segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Escrevo-te para devolver tudo o que não deste


Escrevo-te do lugar onde nos encontrámos e separámos. A velha estação de comboio. à beira das árvores despidas pelo vento. ao cair da tarde. ao cair de Setembro. O comboio que te trouxe e levou.
Escrevo-te daqui. Do lugar onde disseste:ficarei para sempre. E partiste. A marca da despedida na ultima página do teu diário. Do lugar onde estragámos a festa. espantámos a caça. atrapalhámos o trânsito. O lugar onde nos encontrámos e separámos: o Outono. Escrevo-te do lugar onde marcámos o nosso desencontro.
Íamos de viagem e o comboio parou. durante dois anos. na estação mais sinistra do percurso. Ficámos ali sozinhos no centro do nada. Onde está o maquinista. os outros passageiros? Nenhuma explicação. ninguém a quem apresentar queixa.
Encalhámos no Outono. Conhecemo-nos em Julho e já era Outono. Nunca saímos do Outono. Não houve Primaveras nem Verões nos anos do nosso amor. Ficámos suspensos a ver as árvores despirem-se. Olhei-te. confundido: porque nos atiraste para aqui?
Mas tu eras muito jovem e não ouvias. Estavas deslumbrada com a tua força. Paraste o mundo no Outono.
Ergueste uma barreira e conseguiste deter o próprio movimento do planeta.
Uma barreira de mentiras e ardis. de perfídias e cobardias. acinte e frio e vazio. tu que gostavas de brincar com palavras com muitos iis.
Escrevo-te do lugar onde humilhámos o Universo.
Para te devolver tudo. As carícias que esqueceste. As cartas que não escreveste. E as que nunca abriste.
Escrevo-te para devolver tudo o que não deste. E as horas de desespero. de olhos fechados em frente ao mar. A espera inexorável e mesquinha. junto ao telefone. Escrevo-te para devolver a marca da esperança louca. na última página do meu diário. Escrevo-te. Para devolver o Outono.

Paulo Moura, in Revista Pública de 12 Fevereiro/2006
Fotografia de Rui Gaudêncio

8 Comments:

Blogger Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) said...

Preciosa y emotiva carta que yo escribiría también, pero no lo voy a hacer.

Un beso, Dulce.

5:19 da tarde  
Blogger Su said...

bela carta, apesar da tristeza presente ...
jocas maradas

8:16 da tarde  
Blogger wind said...

Forte, para reflectir e vi-me um pouco aqui:) beijos

10:30 da tarde  
Blogger AQUENATÓN said...

Belo texto !

Bji

11:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fogo!...tanta raiva, desgosto... Apesar do que representa esta carta o seu conteúdo está sublime! Adorei tudo!...

12:04 da manhã  
Blogger Dulce Gabriel said...

Dulce,então que se passa?vamos lá arrebitar....O texto é magnifico,mas não gosto de te sentir triste...As Dulces são mulheres fortes,prontas para enfrentar qualquer Outono,mesmo se as cores BELAS de Outono não nos deixam viajar pelo nosso imaginario.Um beijo querida e boa semana.

9:58 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Neste dia em que percorri este texto com os olhos cheios de lágrimas inexplicáveis, em que sinto estar devolvida em mim tudo aquilo que não consegui dar. Não tenho palavras. Beijinhos, querida amiga.

11:31 da manhã  
Blogger José said...

Um Outono sem Primaveras!
Excelente e bela escolha, Dulce.
Beijinhos.

2:51 da tarde  

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