quinta-feira, agosto 31, 2006

...

Em pouco tempo
tomaste conta de tudo,
Estou de pé, de pernas afastadas,
Desces ao longo do meu corpo
como o sol.

LEAL, Leonilde, "Basalto da casa", Editorial Escritor, Lisboa, 2001, p.87

quarta-feira, agosto 30, 2006

Fuga

Fecho os olhos. O vento solta-me os cabelos que esvoaçam livremente. Julgo que brilham sob esta luz tão intensa.
Fecho os olhos. Sinto a carícia do sol no intervalo da aragem fresca. Por debaixo das pálpebras cerradas, há espasmos de luz - pequenas fogos de artifício que se sucedem.
Fecho os olhos e mergulho naquele oceano que toca para mim uma única e vibrante melodia. Sempre nova. Sempre sonhada.
Fecho os olhos e tento não pensar em nada. Desligar. Sinto aquela vontade de me perder apenas no vazio. Vazio de ideias. Vazio de projectos. Vazio de vidas passadas. Um mundo feito apenas de luz, calor e som. Um espaço ideal onde flutuar - íntegra e pura - despida daquilo que sou, virgem de futuros, esquecida de passados. Ainda e só um mero projecto de mim própria. Perfeita no conceito apenas.
Fecho os olhos e deixo que os sons moldem este voo a que me entrego.
Fecho os olhos e esqueço-me de existir.

terça-feira, agosto 29, 2006

À noite!

Deste lado da porta é o meu espaço. O silêncio recebe-me enquanto a solidão me abraça. Deste lado da porta sou apenas eu. Estou apenas eu.
Ao espelho as roupas caem e o cabelo solta-se. A maquilhagem apagada ... apenas os meus traços ficam.
Visto-me para a noite. Espreguiço-me. Descalça, sinto a madeira do chão, macia sob os meus pés. Já me esperam o livro e a música. Um oceano pacífico que me embala até ao esquecimento. O telemóvel ali ao lado. As últimas mensagens da noite. O carinho na vibração esperada.
Lá fora agitam-se ainda as vozes. Passos no corredor. A luz espreita insinuante por debaixo da porta.
Entrego-me à música e à frescura dos lençóis. Percorro as linhas de uma história que mal começou ainda. Volto atrás. Leio de novo - o pensamento desviado para outro caminho. As palavras a agruparem-se quase por vontade própria - quase acima do meu querer.
Insisto. Volto atrás. Leio de novo. "El 19 de julio de 1939 ..." Paralelamente percorro outras palavras. Palavras que se agrupam e que me fazem desistir da leitura. Pego no caderno e na caneta. Por alguns momentos, aguardo. Recupero as palavras pensadas. "Deste lado da porta é o meu espaço."

E desse lado da porta? Há a contenção e a frieza. Duas batidas. Duas vontades. Desiquilíbrio. Ou apenas aquele equilíbrio perfeito entre o não e o nada.
Não querer.
Não fazer.
Nada ter.
Esquecer.
Recusar.
Desse lado da porta.
Aí, onde não chego. Onde não pertenço.

Eu estou aqui! Deste lado da porta. O meu espaço. Conquistado. Meu.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Ameaça

Um dia vais arrepender-te !

Vou fazer-me explodir em palavras diante de ti
e vamos morrer os dois cravados de sentidos.

