos quadrados que mastigo quase com mais raiva que paixão - a linha esquecida e a dieta adiada, porque algo mais forte que isso se impõe e me ganha.
Hoje foram só dois. Dois quadrados. Ao guardar o resto na gaveta, espreita-me ao fundo o maço de tabaco que a L um dia me pediu para guardar. Passo-lhe os dedos por cima, suavemente. Inspiro o aroma que ainda imagino e fecho a gaveta. Não me vejo a voltar atrás. Ou vejo se calhar ... por vezes apetece-me mergulhar de novo naquela embriaguez ... mas não o faço. Sei que se voltar a acender um único cigarro que seja, nunca mais páro. E contudo já lá vão quinze anos.
Conversas nocturnas, poderia ser o nome do livro ... ou 38, rua da ferradura ... ou então, apenas mais um monte de palavras jogadas aqui. Mais um pedaço de mim. Quem saberá juntar as peças?


(A Wind presenteou-me com o Selo da Amizade que está no topo deste post. Peço desculpa de não fazer a distribuição "como manda o figurino", mas remeto-o para aqueles que me estão mais próximos e que assim o sentem, incluindo tu - Wind)


10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Quanta tristeza...
Hoje é um novo dia e está sol.
Talvez o seu calor te "derreta" essa angústia que teima em permanecer no teu coração.
Não te quero assim mana, se estás triste eu também fico, tu sabes.
E eu posso ter 10 homens na cama comigo que estou sempre disponível para ti. (sorriste?)
Nem sei o que diga, fiquei com um nó na garganta, ainda não são 8 da manhã e tu fizeste o favor de me pôr assim. Bolas!!!

Até logo

L

7:56 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Bonito texto apesar de triste.
Tu quando descreves o que estás a sentir quando estás triste fazes-nos acompanhar esse sentimento como se estivessemos dentro de ti.
Como vez um dos ingredientes necessários para um escritor fazer o que lhe compete: escrever!
Bom mas a prosa não é para brincar e eu não consigo deixar de te dizer e que me perdoe quem vier a seguir.
Se eu estivesse a falar com uma pessoa que bocejava com enfado, mandava-o à merda.
Desculpem os dois mas é mesmo o que apetece!
Então uma pessoa passa o dia inteiro à espera de um bocadinho de conversa, só para distrair, para dizer olá, estou aqui, tens saudades minhas, etc. e o outro boceja???
Francamente...

Bjs

Escrevi

11:27 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Mais um anónimo: EU
Tanta ternura.
Tudo tão bem escrito, tão bem SENTIDO.
Felizardas as gatas.
Felizarda a dona pela próxima viagem.
Felizardos nós que lemos tudo isto.
(Mesmo que, como é o meu caso, a vontade é de desistir de TUDO)
Bjk

12:34 da tarde  
Blogger wind said...

Incrível a capacidade de seres tu aqui.Desnudas-te, descreves tudo ao pormenor tanto fisico como psicologicamente.
Expões-te escrevendo magnificamente!:)
Beijos

6:02 da tarde  
Blogger tulipa said...

OLÁ DULCE
Já num outro dia te convidei para visitares o meu novo blog, mas...não te vi por lá; eu era kalinka e agora transformei-me numa Tulipa, na Primavera!!!
Mas lá, no novo blog é proibida a palavra antiga-kalinka.

Estás triste, assim o demonstram as palavras; não estou melhor, com baixa psiquiátrica, a minha depressão voltou e forte.

Não era um ramo de flores
Era um jardim pleno de sabores
Feito de espaços e abraços
De cores e de calores
De vermelhos como os amores....

É isso, estamos na Primavera!!!
Adoro flores e jardins cheios de cores.

Boa semana. Beijo.

1:06 da manhã  
Blogger poetaeusou . . . said...

*
nocturnos chopin(s),
em melódicas palavras,
,
conchinhas,
,
*

2:34 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Navegando, navegando cheguei aqui já sem saber de onde venho. Feliz acaso... gostei do que li e por isso vou voltar.
Já agora, convido-a a passar pelo meu Rochedo

5:06 da tarde  
Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

Mais Dulce, Dulce melancólica interpelando os objectos. O tempo escoa onde os acontecimentos se sucedem sem brilho: o retinir dos telefones, o já sabido das conversas gastas, as lembranças e os gatos que atrapalham o fio dos pensamentos, os gestos insistentes e os quereres impotentes, a embriaguez metonímica do copo, do quadrado e do maço. Monte de palavras jogadas, mais um pedaço de mim.

Força, Dulce.

7:50 da tarde  
Blogger Oris said...

Gosto de conversas nocturnas....e gostei muito da tua.

Só não gostei da nostalgia que adivinhei escondida na escrita.

Beijitos

11:46 da tarde  
Blogger Nilson Barcelli said...

Acompanhei-te nessa conversa nocturna de fio a pavio.
Este texto pode ser o início do livro. Vai continuando que algum enredo te há-de surgir. Ou até muitos, pois o monólogo pode continuar indefinidamente... contando histórias que já viveste (ainda que as possas colocar em outras personagens) ou assististe de perto. E usa a imaginação, inventa, fantasia e por aí fora.
Isso acontece com muitos escritores, que começam sem saber bem o que vão contar.
Força cara amiga, basta que escrevas um ou dois textos deste tipo por semana, com alguma ligação... portanto, fico à espera que publiques 5ª ou 6ª feira a continuação ...

Bom resto de semana, beijinhos.

11:44 da manhã  

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