domingo, março 04, 2007

Pensão Emília

Pensão Emília - Bons Quartos. Acho que vejo este letreiro pelo menos há uns bons trinta e cinco anos. Ali mesmo, na rua ao lado do Tribunal.
Era sempre em tardes extremamente quentes que desembarcava em Faro. Vinha de Loulé onde passava férias com a minha mãe em casa de umas pessoas amigas. Para a próxima falo-vos delas. Chamávamos-lhes ... "as meninas". Como dizia, chegava sempre à tarde nas velhas camionetas e desembarcávamos na central de camionagem ali mesmo no largo principal, junto ao Hotel Eva. Recordo o contraste entre o interior da estação - fresco e sombrio - e a saída para o exterior - abafado e luminoso.
Todos os anos era a mesma coisa. Subíamos a Rua de Santo António - ex-libris da cidade - com as suas lojas e cafés da moda. O velho Centro Comercial e o seu cinema, a pastelaria Gardy à direita, local obrigatório para quem queria ver passar as gentes. O Armazém Americano mais acima e à esquerda uma papelaria e livraria de que não me lembro agora o nome, e que eu gostava sempre de espreitar. Assim chegávamos ao fim da rua e enfrentávamos o grande largo, nessa altura bem diferente do que é agora. Em frente o Tribunal - Domus Justitia - ainda hoje igual. Fachada recta que se atinge subindo a larga escadaria. De um lado a Avenida de árvores frondosas, do outro uma singela rua. E lá estava a velha pensão. Pensão Emília - Bons Quartos. Um pouco à frente um muro de grades vestido de verde. Lá permanece ainda hoje. Assim como o velho portão sobre o qual cai um arbusto de flores grenás.
Até aí conhecíamos o caminho. Daí para a frente era a confusão. Nunca sabíamos bem onde virar. As ruas pareciam-nos todas iguais. As casas também. E o calor era um peso que se arrastava connosco ao longo do percurso. Uns passos mais à frente fazia-se de novo luz para nós. Reconhecíamos o velho edifício de esquina - Cromagem, dizia, - e logo depois o nome da rua que procurávamos. Casas baixas de cores gastas e pesados batentes. A porta ao centro e de cada lado uma janela alta.
As velhas tias nunca nos esperavam. O telemóvel é coisa recente... Abriam-nos a porta entre o estremunhado e o aturdido e no meio de exclamações de surpresa faziam-nos entrar para a velha sala à direita do corredor. O grande e desbotado espelho dourado lembrava outros tempos. Os sofás antigos estavam ali há séculos, desesperando já de uma companhia que há muito não tinham. Abriam-se as portadas de madeira para deixar entrar um pouco de luz e nos raios de sol que cruzavam a sala via pairar uma nuvem de pó assustada. Os passos arrastavam-se pelo longo corredor e as vozes chegavam-nos abafadas e roucas pela imobilidade a que se obrigavam. E ali se ficava contando as novidades, sorrindo e apreciando o quanto eu havia crescido desde o ano anterior. Depois vinha o chá, e logo depois porque se fazia tarde para voltar, dizíamos adeus às velhas tias, e até para o ano. Ainda consigo ouvir a porta bater enquanto nos afastávamos. Ficava no ouvido como o fim de um capítulo.
Na volta, de novo o letreiro. Agora que penso nisso, sinto que me despedia dele todos os anos. Mentalmente dizia-lhe adeus, assim como à chegada era a minha luz. Uma espécie de velho farol que ainda hoje lá está para me iluminar a memória. Ainda e sempre a vontade de bater aquele batente e ultrapassar aquela velha porta. Ainda e sempre a curiosidade de enfrentar o passado.

16 Comments:

Blogger Maria said...

Há objectos, terras, cheiros, casas, que nos ficaram na memória e nos fazem recuar no tempo. Como ontem, como sempre.

Beijo

3:18 da manhã  
Blogger augustoM said...

Pela descrição até parecia que estavas a entrar numa medina, tudo igual, e no igual nos perdemos, até havia uma casa para perdições.
Um beijo. Augusto

1:46 da tarde  
Blogger wind said...