Pedro Canais, in "Tantas mãos a mesma Primavera", Oficina do Livro, 2005, p.21

domingo, agosto 27, 2006

A magia das palavras

A magia das palavras. Tal se poderá dizer da obra final. (Ou não!)
Assim se caracterizará o resultado do esforço de criar um texto. Milhares de palavras. Milhares de letras - pequenos símbolos que o homem inventou unidos de variadíssima forma para dar sentido a uma ideia. (Ou não!)
Ao escrevermos um texto, uma pequena carta, um pequeno trabalho, uma lista de supermercado, não pensamos no que estamos a fazer. Maquinalmente agrupamos estes pequenos símbolos gráficos com uma finalidade lógica. (Ou não!)
Surgem dúvidas em aplicar esta ou aquela palavra para que o sentido seja exactamente aquele que pretendemos transmitir.
Porque "mar" e "oceano" apesar de sinónimos, nem sempre exprimem aquela "toalha de água densa e luminosa" que imaginámos.
Porque "velho", "gasto" ou "idoso" não são as palavras que queremos, para falar de quem "já caminha pela vida com olhos de saber". (Ou não!)
Porque quando passamos para o papel aquela ideia que tem vindo a germinar há muito, essa ideia se reveste de contornos muito precisos - muito nítidos - e há que utilizar as palavras certas, aquelas que se encaixam no puzzle que montámos.
Às vezes, na procura da palavra certa fico ali, perdida num mundo feito de sons. De sons, sim! porque às vezes é apenas o som vago da palavra dita que me surge bem no fundo do pensamento. Como que o eco baixo e eternamente repetido de algo que não consigo distinguir perfeitamente. E assim rebobino o som na tentativa de o escutar com alguma clareza - numa espera desesperada e lenta - porque é apenas aquele e não qualquer outro som que pretendo ouvir. Até que o eco se aclara e o texto progride.
Se calhar para alguns, escrever é instintivo - parto fácil e sem dôr de crias perfeitas. (Ou não!)
Não para mim. Ou pelo menos nem sempre. Gosto de trabalhar as ideias e só depois passar as palavras para o papel onde ainda se alteram e transformam, riscadas e substituídas por outras, até que o som seja o que quero ouvir e a forma a que quero ver.
Há coelhos que se transformam em pombos e mãos vazias que desabrocham em flores. E há letras que se unem por magia e transformam o mundo. (Ou não!)

sábado, agosto 26, 2006

...

"Sempre que penso em ti avanças em desordem no ar, e a minha memória aflita tem pressa de te alcançar, o sangue tem pressa em correr, e antes de alcançar tremo, sinto pavor em chegar. O meu coração é a criança a correr para ti e tu desapareces no interior da minha respiração, de uma dança elevada à solidão que faz arder o vento atrás de si. Sempre que penso em ti rogo pela ressurreição do tempo, pela subversão dos dias."

PAIXÃO, Pedro, "Nos teus braços morreríamos", Livros Cotovia, Lisboa, 2000, p.112

sexta-feira, agosto 25, 2006

Uma fotografia

Ao rever antigas fotografias, encontro-te.
Retratado em diversas idades. Só, ou com companhias várias. Algumas não conheço, outras são-me familiares. Rostos que permanecem intactos para além do tempo e para além da morte. Como o teu, que não vi - que não quis ver - sem vida.
Assim, lembrarei sempre os teus olhos frios. O cinzento derramado na expressão do rosto como uma nuvem que escurece o dia e apenas dissipado quando te rias ou sorrias aquele sorriso crítico que o olhar acompanhava com eloquência.
Assim, lembrarei sempre a tua boca de lábios finos - quase sempre cerrados num traço de rispidez.
Assim, lembrarei sempre a tua postura curvada. Os ombros largos e inclinados para a frente - prova de uma intensa vida de trabalho.
Assim, lembrarei sempre as tuas mãos. Convincentes. Calosas. Dedos toscos e amarelecidos pelo fumo. Vazias do carinho que ficou por dar.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Sobressalto

