De como os sapatos do Zeca Afonso dobraram o Cabo Bojador (porque faz hoje 20 anos que morreu Zeca Afonso)
Já o sol era nascido acima do horizonte atlântico que se avistava do paquete “Pátria”, de regresso a Lisboa com a Tuna Académica. O pelotão da noite regressava às «casernas» da 2ª classe para retemperar energias para o dia seguinte.
Éramos uns três ou quatro, incluindo o Zeca e eu, de viola, caminhando no deck, da ré para a proa.A noite tinha sido mágica. Cabelos ao vento, qual deusa grega, Natália Correia recitou poemas que a brisa levou e o Zeca cantou umas coisas que já não eram fado, e que ainda não eram balada.Na rotina dos cuidados de higiene e limpeza do navio, um marinheiro mangueirava o deck com fortes jactos de água marinha.
Caminhávamos. De repente, o Zeca parou e disse: «Tenho os pés molhados». E flectiu a perna para inspeccionar o que se passava com a sola dos seus sapatos. Assistimos então a uma revelação: as solas de ambos continham crateras do tamanho de medalhas comemorativas de não sei o quê; e onde devia haver sola, cabedal ou couro, só havia buracos, e mais, onde devia haver meia, também não havia.
À luz nascente daquele novo dia, a única e primeira coisa que se vislumbrava, enquadrada pela moldura do buraco, era a pele da planta do pé do cantor, que ele, agredido na sua sensibilidade cutânea, dizia «molhada».
E então, o Zeca, lentamente, descalçou o primeiro sapato. Depois, o segundo. E, num gesto e movimento que me lembrou aquela devolução que os «matadores» fazem para o público, das ofertas que lhes atiram para a arena na volta triunfal das lides, o Zeca lançou os sapatos ao mar. Ainda se mantiveram à tona por segundos. Depois, foram rapidamente engolidos pela espuma e deglutidos pela sucção do mar.
«E agora, José?» - teria pensado eu. «Ó Zeca, como aqui no barco não há sapatarias, como é que vai ser amanhã?» O Zeca, descalço e de peúgas rotas e molhadas, caiu finalmente em si: «É pá, pois é, não há sapatarias... »
No dia seguinte, quando o avistei, a primeira coisa que fiz, com curiosidade, foi olhar para baixo, para o chão, para ver como era o pedestal da estátua. Um espanto: sapatos reluzentes, engraxados, talvez de marca. «Ó Zeca, onde é que, como é que...», perguntei eu. Já não me lembro da resposta dele, nem penso que interesse para o caso porque, às vezes, as respostas já vêm contidas nas perguntas.
José Niza
Retirado do site da Associação José Afonso www.aja.pt
Éramos uns três ou quatro, incluindo o Zeca e eu, de viola, caminhando no deck, da ré para a proa.A noite tinha sido mágica. Cabelos ao vento, qual deusa grega, Natália Correia recitou poemas que a brisa levou e o Zeca cantou umas coisas que já não eram fado, e que ainda não eram balada.Na rotina dos cuidados de higiene e limpeza do navio, um marinheiro mangueirava o deck com fortes jactos de água marinha.
Caminhávamos. De repente, o Zeca parou e disse: «Tenho os pés molhados». E flectiu a perna para inspeccionar o que se passava com a sola dos seus sapatos. Assistimos então a uma revelação: as solas de ambos continham crateras do tamanho de medalhas comemorativas de não sei o quê; e onde devia haver sola, cabedal ou couro, só havia buracos, e mais, onde devia haver meia, também não havia.
À luz nascente daquele novo dia, a única e primeira coisa que se vislumbrava, enquadrada pela moldura do buraco, era a pele da planta do pé do cantor, que ele, agredido na sua sensibilidade cutânea, dizia «molhada».
E então, o Zeca, lentamente, descalçou o primeiro sapato. Depois, o segundo. E, num gesto e movimento que me lembrou aquela devolução que os «matadores» fazem para o público, das ofertas que lhes atiram para a arena na volta triunfal das lides, o Zeca lançou os sapatos ao mar. Ainda se mantiveram à tona por segundos. Depois, foram rapidamente engolidos pela espuma e deglutidos pela sucção do mar.
«E agora, José?» - teria pensado eu. «Ó Zeca, como aqui no barco não há sapatarias, como é que vai ser amanhã?» O Zeca, descalço e de peúgas rotas e molhadas, caiu finalmente em si: «É pá, pois é, não há sapatarias... »
No dia seguinte, quando o avistei, a primeira coisa que fiz, com curiosidade, foi olhar para baixo, para o chão, para ver como era o pedestal da estátua. Um espanto: sapatos reluzentes, engraxados, talvez de marca. «Ó Zeca, onde é que, como é que...», perguntei eu. Já não me lembro da resposta dele, nem penso que interesse para o caso porque, às vezes, as respostas já vêm contidas nas perguntas.
José Niza
Retirado do site da Associação José Afonso www.aja.pt
7 Comments:
Este texto é lindo, Dulce.
Todas as formas de falar hoje (e sempre) do Zeca são, serão formas bonitas. Mas esta tem dentro toda a simplicidade dele...
Um beijo
Boa escolha, adoro Zeca Afonso.
Bom fim de semana
Cantei em Bijagós/Guiné
»»»»»»»»
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
está mesmo quase a chegar
Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar
jinos
Ainda bem que aprendi que houve um Zeca...
Sempre presente o Zeca! Obrigada pela visita ao vida onde te respondo. Esse provérbio é um dos que concordo integralmente. Beijos. Bom fim de semana.
bonito
Obrigado, amiga! Por mim!
(onde não há cansaço de ser egoísta!...)
Abraços!
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