quinta-feira, novembro 30, 2006

Em ti

Nas tuas mãos reinvento gestos ...
Nos teus olhos semeio desejos ...
Ao ouvido desenho os sonhos ...
e na tua boca ...
hum ...
na tua boca suspendo o tempo!

quarta-feira, novembro 29, 2006

Crepúsculo




Recuaste. Como eu, também tu a tinhas visto. Impossível ignorar o chamamento. Saimos, dispostos a fixar para sempre aqueles instantes.
O lago transbordava de magia. Próximo, vestia de negro, enquanto que, perto do horizonte, reflectia os matizes do fim do dia. Mas era no céu que os olhos se perdiam. À medida que a noite descia, tingia-se o azul de diferentes cores. Alteravam-se as "nuances" de minuto a minuto.
O laranja que ainda há pouco coloria uma larga faixa de céu, cingia-se agora apenas a uma estreita linha que debruava o horizonte.
A luz diluía-se na noite que se avolumava. No ar encadeavam-se o coaxar surdo dos sapos e o vibrante canto da cigarra.
E ficámos...
Presos dentro de um quadro de sonho.
Enfeitiçados pela magia dos sons.
Esmagados por uma beleza que nos transcendia.
Ficámos. Até que o último feixe de luz foi devorado pelas trevas.

(Fotos minhas)

terça-feira, novembro 28, 2006

Persistente e monótono

Ouvia-o sempre que se fazia silêncio. Um silêncio absoluto.
Começava devagar, aquele ruído persistente e monótono.
Nesses momentos corria a casa toda, apurava o ouvido em todos os recantos.
Parecia que nascia do nada - aquele ruído, persistente e monótono.
Sem conseguir dominá-lo, tentava abstrair-me, esquecê-lo, mas ele preenchia o meu silêncio de uma forma tão intensa que se tornava impossível ignorá-lo.
Tentei todos os caminhos. Tapei os ouvidos com algodão, cobri-me com a almofada na cama, mas de nada servia. De início parecia que o ruído se diluía para depois retomar o seu lugar preponderante. Persistente e monótono. Parecia até que se formava na minha cabeça!
Enovelado noutros barulhos parecia desaparecer. A televisão e a rádio ou as vozes que subiam da rua, abafavam-no, e quase o esquecia.
Ontem, depois de voltas e mais voltas na cama, firmemente enterrada nas almofadas, consegui finalmente que o sono me abraçasse, mas aquele som persistente e monótono perseguiu-me para além da vigília.
Fortemente consciente da sua presença vi-me reflectida num espelho. Eu estava ali. E era a mim que eu olhava. Idêntico semblante. A mesma postura atenta.
Do outro lado, Ela ... ou Eu ... fitava-me também, o olhar carregado, as sobrancelhas numa linha recta, e a boca - firmemente cerrada - rangendo os dentes. Naquele ruído persistente e monótono que eu tanto procurara.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Medos


Mudo,
enterras
desejos e
ocultas os
sonhos!
(Foto em www.olhares.com)

domingo, novembro 26, 2006

Devia morrer-se de outra maneira

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

Hoje morreu Mário Cesariny de Vasconcelos

sábado, novembro 25, 2006

Espera


Eis-me num promontório não assinalado
e desconhecido, único lugar da beira-mar
onde as noites são amarelas. Eis-me aqui,
velando.

Se virás ou não, não importa mais.
Seguirei velando sob a noite longa, porém,
jamais assustadora ou azul ou escura.
Eis-me aqui num promontório não assinalado,
velando.

pelo mar, pela noite amarela ou por ti

velando,
velando,
velando.

Ivo Machado, in "Tantas Mãos, a mesma Primavera", Oficina do Livro, 2005, p.47
(Foto minha)

sexta-feira, novembro 24, 2006

...