Acordei de madrugada em sobressalto. O coração desenfreado ... as mãos húmidas e o rosto afogueado. A nítida sensação de uma presença junto a mim ...
Sem acender a luz fiz deslizar as mãos sobre os lençóis e sua frescura reconfortou-me. A sua lisura devolveu-me alguma calma, mas a certeza daquela presença persistia em mim - forte.
Sob a fraca luz da madrugada procurei nos quatro cantos do quarto. Rodando a cabeça lentamente questionei as sombras que se projectavam em figuras estranhas nas paredes.
Silenciei a minha respiração para tentar detectar outra respiração, mas apenas encontrei o silêncio.
Quero retomar o sono agora perdido. Procuro uma posição confortável. De lado na cama, enrolo-me sobre mim - a mão debaixo da almofada que me acaricia o rosto.
Que horas serão, pergunto-me ...
Pego no telemóvel em cima da mesa de cabeceira. Primo uma tecla. Aviso de mensagem! Uma mensagem? surpreendo-me!
Leio. Diz apenas: "Estou contigo".
Sorrio. Posso finalmente adormecer!

quarta-feira, agosto 23, 2006

Sombras

Longe ...
Teu coração bate de saudade
Teus olhos brilham ainda mais
Tua mão desenha com ternura
Na sombra do meu corpo uma aventura
Feita de trajectos sensuais

Sem o teu rosto
Como é longa esta espera
Como é o meu dia triste ...
É como se vivesse na primavera
Quando ela já não existe

Só a tua sombra que me toma por inteiro
É que faz este dia quase verdadeiro! ...

OLIVEIRA, Albino Santos, "Gotas de Luz", Editora Xerazade, 2005, p.30

terça-feira, agosto 22, 2006

Com(passos)


Hoje olhei o Tejo com olhos de água.
Percorri com o olhar aquela extensa linha ondulada que se perde no horizonte.
A serra ao fundo a recortar-se, indistinta e cinzenta, num céu muito azul.
Aquela neblina que dá todo o sentido à palavra nostalgia.
Hoje.
Nada como ontem quando o percorri à sua beira pela manhã. O dia igualmente luminoso e claro.
O passeio de sombra - fresco.
A conversa - apetecida.
Com passos calmos deixei-me envolver pelo silêncio que me acompanhava.
Sorri aquele sorriso que apenas nasce nos momentos perfeitos.
Sonhei no embalo das águas que acariciavam a areia.
Perdi o olhar no sombreado fundo verde das águas.
Pouca gente passava.
Alguém pedalava lentamente pela berma.
Alguns pescadores.
Extensos fios de nylon pacientemente desenrolados.
As canas erguidas e já preparadas.
Percorri a beira-rio com passos de "todo o tempo do mundo".
Ao compasso das palavras.

(Foto minha)

segunda-feira, agosto 21, 2006

Duplicidades

Saio para a rua, de esperança vestida.

(No jardim, as rosas lembram-me de ti ...)

Antecipo o desenrolar dos meus passos

( ... e dos dias perfeitos ...)

o que vou fazer ...

( ... não hoje ...)

quem vou encontrar ...

(os dias em que te posso tocar e sentir ...)

quem não posso ver, beliscar ...

(estar !)

Caminho segura!

(Olhar arisco por sobre a vida ...)

Sinto o sol que me reconstrói ...

(e que nem o calor consola ...)

Penso em ti!

(Apenas penso em ti ...)

Tão longe ... mas sempre dentro de mim!

(tão longe ... e no entanto, tão perto ...)

Querendo-te!

(na memória presente ...)

Recrio-te!

(para poder mergulhar nos teus olhos de mar!)

Afundo-me na maré do teu olhar!

domingo, agosto 20, 2006

Diário de uma noite

Arrepiada a pele, contrasta com o calor do quarto.
Descalça, sinto o chão morno debaixo dos pés.
Fecho a janela depois de um último olhar. À estrada vazia. Às árvores cintadas.
Corro a persiana para que a manhã não me surpreenda.
Espreguiço-me e sorrio. Feliz. Apesar de só.
Como um gato que ronrona ao calor.
Olho-me no espelho enquanto me despojo das roupas - enquanto deixo que a solidão me possua inteira.
... que os sons se esbatam ...
... que as palavras antes ditas esvoacem sobre mim - agora mais fluidas, mais doces - de novo presentes ...
... enquanto as mãos pensam outras mãos e procuram o abrigo do corpo ... a carícia perdida ...
... enquanto o corpo saciado e pleno se recria no sonho ...

