Chegava a meio da manhã, já o sol queimava. Antes de o ver já o ouvia ao longe apregoar bem alto o que trazia no cesto de verga para vender. Nos últimos anos, e porque talvez o cesto se lhe tornara pesado, substituira-o por um grande saco de plástico que, ora arrastava, ora carregava sobre as costas curvadas.
Há muitos anos que o conheço. Há muitos verões que o vejo calcorrear o areal de uma ponta à outra, em cada ano inventando novos pregões. A cada ano mais envelhecido e tisnado.
Chamo-lhe Vasco Gonçalves pela incrível parecença que tem com o General. Não fui eu que lhe atribuí o nome, mas uma amiga que também frequenta há vários anos o mesmo areal. Nos primeiros anos vendia
nougat. "Três, ceeeem! Três, ceeeem", apregoava bem alto. Ainda era o tempo dos escudos. Todos os verões lhos comprava por diversas vezes. Língua da sogra era o segundo pregão. Trazia-as num saco de plástico transparente que agitava no ar enquanto gritava "há língua da sooooogra!!!!!" e de um qualquer canto da praia corria sempre algum miúdo agitando os braços.
Os anos foram passando. Os escudos deram lugar aos euros e todos envelhecemos um pouco mais. Também a sua face se tornou mais cavada. As maçãs do rosto mais salientes num semblante magro. As costas mais curvadas. Os olhos mais vazios e as mãos indisfarçadamente mais trémulas. No Verão passado e como sempre me acontece, ouvi em primeiro lugar a sua voz. Quando o procurei à minha volta, não o vi de imediato. Tentei chegar até ele pela voz que se projectava no ar e que aos poucos se ía aproximando.
"Olhem, olhem", gritava com aquele seu timbre um pouco esganiçado. "Está barato", "agora é barato" oiço-o dizer cada vez mais perto ... e eis que o vislumbro agitando no ar o saco de plástico com as línguas da sogra. Caminha lenta mas decididamente pela areia quente do meio da manhã. Calças arregaçadas até aos joelhos e a camisa quase a sair por fora. A cabeça, cobre-a com um velho chapéu de palha de aba larga que lhe cai sobre os olhos, resguardando-os. Chamam-no ao meu lado e ele aproxima-se para satisfazer o pedido. É nesse momento que o vejo tão próximo que a realidade me abalroa. As mãos tremem descontroladamente e os olhos que por segundos me olharam, são já aqueles olhos vazios e perdidos que a muita idade exprime e a doença realça. Vi-o muitas mais vezes o verão passado mas evitei fixar de novo o seu olhar. Um olhar que incomoda cá dentro. Uma expressão em que vejo que uma parte de si já se desligou da vida.
Há dias, ao passar na Praça de Espanha, reparo numa figura que me é familiar. O mesmo chapéu de palha embranquecido pelo sol e o saco com as línguas da sogra agitado no ar. Enquanto o sinal esteve fechado pude observá-lo um pouco. Debaixo de uma árvore estava o saco maior e ele por ali andava junto ao sinal à espera que os carros parassem para poder apregoar a sua mercadoria. Apenas vi os gestos, não lhe ouvi o pregão. Depois, o sinal abriu e ele recuou para o relvado. A cabeça baixa e os ombros mais curvados.
Senti uma enorme tristeza de o ver por ali. Uma angústia de o saber cada vez mais envelhecido e sem condições de poder parar e descansar. Ou não será assim e serei eu que estou apenas a imaginar coisas ...
Junho está à porta e qualquer dia apetece voltar à praia. Veremos se o oiço de novo: "Olhem, olhem...."