"O homem constrói casas porque está vivo, mas escreve livros porque sabe que é mortal.
Vive em sociedade porque é gregário, mas lê porque se sente só. A leitura constitui para ele uma companhia que não ocupa o lugar de nenhuma outra, mas que nenhuma outra poderia substituir.
Não lhe oferece nenhuma explicação definitiva acerca do seu destino, mas tece uma apertada rede de conivências entre a vida e ele. Ínfimas e secretas conivências que falam da paradoxal alegria de viver, mesmo quando referem o trágico absurdo da vida.
Por isso as razões que temos para ler são tão estranhas como as que temos para viver. E ninguém nos pede contas dessa intimidade."

PENNAC, Daniel, "Como um romance", Asa, Lisboa, 1995, p.166

quinta-feira, novembro 23, 2006

...

Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor.
Parto amanhã.

Não basta depôr nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.

Não basta amar a superfície cómoda, ritual,
exacta nos contornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.

Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.

Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz distante,
entre ruídos de música e interferências aladas.

Não basta ser feliz.

Não basta a Primavera.

Não basta a solidão.

Daniel Filipe, "A invenção do Amor e Outros Poemas", Editorial Presença, Lisboa, pp.57/8

quarta-feira, novembro 22, 2006

Hoje

Quando o sonho se desfez a noite desceu.

Hoje o sol não se abrigou num horizonte de mil cores.
Hoje as mãos arrefeceram, perdidas num colo vazio.
Hoje os sinais vermelhos que atravessei foram apenas e só, sinais vermelhos.

Quando o sonho se desfez o sorriso perdeu-se.

A ilusão escureceu.
A esperança ganhou as cores do inverno.
O relógio retomou a marcha.

Hoje a estrada foi de ferro.
Hoje as palavras morreram, caladas na garganta.
Hoje romperam-se os diques e ondas salgadas e poderosas galgaram as minhas margens.

Foi hoje. Quando o sonho se perdeu.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Roteiro

Parar. Parar não paro.
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se carácter custa caro
pago o preço.

Pago embora seja raro.
Mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.

Um rio, só se fôr claro.
Correr, sim, mas sem tropeço.
Mas se tropeçar não paro
- não paro nem mereço.

E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
- se carácter custa caro
pago o preço.

Sidónio Muralha, "Poemas" Editorial Inova, Porto, p.196

quarta-feira, novembro 15, 2006

As estranhezas humanas

Não quero mais o motivo
das coisas.
Nem mais cobiço
as verdades que se escondem,
avaras, no âmago límpido
das estranhezas humanas.

Foi-se-me a fome de nuvens,
foi no escuro, antes da aurora.

Trava-me o gosto da vida,
de tão pesada, esta absurda
precisão que tem meu ser
de ser sempre inteiramente,
sempre intensamente: em tudo.
Sobretudo no saber.
Contudo sequer alcanço
a escassa fímbria da sombra
do saber que em vão persigo.

Não quero mais os motivos.
As coisas que me sucedam
a seu gosto: em meu desgosto
hei-de fronteá-las.
O mundo
que avance conforme a lei
(se é que mistério tem lei)
que rege e doma as razões
com que engana, cauteloso,
a todos que lhe moramos.

As mágoas que me chegarem
não lhes irei mais às causas:
simplesmente as sofrerei
- como quem sofre, fazendo
de conta que está fingindo.
Assim vai ser. Não me quero
nem a própria explicação.

O que escondido restar,
que reste.
Já me cansei
de mergulhos - sempre vãos,
sofridos sempre - em funduras
onde peixes lisos, frios
e invisíveis, acalentam
com ferrões feitos de nada
o desencanto da vida.

Assim me sonho. Entrementes,
me transpareço e me aceito.

Thiago de Melo, "Canto do Amor Armado", Moraes Editores, Lisboa, 1974, pp. 154/5

terça-feira, novembro 14, 2006

...

"Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos."

PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, p.72,

segunda-feira, novembro 13, 2006

O reflexo

Tinha acendido só o candeeiro da mesa de cabeceira. De pé, frente à grande vidraça do apartamento, no 4º andar, sem saber porquê, olhava o meu reflexo lá fora, na noite, muito direito entre duas filas de prédios. Curiosamente os seus pés firmavam-se no corrimão duma varanda.
Dei um passo em frente, o reflexo avançou também.
Bruscamente, recueei; ouço um leve ruído, depois um grito, quase imperceptíveis, como que abafados por um vidro.
E vejo o meu reflexo perder o equilíbrio, vacilar e, pesadamente, cair de costas no vazio.

STERNBERG, Jacques, "Duzentos e Setenta Contos de Arrepiar", Arcádia, Lisboa, 1977, p.29

domingo, novembro 12, 2006

Noite de música

Dia de concerto. Sala cheia. Algumas caras conhecidas (poucas). Costumo olhar por cima das cabeças, não me fixando nos rostos. Se alguém sobressai do esbatido, então fixo o olhar no objecto da minha atenção.
Mas dizia eu ... sala cheia. O começo, atrasado, como é já costume. Pela primeira vez nesta sala, obrigo-me a olhar os pormenores. Anfi-teatro bastante inclinado. Estofos vermelhos, confortáveis, mas não demasiado.
No palco, uma cacofonia de sons. Uma desordem visual e auditiva. Afinam-se os instrumentos. Os que já o fizeram conversam baixinho entre si. Aos poucos o ruído vai diminuindo, até que se suspende de todo. Baixam as luzes. Aprumam-se os elementos da orquestra nos seus lugares. As mulheres, de negro vestido. Brilham os instrumentos na expectativa do início. Suspendem-se os gestos, abafando o nervosismo latente. O maestro entra e é saudado pelos seus e pela assistência.
Faz-se silêncio total e dá-se o lugar à música.

Orquestra Sinfónica Portuguesa do Teatro Nacional de São Carlos. É deles que falo.

Gosto de quem se faz prolongamento do instrumento que toca. Gosto quando o intérprete não executa apenas o que lê na pauta, mas se deixa penetrar pela melodia, se deixa ganhar pelo ritmo, se deixa envolver ele próprio, naquele diálogo íntimo entre o instrumento e a música. Gosto que se flexibilize, que se esqueça de si próprio e reflicta em cada pedaço de si, cada nota arrancada e cada "nuance".
Isso aconteceu com dois elementos da orquestra - ambos ligados à percussão - que nos momentos em que intervieram, realizaram uma simbiose perfeita com o seu instrumento.
Ainda me resta falar dos compositores e temas interpretados. Arnold Schonberg com o trecho "O Sobrevivente de Varsóvia" onde pontuou igualmente o Coro do Teatro Nacional de S.Carlos. "Em Louvor da Paz" de Fernando Lopes-Graça e "Leningrado" de Dimitri Shostakovich.
O maestro, Peter Rundel.
O local: Teatro Municipal de Almada - o Teatro Azul.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Quê?

Tive que baste.
De quê?
Daquilo que nos deixa
ficar em raiva contida
e permanente,
contra tudo!
Porquê?
Porque nos desarma
injustamente
e constantemente,
de tudo!
Para quê?
Para nos agarrar e dobrar
e cegar e queimar
até ao fundo
de tudo!
Tive que baste.
De quê?
De tudo!
De nada!

Conceição Cotta, in "Index Poesis", Edição SCALA/O FAROL, 2006, P.43

quinta-feira, novembro 09, 2006

Coincidências ...