sábado, agosto 19, 2006

Solidão

Enquanto espero o meu café da noite aqui sentada nesta mesa laranja do costume, faço algo que não é hábito fazer. Pelo menos conscientemente.
Penso em mim e nos dias ou anos que terei ainda pela frente.
Normalmente quando só, deixo que o pensamento flua, entretenho-me a construir as frases que virei a escrever mais tarde, a alinhar as palavras que, depois de devidamente encadeadas, darão lugar a mais uma reflexão.
Por vezes acho que até nem penso em nada. Se isso fôr possível ... não pensar em nada. Ficar secretamente aninhada naquele buraco vazio e escuro que me permite esconder-me de mim.
Sobrevoo a algazarra da mesa ao lado. Abstraio-me das conversas que não me interessam. Penso para mim que hoje não me apetecia estar só. Mas há uma firme recusa em chamar alguém - um amigo, uma amiga - para me acompanhar num café e numa conversa de fim de noite. Obrigo-me a estar só porque acho - entendo - que ninguém tem que aturar a minha súbita irritação ou de estar disponível para mim quando preciso.
Dirão talvez que os amigos também são para essas ocasiões. É verdade. E se fosse o inverso eu estaria disponível para um amigo. Para mim no entanto, obrigo-me a passar por um crivo em que me penalizo/obrigo a esta solidão forçada.
O café chegou e assim posso ocupar os gestos durante uns momentos.
Quando fumava, era nestas alturas que o cigarro era mais necessário.
O companheiro sempre fiel dos gestos sem rumo.
O amigo com quem dialogava em monólogos surdos.
Agora a mão agarra a caneta, enquanto esta traça no papel os rumos do pensamento. Com ela os diálogos são mais vivos, mais expressivos. Com ela disfarço a solidão e ultrapasso a inércia. Com ela crio.

(Porque não me telefonaste? perguntas tu agora.)
(Porque não estás aqui ao pé de mim neste momento em que preciso tanto? penso eu.)

A resposta é: porque a vida é feita de encontros e desencontros. De momentos perfeitos e de enganos. De desejos e de sonhos. De momentos de solidão e de partilha. E nós, simples seres humanos que nada dominamos dos mistérios do universo, apenas viajamos ao sabor do acaso, desejando apenas - sôfregamente - que os sonhos se realizem um dia.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Amanhecer


Jovem ainda a manhã ...
(Tão bela esta manhã e no entanto ...)
Os passos e o desejo conduzem-me à beira-rio. Porque a espera é incómoda e a concentração impossível.
(no entanto ...)
Percorro esta calçada tantas vezes palmilhada. Concentro-me no som dos meus passos e tento não ouvir a cidade que desperta em mil ruídos.
“Bom dia, como está!”
(sempre se encontra alguém ... alguém a quem falar ...)
Impossível passar despercebida.
(quando se queria estar noutro local ...)
Os passos coincidem com o avanço certeiro dos ponteiros do relógio.
(quando se espera ...)
Não olho para nada. Não me concentro em coisa alguma ... apenas no sol que me acerta nos intervalos da cidade.
(exactamente isto ...)
Quase à beira-rio ...
(bom dia, bom dia, bom dia ...)
outro cenário desperta-me desta sonolência a que me impuz ...
(sabes que é impossível concentrar-me antes ... )
a monotonia da cidade ferida por uma nova paisagem
(já tinha saudades ...)
mais luminosa ...
(do calor da voz...)
Do rio chegam-me os sons das vozes e dos barcos que partem ..
(do acender dos sonhos ...)
no rio espelham-se todos os sonhos que acalento - todos os desejos ...
(do mundo em ti ...)
... o voo das gaivotas que não consigo captar ...
(do carinho ...)
o reconfortante som da água que lambe o casco ...
(da tua presença fluida ...)
os bancos alinhados que me chamam para si ...
(com uma toada doce em que me embalo ...)
enquanto o rio permanece ...
(nos sonhos que o sol desperta ...)
banhado pela intensa luz.
(o mesmo sol...)

