Fim de semana
Chegava sempre depois de almoço. Duas da tarde. Ía pela mão do meu avô. Devagarinho, conversava comigo, caminhando naquele passo lento de quem já muito andou. Naquele alheamento de quem já muito viu. Ficava no ínício da rua à esquina. Dava-me um beijo e seguia-me com o olhar até eu chegar ao portão. Nunca se aproximava. Antes de entrar eu olhava para trás e acenava-lhe. Era o sinal de que podia ir-se embora. De que eu já estava entregue.
Gostaria de recordar com precisão o que sentia nessa altura, mas só posso imaginar.
Sei que deixava um mundo e entrava noutro. Lá fora ficava a minha vida do dia-a-dia, o à-vontade, o espírito livre e aberto de criança. Cá dentro, fechava-me num mundo só meu. Calava o linguajar fácil, escondia os sonhos cor-de-rosa. Dentro dos portões eu era mais triste e mais controlada.
Chegava e ía para o meu quarto. Primeira porta ao lado da cozinha. A sala, em frente. Lá estava a cama bem feita e defronte a estante com os livros bem arrumadinhos e as bonecas sentadinhas em fila. No canto ao lado da janela a cómoda, e em cima dela o velho Buda que ainda hoje me acompanha. Uma só peça de madeira esculpida. Polido, risonho e feliz. Que contraste! Ao lado da porta, o roupeiro. Era hora de trocar de roupa.
Ficava tudo lá fora. A outra e a alegria. A roupa que trazia vestida, era arrumada no armário. Vestiam-me outras roupas. Para parecer outra, talvez. Ao gosto do dono da casa - o meu pai.
Passava-se o sábado na expectativa da noite. Amanhecia o domingo, longo e pastoso.
Ao fim da tarde a cena invertia-se.
Trocavam-se as roupas, vestia-se a alegria e o meu avô lá estava na esquina - a mão estendida à minha espera - e o caminho de volta. Devagarinho. Naquele passo lento de quem já tudo andou. Naquele alheamento de quem já tudo viu.
Gostaria de recordar com precisão o que sentia nessa altura, mas só posso imaginar.
Sei que deixava um mundo e entrava noutro. Lá fora ficava a minha vida do dia-a-dia, o à-vontade, o espírito livre e aberto de criança. Cá dentro, fechava-me num mundo só meu. Calava o linguajar fácil, escondia os sonhos cor-de-rosa. Dentro dos portões eu era mais triste e mais controlada.
Chegava e ía para o meu quarto. Primeira porta ao lado da cozinha. A sala, em frente. Lá estava a cama bem feita e defronte a estante com os livros bem arrumadinhos e as bonecas sentadinhas em fila. No canto ao lado da janela a cómoda, e em cima dela o velho Buda que ainda hoje me acompanha. Uma só peça de madeira esculpida. Polido, risonho e feliz. Que contraste! Ao lado da porta, o roupeiro. Era hora de trocar de roupa.
Ficava tudo lá fora. A outra e a alegria. A roupa que trazia vestida, era arrumada no armário. Vestiam-me outras roupas. Para parecer outra, talvez. Ao gosto do dono da casa - o meu pai.
Passava-se o sábado na expectativa da noite. Amanhecia o domingo, longo e pastoso.
Ao fim da tarde a cena invertia-se.
Trocavam-se as roupas, vestia-se a alegria e o meu avô lá estava na esquina - a mão estendida à minha espera - e o caminho de volta. Devagarinho. Naquele passo lento de quem já tudo andou. Naquele alheamento de quem já tudo viu.
17 Comments:
Belo e emocionante "retrato" de memórias, que também me fizeram recuar à infância e ao meu avô:)
beijos
Comentários para quê ? É uma verdadeira Artista portuguesa.
Beijo, Dulce.
A vida e suas mutações. A nossa eterna adequação aos dias que vem sempre de forma diferente, a exigir de nós aquilo que ainda vamos aprender com ele.