Mãe ... espero que nunca desistas e que, apesar do suor que vais gastar, continues sempre com energia para chegares ao fim.
E lembra-te sempre, que, acima de tudo, és uma lutadora!
Um grande beijinho desta filha que te adora ...
Joana

P.S. (Faça o favor de guardar esta carta muito bem guardadinha, ouviu?)
3/07/1998


Hoje de manhã quando arrumava uns livros, reparei num papel que se destacava de dentro de um deles. (Adoro guardar pequenas coisas dentro dos livros para depois as encontrar anos mais tarde). Quando o abri vi que era esta carta da minha filha mais velha.
Sei qual o contexto em que foi escrita. Decidira tentar o ingresso na faculdade, e com a idade que já tinha e os encargos familiares, adivinhava-se tarefa complicada. Daí o incentivo que me estava a ser dado.
Como imaginar que oito anos depois, esta mesma carta teria tanta actualidade!

quarta-feira, novembro 08, 2006

...

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser ...

Álvaro de Campos, in "Poemas de Fernando Pessoa", Edição Visão/JL, 2006, p.167

terça-feira, novembro 07, 2006

...

Uma palavra dorme em seu casulo
de saliva lavrada
está viva porém muda
e anulada.

Uma palavra hiberna em seu conteúdo
seu buraco de som seu palácio de letras:
Bela Adormecida à espera de que tudo
volte a acordar nos poetas.

José Carlos Ary dos Santos, "Obra Poética", Edições Avante, Lisboa, 1999, p.202

segunda-feira, novembro 06, 2006

Trovoadas

Troveja? Ainda há pouco me pareceu ver disparar o flash de um relâmpago. Fiquei a olhar a janela à espera de mais, mas não houve. Só agora, já passado algum tempo, ouvi o estrondo do trovão muito ao longe. Aquele som cavo e ameaçador de algo que é superior a nós.
Gosto de trovoadas. Não tenho medo. Ficar à janela e surpreender-me com o clarão límpido dos relâmpagos. Estremecer quando a resposta surge, imediata e assertiva.
De novo o céu se iluminou. "Azula" a noite.
A minha avó costumava dizer, em noites de trovoada, para nos afastarmos das janelas. Para não olharmos para os relâmpagos. Para não estarmos perto do fogão. Para retirarmos todo o ouro que estivéssemos a usar. Lembro-me bem destes conselhos e de como me amedrontavam, fazendo-me acreditar em perigos imensos.
Mais tarde, lembro a minha mãe, quando me falava das trovoadas em África: "aquilo é que eram trovoadas!" dizia, e relatava alguns episódios que vivera. No mato vira cair um raio a pouca distância. Por momentos cegara com tamanha luz. Os trovões, ao contrário do que temos aqui, eram tão fortes que faziam abanar pequenos objectos, derrubando-os. "Aquilo é que eram trovoadas" lembrava, e os olhos revelavam também o que tinham presenciado.
Hoje relembro com um sorriso os cuidados da minha avó e corro para a janela para apreciar este magnífico espectáculo que a natureza me oferece.
Deito-me agora. Sei que está mais próxima. Poucos segundos separam o relâmpago e o trovão.
Vou apagar a luz e deixar-me adormecer assim ...

domingo, novembro 05, 2006

Sabes .... ??

Texto retirado

sábado, novembro 04, 2006

...

Devagar no jardim a noite poisa
E o bailado dos seus passos
Liberta a minha alma dos seus laços,
Como se de novo fosse criada cada coisa.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Dia do Mar", Caminho, Lisboa, 2005, p.72

sexta-feira, novembro 03, 2006

Um dia depois ...

Texto retirado

quinta-feira, novembro 02, 2006

Pesadelo

Texto retirado

quarta-feira, novembro 01, 2006

Manhãs claras

Na nudez dos sonhos
despidos de esperança
procuro a verdade insofismável
da tua ausência.
E quase esqueço
a pérfida clareza dos dias
em que,
tendo-te a meu lado,
vagueei solitária
pelas manhãs claras
e me perdi
no escuro dos caminhos!

TOSCANO, Ermelinda, in "Index Poesis", Ed. O Farol/Scala, 2006, p.73