(Foto minha)

quinta-feira, agosto 17, 2006

Momentos


Sabes o que é um momento perfeito? Aquele que queremos guardar para sempre, como que enquadrado numa fotografia ...
(Senta-te aqui neste banco ... pára debaixo da minha sombra, parecem sussurrar as folhas...)
... como que guardado num pequeno baú ... como que protegido na concha das minhas mãos fechadas ...
(E há que obedecer. Há que ouvir o que os outros não ouvem ... ou não querem ouvir ...)
São poucos estes momentos perfeitos.
São fugazes.
(O grito rouco do mocho ... )
São momentos mágicos que surgem quando não os esperamos.
(... o canto das folhas soprado na aragem ...)
São segundos apenas ...
(... os patos no lago num chapinhar brincalhão ...)
... que não pensamos ... acontecem ...
(... há que ouvir as gaivotas em fila colorida acariciadas pelas águas do lago...)
... e quando nos damos conta ... já passaram ...
(... há que parar e ouvir ...)
É um estado de espírito ...
(... ouvir estes sons que lembram os contos de fadas ...)
... é um lapso de tempo que queríamos que durasse para sempre.
(... no silêncio da manhã ...)
Tudo pára.
(... na frescura de um jardim ... )
Ou queríamos que parasse ...
(... na solidão dos passos...)
... ou paramos nós, guardando-os por vontade própria naquele baú secreto ...
(... enquanto as andorinhas são pequenos bibelots nos beirais ...)
... secreto e fundo ...
(... enquanto a música não volta a tocar ...)
... silencioso e sombrio...
(... enquanto a noite não cai ... )
... enquanto não regresso ...

(Foto minha)

quarta-feira, agosto 16, 2006

Fantasia

O chão era de areia - irregular e áspero. As árvores dispunham-se em fileiras bem arrumadas. Cintadas. Marcadas. Os seus limites bem vísíveis na noite.
Mesas de pedra. Gente que fala. Come. Bebe. Ri. No palco tosco ao fundo uma banda toca. Uma música que me agrada espalha-se sobre nós.
Sentamo-nos num daqueles bancos de pedra e por ali ficamos, presos da vulgaridade de uma festa de Verão. Olho à volta e descubro-os. Dois vultos na secreta obscuridade atrás do palco. Dançam. Bem juntos - mal se mexem. Por vezes revolteiam um pouco ao som de um acorde mais vibrante. Quando a música pára, param também, presos de uma imobilidade que os agarra, para logo depois recomeçarem num movimento lento e dolente que os embala.
Vejo-lhes apenas os perfis. Olham-se. Beijam-se. As cabeças encostadas. As mãos dela no seu pescoço, deslizam por vezes pelos seus cabelos. As mãos dele na sua cintura, deslizam por vezes pelas suas costas.
"What a wonderful world" toca agora. A voz do vocalista - rouca - tenta imitar o original. Os meus amigos distraem-me a atenção para a sua conversa e desvio o olhar do par que dança.
Quando os procuro de novo já não os encontro.
Olho à minha volta. Procuro um casal de mãos dadas. Um abraço. Um perfil. Já não os encontro. Vou atrás do palco. Na areia as marcas dos passos não se distinguem.
Quase duvido do que vi.
Um par secreto atrás de um palco?
Um palco num jardim?
Uma noite?

terça-feira, agosto 15, 2006

Da magia ...