Um beijo
Naeno
Ë bom recordar!
Nunca tive nenhum avô que me levasse pela mão...
Uma figura importante na vida duma criança.
Belo texto.
Bjs
O aceno do avó na juventude da lembrança troca as roupas dos nossos sonhos. Enquanto isso, Buda medita.
http://cadinhoroco.blogspot.com/
Ai, Lembranças.
Alegres.
Tristes.
Felicidade.
De as ter vivido.
Tristeza.
Porque são recordações.
Porquê regredir, Dulce.
Vamos falar dos Netinhos ?
Dos teus ?
Dos outros )
Da minha Matildinha ?
Falamos Futuro ...
poetaeusou(docontra????)
Agora melhor entendo, como gostas da segunda-feira. Espero que tambem entendas ás vezes o meu alheamento pelas coisas assim como a lentidão na vida.
Beijinho doce.
Desta vez é uma linda homenagem ao teu avô...
Que saudades que eu tenho do meu...
Bom fds
Para Poetaeusou:
Apesar da minha provecta idade, netos ainda não há! Há filhas com vontade de constituirem família e ainda a precisarem muito de um carinho de mãe.
Quanto ao Futuro, estou a vivê-lo, um dia de cada vez, sem pensar muito no depois de amanhã ou como alguém me diria, no "além". Porque amanhã não sei se ainda cá estarei, e "além" muito menos. Hoje é que importa. Como o vivemos. Como o aproveitamos. O que fazemos de nós.
As recordações são o Ontem. Aquele que gerou o Hoje e tudo aquilo que sou. Não se vive delas, mas também não se enterram e nem se esquecem. Estão lá. São a raíz de nós. Dói voltar atrás. Lembrar estas coisas e mais ainda as pessoas que estão envolvidas e que já não nos acompanham, mas as minhas recordações já são tão poucas, que só posso ficar feliz por me lembrar ainda de algumas - mesmo que sejam as menos felizes, sempre as menos felizes.
Para o Anónimo:
Acreditas que ontem ao escrever isto, cheguei tb a essa conclusão?
Para Escrevi:
Não está esquecido. Todos os dias penso em agrupar textos ... TEm calma que vai sair. E será que alguém o quererá editar?
Um desfiar de recordações. É assim a vida, vamos acumulando recordações até que as arrumamos numa prateleira onde nunca mais lhe mexemos.
BOM NATAL E FELIZ ANO 2007.
Um beijinho.
Manuel
Redimir como ?
Tenho amigas que alertam os netos.
Dizendo, não sou avó, na presença de estranhos, estão a ouvir ?.
E eu, nada urbano e insensato...
Mil olhares de perdões.
Mas, foi em sentido figurado, creia.
poetaeusou(perdoado?????)
Beijos. Pela memória.
Poetaeusou:
E quem disse que eu fiquei zangada?
Apenas me apeteceu responder (o que não é nada meu costume!)
E quando fôr avó, vou sê-lo com o maior orgulho.
Amiga Dulce. Todo lo que cuentas está impregnado de magia y de recuerdos amables. Son historias sencillas de nuestra vida de niños que se graban en la memoria.
Esta época navideña es proclive a los sueños infantiles, a las alegrías sanas, sin interferencias, a las alegrías sinceras, de esas que emanan del alma. Por desgracia, ahora existe una falsa filosofía que quiere imponernos la felicidad a toda costa, aunque tengamos el corazón sngrante ante la vista de tanta pobreza y tanto sufrimiento.
Qué bonito lo que cuentas.
Un beso muy fuerte y FELIZ NAVIDAD.
Vou estar muito ocupada.
Possivelmente não poderei voltar aqui
Senão depois do Natal.
Deixo-te um beijinho com os desejos
De muita felicidade.
Enternecedora esta tua memória.
Estimulante a ideia de ter em casa uma imagem feliz - um Buda, por exemplo!
Enviar um comentário
<< Home