Excelente descrição onde se visualiza tudo, como já é hábito na tua bela escrita:)
beijos

2:07 da tarde  
Blogger poetaeusou . . . said...

***
Qual Maya, qual prof. Karanba.
Queres regredir ???
Vai ao Além de Mim.
da Dulce ...
***
bj)
***

3:00 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Gostei de te ler nesse relembrar. Beijos.

5:01 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Simplesmente espectacular.
Sublime quadro que tão bem soubeste pintar. Nele vi claramente o mobiliário, as tuas tias, afinal, iguais às minhas que me recordam outras visitas. Até o pó que eu contemplava admirado, quando um raio de sol se coava pelas frinchas das portadas de madeira iluminando a tal tímida nuvem de pó em movimento.
O som abafado das vozes. A sonoridade das palavras nos dias de canícula, que o ar rarefeito distorce… lindo, lindo Dulce, que maravilhosa pintura.
Um, dois, três beijitos tímidos cá do “Je” (é francês do melhor) és um espectáculo miúda.
Fica bem.

7:15 da tarde  
Blogger JPD said...

Ola Dulce

Conheço perfeitamente o roteiro que descreves.
Estudei no liceu em Faro até ao Sexto ano; os meus avós viveram na Manuel de Arriaga, frente ao portão da Escola Técnica.

Belos tempos!

São ou não são saborosas, as boas memórias?!

Não falaste da Alameda.

Bjs

(Se visitares o http://osuordabelha.blogspot.com serás bem acolhida)

9:31 da tarde  
Blogger Unknown said...

Não coneço mas, decerto, que é fantástico.
Venho agradecer os comentários que me tem deixado! Fazem-me querer continuar a escrever e a melhorar.
Até breve ... aqui e lá!

Boa semana

11:08 da tarde  
Blogger Cusco said...

Olá! Revi um pouco a minha infância. Durante muitos anos, saí também da velha Eva e fiz esse percurso. Até ao Liceu, lá ao cimo. A Papelaria na Rua Stº. António era a Artys. Actualmente penso que está lá uma loja chinesa. Mais acima ainda me recordo de outro local de culto, tipo a Gardy: A Brasileira… não sei se te recordas..
E tudo o resto me é familiar. Quase que me vejo por ali, tocando às campainhas, entrando na Alameda, no Liceu!
Enfim, tempos que não voltam mais.
Obrigado pelas reminiscências que me foram proporcionadas.
Até breve
SE DEUS QUISER

4:17 da tarde  
Blogger DT said...

Olá Dulce

Belo texto. O lugar é-me tão familiar que não podia deixar de comentar. Pergunto-me se algum dia voltarei a Faro após alguns anos de ausência... Terá ainda a cidade o dom da inspiração?

Um beijinho

5:47 da manhã  
Blogger José said...

Estou rendido, vou-me juntar com a mana e “será que há mais pessoas que queiram participar?! “ vou fazer um manifesto. Queremos um livro, para quando um livro, desses retratos tão bem descritos.
Beijos

12:01 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ler as tuas palavras soube-me como um banho depois de um dia de trabalho!
A bem da despoluição, continua! FG

12:57 da tarde  
Blogger Pepe Luigi said...

Cara Dulce,
Maravilhosa narração e de especialíssima qualidade!
Com a tua recortante forma de escrever fazes-me lembrar as Obras de Camilo Castelo Branco.
Nalgumas passagens fiquei arrepiado, porque também tenho algumas recordações desse tempo em Faro, nomeadamente a "tocante" descrição da estação e outras.

Um beijinho
do Pepe.

1:54 da tarde  
Blogger Unknown said...

Passo por aqui apenas para desejar uma boa noite.

Até amanhã . . .

12:35 da manhã  
Blogger Maria said...

Um beijo para ti, Dulce, Mulher. Hoje.

10:03 da manhã  
Blogger poetaeusou . . . said...

bom dia, se...
b)

4:23 da tarde  

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