Da magia dos jardins contam os elfos que assomam no espelho das águas.
Da magia dos jardins conta a noite no grito do mocho e no coaxar rouco dos sapos.
Da magia dos jardins contam as pedras que gemem baixinho à passagem dos caminhantes.
Da magia dos jardins conta a Lua - vigilante muda dos meus passos.

domingo, agosto 13, 2006

Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

COUTO, Mia, "Raiz de Orvalho e outros Poemas", Caminho, Lisboa, 1999, p.42

sábado, agosto 12, 2006

...

"O desejo era como um pássaro que revolteia na gaiola. Tinha de tentar abrir-lhe as portas e janelas e deixá-lo voar."

JANER, Maria de la Pau, "As Mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.190

sexta-feira, agosto 11, 2006

...

"(...) Yo no me voy a morir, tonta, le contestó su madre con una sonrisa, pero a la vez debió de tomársela en serio, porque la acunó contra su pecho como si fuera un bebé y le dio muchos besos, de esos besos especiales que sabía dar ella, unos besos que no se parecían a ninguna otra clase de besos con los labios apretados que se grababan en su frente, en sus mejillas, en su pelo, y tardaban una eternidad en deshacerse, besos como túneles, como puentes, como lazos con dos nudos, los besos de mamá, si yo no me voy a morir, repetía, no me voy a morir, y sonreía, pero ella se echó a llorar de todas formas. (...) "

GRANDES, Almudena, "Los Aires difíciles",Tusquets Editores, Barcelona, 2005, p.96

quinta-feira, agosto 10, 2006

...



Serenamente sem tocar nos ecos
Ergue a tua voz
E conduz cada palavra
Pelo estreito caminho.

Vive com a memória exacta
De todos os desastres
Aos deuses não perdoes os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros.

No dia puro procura um rosto puro
Um rosto voluntário que apesar
Do tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem líquida do mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "O tempo dividido", Caminho, Lisboa, 2005, p.47
(Foto, minha)

quarta-feira, agosto 09, 2006

As flores


Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "No Tempo Dividido", Caminho, Lisboa, 2005, p.39

(Foto, minha)

terça-feira, agosto 08, 2006

No topo do mundo


Viajo até ao topo do mundo. Lá onde o silêncio reina e onde a vida ganha a sua verdadeira dimensão.

O sol é um peso que carrego. A solidão a companheira do presente.
Procuro-te e logo surges do nada,
(como que à espera - como que sempre à minha espera ...)
para me tomares as mãos,
(e as tuas, tão frescas ...)
e para me segredares ao ouvido as palavras que a minha boca murmura,
(tão doces as palavras ...)

O fundo do vale cobre-se de neblina, enquanto aqui as pás dos moinhos encetam um movimento lento e incerto que fere o silêncio,
(fecho os olhos ... consigo ouvi-las ... )
e quando as procuro, surpreendo as suas varetas descarnadas que se recortam no céu,
(shhhhhh, shhhhhhh, shhhhhhh, cantam ao vento ...)
e quando te chamo,
te quero,
te procuro,
igualmente te dissipas no meio da neblina que cobre o vale,
(silencioso e triste ...)
definitivamente perdido de mim,
e deste sonho que mascara o real.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Viagem

Erro pela noite. Corro na direcção oposta do desejo.
Contra mim os faróis disparam tiros certeiros que não me atingem.

(E no entanto ...)

... a estrada resume-se a este fundo buraco negro. Queria acordar no fim da viagem ... apressar o retorno e assim encontrar-me(te) no momento exacto.

(E no entanto ainda há pouco ...)

... tocava aquela música ... aquela em que prometemos encontrar-nos num futuro ainda por escrever. Quase te sinto respirar na minha orelha ... quase toco o teu corpo fluido ...

(E no entanto ... ainda há pouco era verdade!)

domingo, agosto 06, 2006

Contra-mão



Voa o carro rumo ao Sul. O pensamento em contra-mão.
O sol tomba para o seu leito. Os raios ferem o "capot" que os devolve intactos.
Falam ao meu lado. As palavras que recuso. O tom errado. Uma outra voz.
Voa a estrada enquanto retardo o pensamento. Enquanto te abraço ... os olhos alongados no asfalto.
Enquanto a mão procura a rosa por colher ...

