Olhar para dentro
Olho-os na velha fotografia a preto e branco e lamento nunca os ter visto assim.
Sorridentes os dois. Ela com o braço esquerdo sobre o ombro dele mostrava a aliança recém-colocada. Ele colocando-lhe afectuosamente a mão na cintura. Reconheço o sorriso dela - tantas vezes me sorriu assim! Não o dele. Olho mais perto uma e outra vez e tento ler o que dizia aquele sorriso, tentando reconhecê-lo, e no entanto, é-me completamente estranho.
Foi um dia há cinquenta e quatro anos atrás e é desse dia, apenas desse único dia, que eu guardo esta imagem única.
Não recordo tê-los visto juntos. Raramente quando a eles me refiro, lhes chamo "os meus pais". Sempre foram "o meu pai" e "a minha mãe".
Ele morreu primeiro. Recordo a minha frieza. Impossível sentir dor. Impossível haver lágrimas. Não quis acompanhá-lo na sua última viagem.
Quero lembrar-me e não sei há quantos anos foi. Para isso contribuiram as visitas deliberadas pelo tribunal, a sua secura, a sua figura autoritária, as histórias ouvidas em casa da minha mãe. Para o meu afastamento contribuiram também os empurrões para dentro da piscina da Praia das Maças - eu ainda miúda -, as sucessivas quedas da bicicleta grande de mais para mim em todos os fins de semana de visita, a mudança de roupa obrigatória à chegada, e todos os carinhos que não me foram dados. Para isso contribuiu também a raiva demonstrada nas conversas lá em casa.
Hoje, depois de ser mãe e ter tido uma vida familiar normal, encontro em mim as marcas da ausência de um pai. Hoje lamento não ter conseguido chorar a sua morte e não ter exigido a minha dose de ternura. Sei que em tudo aquilo que sou estão os traços da sua falta assim como sei que apesar de tudo possuo algumas das suas características. A determinação. A atracção pelos desafios. A curiosidade. O gosto pela ordem.
Como seria eu hoje se ele tivesse sido um pai presente? Se me pegasse ao colo e me acarinhasse como tantas vezes desejei. Se me contasse histórias ou me levasse a passear. Se brincasse comigo. Se me tivessse ensinado a nadar. Se me tivesse amparado nas primeiras pedaladas. Se tivesse feito um esforço para me conquistar.
Como seria eu hoje se não me tivessem contado uma versão que eu preferia ignorar.
Sorridentes os dois. Ela com o braço esquerdo sobre o ombro dele mostrava a aliança recém-colocada. Ele colocando-lhe afectuosamente a mão na cintura. Reconheço o sorriso dela - tantas vezes me sorriu assim! Não o dele. Olho mais perto uma e outra vez e tento ler o que dizia aquele sorriso, tentando reconhecê-lo, e no entanto, é-me completamente estranho.
Foi um dia há cinquenta e quatro anos atrás e é desse dia, apenas desse único dia, que eu guardo esta imagem única.
Não recordo tê-los visto juntos. Raramente quando a eles me refiro, lhes chamo "os meus pais". Sempre foram "o meu pai" e "a minha mãe".
Ele morreu primeiro. Recordo a minha frieza. Impossível sentir dor. Impossível haver lágrimas. Não quis acompanhá-lo na sua última viagem.
Quero lembrar-me e não sei há quantos anos foi. Para isso contribuiram as visitas deliberadas pelo tribunal, a sua secura, a sua figura autoritária, as histórias ouvidas em casa da minha mãe. Para o meu afastamento contribuiram também os empurrões para dentro da piscina da Praia das Maças - eu ainda miúda -, as sucessivas quedas da bicicleta grande de mais para mim em todos os fins de semana de visita, a mudança de roupa obrigatória à chegada, e todos os carinhos que não me foram dados. Para isso contribuiu também a raiva demonstrada nas conversas lá em casa.
Hoje, depois de ser mãe e ter tido uma vida familiar normal, encontro em mim as marcas da ausência de um pai. Hoje lamento não ter conseguido chorar a sua morte e não ter exigido a minha dose de ternura. Sei que em tudo aquilo que sou estão os traços da sua falta assim como sei que apesar de tudo possuo algumas das suas características. A determinação. A atracção pelos desafios. A curiosidade. O gosto pela ordem.
Como seria eu hoje se ele tivesse sido um pai presente? Se me pegasse ao colo e me acarinhasse como tantas vezes desejei. Se me contasse histórias ou me levasse a passear. Se brincasse comigo. Se me tivessse ensinado a nadar. Se me tivesse amparado nas primeiras pedaladas. Se tivesse feito um esforço para me conquistar.
