sábado, dezembro 24, 2005

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
De lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
De perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
De meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
Como se de anjos fosse,
Numa toada doce,
De violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
A voz do locutor
Anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
E as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas,
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
E fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
Com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
Cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
As belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
Ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aqulo nos dissesse directamente respeito,
Como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bençãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
E compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
A sua comoção é tanta, tanta, tanta,
Que nem dorme serena.

Cada menino
Abre um olhinho
Na noite incerta
Para ver se a aurora
Já está desperta.

De manhãzinha
Salta da cama,
Corre à cozinha
Mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!!!

Na branca macieza
Da matutina luz
Aguarda-o a surpresa
Do Menino Jesus.

Jesus,
O doce Jesus,
O mesmo que nasceu na manjedoura,
Veio pôr no sapatinho
Do Pedrinho
Uma metralhadora.

Que alegria
Reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
Fuzilava tudo com devastadoras rajadas
E obrigava as criadas
A cairem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
Fingiam
Que caíam
Crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
De Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade,
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão, "Poemas escolhidos", Ed. João Sá da Costa, Lisboa, 1997, pp.43/47

5 Comments:

Blogger José said...

Hoje é dia de ser bom.
Por isso, hoje é um dia igual aos outros.
Para todos uma continuação de bom dia e óptima noite.
Para ti, Dulce
um beijo de Natal, porque nós, tentamos ser bons, todos os dias.

4:44 da tarde  
Blogger Helder Ribau said...

Feliz Natal...

4:54 da tarde  
Blogger osimachina said...

boa escolha!!

5:26 da tarde  
Blogger wind said...

Crítico, mordaz e concordo plenamente com ele! beijos

11:44 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Sem dúvida...nem uma única palavra mudaria neste poema, nem o tom, nem a forma, nem a tristeza!! Rómulo de Carvalho com a verdade insofismável da época!! Beijinhos, Dulce, escolheste muito bem o poema a colocares nesta data aqui. Hoje.

11:45 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home