(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, agosto 04, 2006

Estações do passado

Alguém se lembra ainda de uma estação chamada Cruz da Pedra?
Deveria ser Cruz de Pedra. De onde uma tal denominação? Seja como fôr ... já não existe tal apeadeiro. A Graça morava lá. A minha velha amiga Graça. Por detrás dos leões que se ouviam rugir à noite.

Santa Cruz de Benfica. Vivendas baixas do lado direito da estação (lado direito de quem vai para Sintra). Hoje escondidas atrás de edifícios que ganharam a paisagem. A Manuela morava lá. Morena, Cabelos pelos ombros, escorridos. Óculos de aros de massa escura. Lembro uma festa na sua casa um sábado à tarde. A música demasiado alta. Gente deitada pelo chão. Outros dançando.

Reboleira. Ponto de passagem sem paragem. Gare alta que diferia das restantes. A Graça mais uma vez ligada a ela. Também o D. – e um gafanhoto verde, musculado, colocado na minha mão desprevenida. Ainda o Z. A., o namorado das tardes longas. Louro. Envolvente. Aroma a Tabac. A sua língua atraída pelas minhas orelhas.

Queluz. Rosita. Chamava-se Rosita a minha prima. Bastante surda. Bastante medrosa. Um pavor das trovoadas que a fazia enfiar-se debaixo da cama. Infindáveis tardes de domingo passadas em conversas que nunca mais acabavam.

Rio-de-Mouro. N., chamava-se. O namorado. Havia também um grupo - de amigos que nunca chegaram a sê-lo. Tardes quentes de Verão sentada num muro à sombra das árvores. E uma festa memorável. O maior bonitão da festa todinho para mim. Ainda estou para saber como. E ainda a Laurinda. Guarda da estação. Algarvia, baixa e morena. Um sorriso sempre presente.

Mercês. O meu monte. Hoje coberto de prédios. Irreconhecível. Indetectável. Aquele onde um dia disse que queria ser enterrada. Quinze anos e já a morte por perto ... O velho muro da estação que já não existe. Lugar de longas conversas. Perdido e reeencontrado há pouco tempo numa pequena estação a caminho de Coimbra.

Algueirão. Mais amigos. O J. O namorado. O L. O amigo especial. O pai. A obrigação dos fins de semana. O café do Fortuna e os chocolates tirados à sorte de uma velha caixa que se perfurava.

Sintra. O Castelo a que nunca fui. A Praia das Maçãs no fim de um percurso de eléctrico. Estrada antiga e frondosa. A esplanada sobre a praia. As ondas, violentas. A piscina de má-memória.

Hoje voltei. Ao eléctrico. À Praia das Maçãs. O mesmo percurso frondoso, perturbado pelo intenso chiar das rodas nos carris. Colares e aquele café de esquina junto a um ribeiro - paragem obrigatória em fins de tarde. Monserrate a despontar luminoso entre o arvoredo. A paisagem, exuberante. As ondas, poderosas. Da esplanada resta o local. Hoje um restaurante.

Hoje voltei. A Sintra. A uma recordação e a um amigo.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Encontro


Rodeou-o com passos leves, pedindo licença.
O corpo ali tão perto ...
O coração a saltar do peito ...
Amo-te, sussurou na sua voz mais doce.
Amo-te tanto, soluçou a voz dela num murmúrio.

Os olhos não se buscaram. O medo de não resistir - tão forte.
As mãos não se tocaram. O medo de não conseguirem mais soltar-se.

E a água a correr tão fresca, e eles sem a sentirem ... sentindo-se ...
E o tempo a correr tão rápido ... e eles querendo-o suspenso ...
E a vida a passar ... e o tempo a passar ...
E ele já longe ... e ela tão longe ...
e o amor tão perto ... tão perto ...

