...
"Banhado pela pálida luz da lua, o meu corpo perdera todo o sopro de vida, como uma figurinha de barro. Como se alguém me tivesse lançado um feitiço, como fazem os feiticeiros das ilhas das Índias Ocidentais, e insuflado de vida - a minha efémera existência - aquele pedaço de barro. A centelha vital extinguira-se. A minha verdadeira vida estava algures, adormecida, e uma pessoa sem rosto enfiara-a numa mala e preparava-se para fugir com ela.
Senti um calafrio tão violento que me deixou quase sem respiração. Algures, num local desconhecido, alguém trocara a ordem das minhas células, soltando os fios que mantinham a minha mente a funcionar. Não conseguia raciocinar. A única coisa a fazer era regressar o mais depressa possível ao meu refúgio habitual. Enchi os pulmões de ar e mergulhei no mar da minha consciência. Afastando as pesadas águas com a força das mãos, fui até ao fundo e agarrei-me com ambos os braços a uma pedra enorme. A água fazia uma pressão violentíssima sobre os meus tímpanos. Fechei os olhos, semicerrei as pálpebras com toda a força, sustive a respiração, tentando a todo o custo resistir. Uma vez tomada a decisão, não foi assim tão difícil. Aclimatei-me aos repetidos sinais de caos - à pressão da água, à falta de ar, à escuridão gelada. Era algo que eu me habituara a dominar, vezes sem conta, desde criança.
O tempo invertia-se, andava para trás, desaparecia, reorganizava-se. O mundo expandiu-se infinitamente - sem por um momento deixar de estar definido e limitado. Imagens nítidas - apenas imagens - passavam ser fazer barulho por corredores escuros, como medusas, almas à deriva. Evitei olhar para elas. Se desse sinal de tê-las reconhecido, nem que fosse por um breve instante, começariam de imediato a fazer sentido. O sentido estava ligado à temporalidade, e a temporalidade obrigava-me a regressar à superfície das águas."
MURAKAMI, Haruki, "Sputnik meu amor", Notícias Editorial, Lisboa, 2005, p.189,190
Senti um calafrio tão violento que me deixou quase sem respiração. Algures, num local desconhecido, alguém trocara a ordem das minhas células, soltando os fios que mantinham a minha mente a funcionar. Não conseguia raciocinar. A única coisa a fazer era regressar o mais depressa possível ao meu refúgio habitual. Enchi os pulmões de ar e mergulhei no mar da minha consciência. Afastando as pesadas águas com a força das mãos, fui até ao fundo e agarrei-me com ambos os braços a uma pedra enorme. A água fazia uma pressão violentíssima sobre os meus tímpanos. Fechei os olhos, semicerrei as pálpebras com toda a força, sustive a respiração, tentando a todo o custo resistir. Uma vez tomada a decisão, não foi assim tão difícil. Aclimatei-me aos repetidos sinais de caos - à pressão da água, à falta de ar, à escuridão gelada. Era algo que eu me habituara a dominar, vezes sem conta, desde criança.
O tempo invertia-se, andava para trás, desaparecia, reorganizava-se. O mundo expandiu-se infinitamente - sem por um momento deixar de estar definido e limitado. Imagens nítidas - apenas imagens - passavam ser fazer barulho por corredores escuros, como medusas, almas à deriva. Evitei olhar para elas. Se desse sinal de tê-las reconhecido, nem que fosse por um breve instante, começariam de imediato a fazer sentido. O sentido estava ligado à temporalidade, e a temporalidade obrigava-me a regressar à superfície das águas."
MURAKAMI, Haruki, "Sputnik meu amor", Notícias Editorial, Lisboa, 2005, p.189,190
6 Comments:
Tentando ser breve:quantas vezes nos sentimos assim. beijos e bom fim de semana
" ... Enchi os pulmões de ar e mergulhei no mar da minha consciência..."
gostei de ler esse sentir
jocas maradas
Não tenho palavras para um texto desta beleza, caótico, temporal, completamente cheio de sentido para mim. Na minha vida. Neste momento em que os tímpanos rebentam!! Dulce, uma maravilha teres-me proporcionado esta leitura. Hoje. Beijos.
A meio, parecia que estava a reler "As horas"!...
Meninas, vamos viver as coisas lindas da vida, toca a esquecer tristezas! Bom fim de semana.
Bjs.
Dulce !
Que lindo texto hoje nos trazes.
Afinal, todos somos de barro e sujeitos às Leis Universais.
Eternos... só os mares e as estrelas. E também essas às vezes, são finitas.
Bji
este é dos mais belos textos que já li de Haruki Murakami, também não li muito dele, de um livro triste e belo, numa história de amores desencontrados
Dulce tens partilhas excelentes, não me canso de te dar os parabéns pelo teu excelente trabalho neste teu cantinho
beijinhos muitos para ti
lena
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