domingo, janeiro 29, 2006

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços , e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali ...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí ! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos ...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí ...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos? ...
Corre nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos ...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a , como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios ...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou ...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

RÉGIO, José, Antologia Poética, p.19/20/21

9 Comments:

Blogger José said...

Só nós verdadeiramente sabemos por onde queremos ir! Muito bonito, José Régio, mais uma linda escolha, neste domingo gelado.
Bom domingo.
Bjs

12:43 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Um poema lindo! Gostei imenso de te ter revisto ontem. Beijinhos, bom domingo.

1:01 da tarde  
Blogger AQUENATÓN said...

Bom dia Dulce !

Para além de outros poemas, também este seria quase obrigatório declamar durante o convívio se ele tivesse tido lugar após o jantar, o que não se verificou...

Que bom seria !

Fica para a próxima, e poderás ser então tu mesma a declamá-lo, para quem estiver nesse convívio são e fraterno.

Fica esta sugestão aos organizadores de jantares bloguistas.

MENOS POLÍTICA E MAIS POESIA!
MENOS POLÍTICA E MAIS CONVÍVIO!


O POEMA É UMA ARMA ...
Pois foi com poesia que também se fez a revolução de Abril.

Bji

1:21 da tarde  
Blogger wind said...

Que escrever sobre este poema? Nada! Ele por si só diz tudo:) beijos

5:19 da tarde  
Blogger Su said...

belo este poema de regio, adoro mesmo

"Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!"

jocas maradas de palavras

7:12 da tarde  
Blogger lena said...

um dos mais belos poema de José Régio, que se pode dizer dele? eu digo-te que o adoro, Dulce e que nunca me canso de o ler

beijinhos meus, muitos


lena

7:59 da tarde  
Blogger Jorge said...

Também eu gosto de Régio e sobretudo do meu saudos amigo Zéca. companheiro de bons tempos em Coimbra.

2:35 da tarde  
Blogger saisminerais said...

Olá doce amiga, gostei imenso de te ver no jantar, pena não ter tempo que chegue para dedicar a todos quantos lá estiveram e que conhecia...
Mas valeu, adorei aqueles segundos com que falei contigo, foi mesmo muito bom... Em breve haverá mais.
Deixo aqui um beijinho

2:51 da tarde  
Blogger Que Bem Cheira A Maresia said...

Mais uma vez ficamos um pouco afastadas, ainda assim foi um prazer ter-te revisto.

Beijos da Lina/Mar Revolto

3:04 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home