(Pintura de R.Magritte, Os Amantes - Imagens, Google)

Palimpsesto

Este quadro acompanhou-me toda a vida. Desde criança ainda na casa de meu pai. Um dia, antes de voltar a casar pela terceira vez, entendeu dar-mo.
É um óleo sobre tela de um autor desconhecido. (Uma pintora, por sinal). Preside na minha sala como antes presidia na dele.
Uma antiga moldura dourada enquadra uma paisagem campestre. Os tons são de Outono. As duas árvores que se vêem de cada lado parecem agitadas sob o efeito do vento - as folhas alvoroçadas pela aragem.
No caminho pincelado de terra, alguém caminha. De costas para mim, parece-me um vulto de mulher. Difusa como a paisagem que a rodeia.
À sua esquerda uma velha casa é guardiã. Vejo-a de lado, perfurada de quatro janelas - buracos negros que não permitem enxergar a vida lá dentro.
O telhado de duas águas é inclinado, feito de pinceladas largas que fazem acreditar ser de colmo.
No primeiro andar, uma varanda. Vazia. Composta de traços leves. Pelo contrário, largas e desencontradas são as pinceladas que mostram o caminho.
O céu é de trovoada, pesado e denso, naquela côr amarelada e doentia que nos lembra a chuva que há-de cair.

Óleo sobre tela.
Uma paisagem bucólica que me transporta para longe. Que me permite imaginar para além dela.
Entro naquela casa pela porta da frente que não vejo daqui. De madeira, feita de ripas largas e já partidas. O chão também de madeira range sob os meus pés. Está vazia. As janelas - pequenos buracos rasgados a escopro - pouco deixam entrar da luz baixa do entardecer. Nos seus tímidos raios descubro uma réstea brilhante de pó que dança no ar à minha passagem.
Subo a escada que se encontra ao fundo. Parece suspensa - presa de um equilíbrio incerto. O corrimão frouxo e os degraus comidos pelo tempo. O silêncio cortado pelos gemidos dos meus passos.
No andar de cima o panorama é idêntico. Apenas um pouco mais de luz que passa pela grande janela de portadas abertas. Dali avista-se o rio ao longe. Imagino-o de águas turvas e turbulentas a condizer com o Outono.
Nem me atrevo a pisar a varanda - a protecção inexistente e o chão completamente coberto de folhas secas e poeirentas.
Fico cá dentro, a meio-termo, ouvindo o vento que despenteia as folhas das árvores. Olhando o rio ao longe e tentando perceber o seu correr voluptuoso através das pedras do seu leito.
Vou mais longe. Olho o céu carregado de nuvens amareladas de chuva e imagino alguém aqui sentado nesta varanda - a solidão do caminho entranhada na casa e na vida.
O ribombar de um trovão afasta-me da janela - projecta-me para fora do quadro.
De novo apenas uma velha paisagem bucólica.
De novo, apenas e só, um óleo sobre tela.
Apenas um óleo sobre tela ...

(Palimpsesto - do Gr. palimpsestos - Manuscrito em pergaminho, raspado por copistas da Idade Média, que nele fizeram uma nova escrita. Quimicamente, tem sido possível fazer reaparecer os caracteres primitivos)

quarta-feira, agosto 02, 2006

Reflex(ã)o

Olho-me
distorcida e vaga,
naquele caco de vidro
que por mim passa.
Inerte, eu.
Ele vivo,
(curioso),
seguindo-me,
puxando cada uma das minhas
pontas
e inventando-me de novo.

Eu,
encerrada naquele caco de espelho.
Mantida contra vontade
entre farpas e barreiras.
As saídas cortadas
e a vida à espera.
Camisa de forças
que inventei
e que estupidamente visto.

Apenas o sonho escapou.
Disfarçado de
outra que não eu,
todas as noites me chama
para a Vida.

terça-feira, agosto 01, 2006

Na minha infância ...


Texto retirado