quarta-feira, dezembro 27, 2006

Outros percursos

Na subida, quase frente à Sé, ficava sempre o olhar preso naquela velha janela com grades. Era o Aljube dissera a minha mãe um dia. Ali estivera preso o seu irmão - o tio que nunca conheci. Sempre que ali passava prendia-se o olhar nela - naquela velha janela. Dali escreveu ele no Verão de 39 que "o rio Tejo, com o seu movimento fluvial, embora escasso", era um bom companheiro, e numa outra carta referia que via da sua janela de grades "o mesmo Tejo todos os dias igual, a mesma Outra Banda, sempre à mesma distância, o mesmo cinzel em cantarias invisíveis da Sé".
Já por ali não passo há muito tempo e hoje uma amiga disse-me que lá foi colocada uma placa evocativa com um poema de Ary dos Santos. Para que a memória não morra.
Subindo a rua, as igrejas, e depois o Miradouro - aquela janela que se abria sobre a cidade. Do outro lado, a subida para o Castelo. Ali morava a Fátima, na Rua da Saudade, vizinha do Ary, e minha futura colega de liceu uns anos mais tarde.
Aquele percuso, continuei a fazê-lo durante alguns anos. Como passeio apenas. Porque gostava daquelas ruas íngremes e das igrejas. Quantas vezes me refugiei nelas nas tardes soalheiras, à procura do silêncio e daquela paz tão especial que apenas ali encontramos.
Nessa altura já a escola primária ficara para trás. Frequentava agora uma escola ainda maior, ali para os lados do Marquês de Pombal. Quantas caminhadas descendo a Avenida! Podia quase fazê-las de olhos fechados! Outras vezes de autocarro até aos Restauradores, naqueles com dois pisos onde gostava de viajar agarrada ao varão junto à porta.
Depois, esperava a minha mãe junto ao Éden. Às vezes, era já noite e ela não chegava, pensava que se esquecera de mim ... Coitada, sempre na correria para cumprir todos os horários e estar sempre presente ...
Lançando os olhos para a direita era a gelataria que me desafiava e aquelas magníficas cassatas que eu adorava. E no Natal era naquele canto também que estava o mais bonito Pai Natal de sempre. Um Pai Natal como deve ser, como se vê nos livros, gordinho, de olhos bondosos e grandes barbas brancas, não como os de hoje a quem as calças quase caem pelas pernas abaixo e tão escanzelados que atraiçoam o meu imaginário infantil. Ali se podiam tirar fotografias e todos os natais sonhava em tirar uma ali mesmo ao seu lado, ao colo do Pai Natal dos meus sonhos. Nunca o fiz. Assim como nunca me aproximei o suficiente para receber dele os doces que repartia com as crianças. Passava por ele devagarinho e levava nos ouvidos o som alegre dos sininhos que vinha não sei donde e que ainda hoje recordo.
Parece-vos que só recordo coisas tristes mas se pudessem ver-me agora, veriam o sorriso que me aflora ao escrever estas linhas.

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Dulce.
Ontem elogiei o Baú. Foi um Lapso.
Quero corrigir. Vou corrigir.
Queria enaltecer o Disco Rigido.
O teu. Ultimo Modelo, Top Gama.
Nunca gostei da Sé. Estranha. Fria.
Preferi sempre as pequenas Igrejas.
Especialmente do Rato. Compreendes!
Limoeiro. O pensamento. A Revolta.
Tudo isto para chegar ao Ary.
Só uma Bloguista. O sabe. E sempre,
o Guardou. A frase "Poeta eu sou".
Poeta "castrado não". Ouvia milhares de vezes. Ao 5º/6º Whisky.
Castelo. Com o Quartel da Legião.
Uma Familia Burguesa.
Com um abismo em "Intreportas"
Zé Carlos.Isso é Utópico. Sim ...
O "ISSO" » E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
Utopia, ZÉ, Utopia.
poetaeusou( SÓ )

8:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eu vejo-te o sorriso, Dulce, mas eu estou toda arrepiada...
Pelo Limoeiro, pela Rua da Saudade, pelo Zé Carlos...
... aquele corpo grande e bruto mas cheio de ternura...

****************

Ainda hoje vou aos gelados do cantinho. Pena que fechem durante o inverno, também me lembro de ver por lá o tal gordinho vestido de vermelho....

Muita obrigada por esta memória, apesar do arrepio...

10:09 da tarde  
Blogger wind said...

E eu sorri, porque sei muito bem o que é sentir isso.
Também conheço esses caminhos todos aqui descritos e adorava o Pai Natal gordinho:)
Beijos

12:36 da manhã  
Blogger perplexo said...

Às vezes sinto que é de uma enorme injustiça não se poder revisitar/reviver os lugares/momentos do passado, com as mesmas pessoas de então. Que coisa traiçoeira o tempo! Não há direito!

2:35 da manhã  
Blogger Zé-Viajante said...

TERNURA !

8:03 da manhã  
Blogger Ana Fundo said...

Estou a adorar estes relatos da tua infância :-)))
Continua, por favor!!!
Beijos e até já...
Ana

9:45 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Doces recordações!! Beijinhos.

10:53 da manhã  
Blogger Luis Eme said...

Não há nada de triste no teu texto.
Há sim muita nostalgia...
Um Excelente Ano de 2007, Dulce.

11:02 da manhã  
Blogger Besnico di Roma said...

Venho cantar as Janeiras
Venho cantar orvalhadas
Venho ver o teu sorriso
e ler histórias bem contadas

3:17 da tarde  
Blogger Era uma vez um Girassol said...

Que bom é recordar e poder fazê-lo com um soriso nos lábios...
Gosto muito dos teus relatos!
Beijinhos

4:46 da tarde  
Blogger Besnico di Roma said...

Venho cantar as Janeiras
Venho cantar orvalhadas
e que 2007 traga mais
d’essas tuas rabanadas.

(mas se forem fatias de bispo, também como)
Ai Dulce o que seria a vida de um homem sem rabanadas!... Digo eu que nem sou guloso.
Um bom 2007 para ti. Beijitos.

4:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

:)

A primeira vez que passei no aljube tinha menos de 9 anos e foi para entrar como primeira visita a um homem de nome Lenine. Escolheu-me além da mãe. Por essa altura confiavam em que eu dissesse poemas para entreter gente e haver ruído, enquanto na cave se reuniam os homens que lutavam. Já sabia ao que ia... quantos anos!


Mandaram-me vir aqui. Vim e gostei. Obrigada pelos testemunhos.

:)

3:03 da tarde  

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