Como seria eu hoje se não me tivessem contado uma versão que eu preferia ignorar.
Etiquetas: As minhas lembranças
17 Comments:
Não és minha irmã, mas o que descreves é copy/paste da minha pele. Trocando a Praia das Maças pela Foz do Arelho.
Não quero recordar mais nada.
Um beijo ternurento
Hoje só te quero enviar um beijo voado, interiorizando esta coisa que se chama vida.
recordei contigo o vivido....até na morte fiz o mesmo.................enfim
acabou.faz tempo
jocas maradas de bom tempo
Eu tinha sugerido belíssimos momentos do passado :))
Brinco contigo. Passado é passado. Nas vagas da memória nem sempre vem a melhor. Um beijinho grande
Não quereria estar na pele de teu pai..ao ler estas queixas-desabafo, tão sentidas e duras.
Mas, bem no fundo, porque agiria ele assim?...Quais as suas razões dentro e...sobretudo fora de casa,no emprego...aí na rua ou bairro onde se criou...
Pára um pouquinho e...tenta vê-lo. Afinal, ele foi o teu princípio.
Beijinhos de quem também é pai.
A simplicidade, a sensibilidade e o sabor amargo de algumas memórias. Obrigado pelo momento. Gil
Leio-te e relembro o meu pai e quantas vezes já fiz essa interrogação, mas ao contrário.
Embora como casal ele e a minha mãe não se dessem, saía comigo, dava-me a mão na rua, levava-me ao cinema, a passear, ao tiro ao arco, que cheguei a praticar, até que ele morreu tinha eu 11 anos.
Depois muita coisa aconteceu na minha vida, mas uma coisa tenho a certeza: tinha sido muito diferente de certeza por coisas que aconteceram (não as vou escever aqui).
E a tua também porque há feridas que cicatrizam, mas nem o melhor cirurgião plástico consegue tirar.
Estou hoje convencida, que o tempo dilui as mágoas, envia para o esquecimento as ausências, as faltas de quem esperávamos que não as tivessem.
Tudo aquilo que és hoje, a tua sensibilidade, o conhecimento, a doçura, a ti o deves, resultado do crescimento como ser humano atento a tudo o que te rodeia.
Um abrir de coração que me tocou.
Beijinhos
Minha querida: a verdade serviu para fazeres e quereres tudo diferente! Tb me pergunto como seria? Certamente muito melhor e mais feliz, contudo construí eu o que não tive: a Família. Solidária. Bjinho
Olá Dulce
Também eu a vi no jantar, apenas à distância de 3 cadeiras, mas não me aproximei para trocarmos umas palavras...espero fazê-lo numa próxima vez.
Hoje vim visitá-la e...ainda estou arrepiada ao ler as suas palavras; é tal e qual a minha relação com o meu pai...
Hoje, também encontro em mim as marcas da ausência de um pai.
Também sei que em tudo aquilo que sou estão os traços da sua falta. Não encontro parecenças...a não ser a nível físico.
A determinação. A atracção pelos desafios. A curiosidade. O gosto pela ordem - isso fui buscar à minha Mãe.
Também eu me questiono com todos esses SEs...
Beijos e abraços.
Un abrazo amiga.
Ai, caramba. Nem sei se hei-de dizer alguma coisa. Ainda por cima algumas das que te comentam também têm queixas semelhantes. O que é que se passou com os homens de uma certa geração? Não há instruções para pais e as referências que tinham eram as da dureza. Sobreviver e não mostrar sentimentos. Que sei eu?
Solidariedade, a possível.
Minha Querida Dulce
Este teu desabafo revela bem a tua mágoa. Muito difíceis foram a tua infância e adolescência.
Deixo-te um beijinho grande e o desejo de que consigas ultrapassar tudo isso.
Nunca passei por aí. Lamento que a vida me tenha levado a fazer os meus filhos passarem algo semelhante.
Estive, ontem,a ver velhos albuns.
Recordações e memórias cruzadas.
Sentimentos dispares e sempre,.
algo de novo em descoberta.
jinos
Não é fácil, pelo menos para mim, opinar em tão delicadas e íntimas questões. No entanto (e apenas das palavras, acrescento) parece mais evidente a desilusão do que a mágoa; porventura resultado do desgaste do tempo. De qualquer forma, é pena que assim seja. Mais ainda se nos quedarmos um pouco a interrogar quantas dores, mesmo que tardias, não terão sido escritas do outro lado...
abraço
Como serias hoje... isso jamais ninguém saberá. A verdade é que a dor, quase sempre, ajuda as pessoas a crescer...tenho a certeza de que sempre se notou em ti a maturidade, precoce lamentas tu, mas capaz de marcar a diferença. Nota-se!...
Beijinho grande
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