sábado, fevereiro 03, 2007

Olhar para dentro

Olho-os na velha fotografia a preto e branco e lamento nunca os ter visto assim.
Sorridentes os dois. Ela com o braço esquerdo sobre o ombro dele mostrava a aliança recém-colocada. Ele colocando-lhe afectuosamente a mão na cintura. Reconheço o sorriso dela - tantas vezes me sorriu assim! Não o dele. Olho mais perto uma e outra vez e tento ler o que dizia aquele sorriso, tentando reconhecê-lo, e no entanto, é-me completamente estranho.
Foi um dia há cinquenta e quatro anos atrás e é desse dia, apenas desse único dia, que eu guardo esta imagem única.
Não recordo tê-los visto juntos. Raramente quando a eles me refiro, lhes chamo "os meus pais". Sempre foram "o meu pai" e "a minha mãe".
Ele morreu primeiro. Recordo a minha frieza. Impossível sentir dor. Impossível haver lágrimas. Não quis acompanhá-lo na sua última viagem.
Quero lembrar-me e não sei há quantos anos foi. Para isso contribuiram as visitas deliberadas pelo tribunal, a sua secura, a sua figura autoritária, as histórias ouvidas em casa da minha mãe. Para o meu afastamento contribuiram também os empurrões para dentro da piscina da Praia das Maças - eu ainda miúda -, as sucessivas quedas da bicicleta grande de mais para mim em todos os fins de semana de visita, a mudança de roupa obrigatória à chegada, e todos os carinhos que não me foram dados. Para isso contribuiu também a raiva demonstrada nas conversas lá em casa.
Hoje, depois de ser mãe e ter tido uma vida familiar normal, encontro em mim as marcas da ausência de um pai. Hoje lamento não ter conseguido chorar a sua morte e não ter exigido a minha dose de ternura. Sei que em tudo aquilo que sou estão os traços da sua falta assim como sei que apesar de tudo possuo algumas das suas características. A determinação. A atracção pelos desafios. A curiosidade. O gosto pela ordem.
Como seria eu hoje se ele tivesse sido um pai presente? Se me pegasse ao colo e me acarinhasse como tantas vezes desejei. Se me contasse histórias ou me levasse a passear. Se brincasse comigo. Se me tivessse ensinado a nadar. Se me tivesse amparado nas primeiras pedaladas. Se tivesse feito um esforço para me conquistar.
Como seria eu hoje se não me tivessem contado uma versão que eu preferia ignorar.

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17 Comments:

Blogger Maria said...

Não és minha irmã, mas o que descreves é copy/paste da minha pele. Trocando a Praia das Maças pela Foz do Arelho.
Não quero recordar mais nada.
Um beijo ternurento

4:58 da manhã  
Blogger José said...

Hoje só te quero enviar um beijo voado, interiorizando esta coisa que se chama vida.

12:20 da tarde  
Blogger Su said...

recordei contigo o vivido....até na morte fiz o mesmo.................enfim
acabou.faz tempo

jocas maradas de bom tempo

6:23 da tarde  
Blogger Ana Ramon said...

Eu tinha sugerido belíssimos momentos do passado :))
Brinco contigo. Passado é passado. Nas vagas da memória nem sempre vem a melhor. Um beijinho grande

6:44 da tarde  
Blogger Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes said...

Não quereria estar na pele de teu pai..ao ler estas queixas-desabafo, tão sentidas e duras.
Mas, bem no fundo, porque agiria ele assim?...Quais as suas razões dentro e...sobretudo fora de casa,no emprego...aí na rua ou bairro onde se criou...

Pára um pouquinho e...tenta vê-lo. Afinal, ele foi o teu princípio.

Beijinhos de quem também é pai.

7:02 da tarde  
Blogger Benjamim Gil said...

A simplicidade, a sensibilidade e o sabor amargo de algumas memórias. Obrigado pelo momento. Gil

9:49 da tarde  
Blogger wind said...

Leio-te e relembro o meu pai e quantas vezes já fiz essa interrogação, mas ao contrário.
Embora como casal ele e a minha mãe não se dessem, saía comigo, dava-me a mão na rua, levava-me ao cinema, a passear, ao tiro ao arco, que cheguei a praticar, até que ele morreu tinha eu 11 anos.
Depois muita coisa aconteceu na minha vida, mas uma coisa tenho a certeza: tinha sido muito diferente de certeza por coisas que aconteceram (não as vou escever aqui).
E a tua também porque há feridas que cicatrizam, mas nem o melhor cirurgião plástico consegue tirar.

10:44 da tarde  
Blogger Era uma vez um Girassol said...

Estou hoje convencida, que o tempo dilui as mágoas, envia para o esquecimento as ausências, as faltas de quem esperávamos que não as tivessem.
Tudo aquilo que és hoje, a tua sensibilidade, o conhecimento, a doçura, a ti o deves, resultado do crescimento como ser humano atento a tudo o que te rodeia.
Um abrir de coração que me tocou.
Beijinhos

11:18 da tarde  
Blogger bettips said...

Minha querida: a verdade serviu para fazeres e quereres tudo diferente! Tb me pergunto como seria? Certamente muito melhor e mais feliz, contudo construí eu o que não tive: a Família. Solidária. Bjinho

11:30 da tarde  
Blogger Kalinka said...

Olá Dulce
Também eu a vi no jantar, apenas à distância de 3 cadeiras, mas não me aproximei para trocarmos umas palavras...espero fazê-lo numa próxima vez.
Hoje vim visitá-la e...ainda estou arrepiada ao ler as suas palavras; é tal e qual a minha relação com o meu pai...
Hoje, também encontro em mim as marcas da ausência de um pai.
Também sei que em tudo aquilo que sou estão os traços da sua falta. Não encontro parecenças...a não ser a nível físico.
A determinação. A atracção pelos desafios. A curiosidade. O gosto pela ordem - isso fui buscar à minha Mãe.
Também eu me questiono com todos esses SEs...
Beijos e abraços.

11:51 da tarde  
Blogger Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) said...

Un abrazo amiga.

11:51 da tarde  
Blogger perplexo said...

Ai, caramba. Nem sei se hei-de dizer alguma coisa. Ainda por cima algumas das que te comentam também têm queixas semelhantes. O que é que se passou com os homens de uma certa geração? Não há instruções para pais e as referências que tinham eram as da dureza. Sobreviver e não mostrar sentimentos. Que sei eu?
Solidariedade, a possível.

2:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Minha Querida Dulce

Este teu desabafo revela bem a tua mágoa. Muito difíceis foram a tua infância e adolescência.
Deixo-te um beijinho grande e o desejo de que consigas ultrapassar tudo isso.

8:19 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Nunca passei por aí. Lamento que a vida me tenha levado a fazer os meus filhos passarem algo semelhante.

10:10 da manhã  
Blogger poetaeusou . . . said...

Estive, ontem,a ver velhos albuns.
Recordações e memórias cruzadas.
Sentimentos dispares e sempre,.
algo de novo em descoberta.
jinos

11:41 da manhã  
Blogger jorge esteves said...

Não é fácil, pelo menos para mim, opinar em tão delicadas e íntimas questões. No entanto (e apenas das palavras, acrescento) parece mais evidente a desilusão do que a mágoa; porventura resultado do desgaste do tempo. De qualquer forma, é pena que assim seja. Mais ainda se nos quedarmos um pouco a interrogar quantas dores, mesmo que tardias, não terão sido escritas do outro lado...
abraço

4:04 da tarde  
Blogger esse said...

Como serias hoje... isso jamais ninguém saberá. A verdade é que a dor, quase sempre, ajuda as pessoas a crescer...tenho a certeza de que sempre se notou em ti a maturidade, precoce lamentas tu, mas capaz de marcar a diferença. Nota-se!...

Beijinho grande

12:39 da manhã  

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