domingo, abril 30, 2006

E mais?

... e mais?
o que queres saber mais? ... tanto que já falei. agora és tu.
amas-me? ainda me amas desde há bocadinho?
amor, isso não se pergunta.
então porquê?
porque já sabes que não te amo como há bocado. amo-te mais um pouco. amo-te mais ainda. hummmmm tão bom saber isso! tão bom termo-nos encontrado ... quando já desesperava de encontrar alguém. quando a vida já não fazia sentido. deste-me um sentido à vida, sabias?
e tu à minha. já não saberia viver sem ti. sem as tuas palavras. a tua ternura. a tua voz. os teus beijos.
hummmmmm ... e mais?

(Excerto de de algo que escrevo e a que chamo "livro" que um dia gostaria de ver publicado)

...

"As coisas têm sempre um ritmo próprio. Não vale a pena tentar acelerá-lo ou travá-lo. Temos de adaptar-nos como se fôssemos um corpo que se move à mercê das ondas. Ser dóceis aos embates do mundo não significa sermos submissos. Saber dobrar-nos quando sopram maus ventos, indica apenas a decisão de sobreviver."

JANER, Maria de La Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, p. 146

sábado, abril 29, 2006

...

"O período da nossa vida a que se costuma dar o nome genérico de meia-idade é, para todos nós, um período mais ou menos crítico, durante o qual somos convidados ou obrigados a prepararmo-nos para descobrir o nosso verdadeiro nome. Aquele que existe - talvez soterrado - atrás de todos os outros que temos.
Por volta dos 40, 50 anos - um pouco antes ou um pouco depois, dependendo do trabalho que já tivermos feito -, temos de decidir o que queremos fazer da segunda metade da nossa vida.
A opção mais fácil é virar as costas a nós mesmos e deixar que sejam os acontecimentos exteriores a orientar-nos. (...) A outra opção - e essa exige todo um empenhamento - que, nessse período a meio da vida, nos é proposta é a de ousarmos participar conscientemente no nascimento de nós próprios. O que implica uma reavaliação profunda de estruturas em que estamos integrados, atitudes e comportamentos a que nos habituámos e que, apenas por isso, nos dão uma ilusão de segurança e conforto.

COSTA FÉLIX, Maria José, "Outra Porta", excerto de artigo em XIS, suplemento do Público de 29/04/2006

sexta-feira, abril 28, 2006

...

"Há coisas que acontecem e não se consegue dizer como aconteceram, nem porquê nem como, que não se espera que venham a acontecer outra vez, das quais se tem muito medo porque levam ao fundo tudo por onde passam, terramotos. E no entanto sem catástrofe não se consegue, fica-se a meio, sabe a pouco."

PAIXÃO, Pedro, "Nos teus braços morreríamos", Cotovia, Lisboa, 2000, p.127

quinta-feira, abril 27, 2006

Espera-me

Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me:
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.

BREYNER, Sophia de Mello, "Mar", Caminho, Lisboa, 2001, p.48

quarta-feira, abril 26, 2006

...


Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigava a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora, é apenas como sendo os únicos calendários que guardámos dos dias passados, e com a esperança de ver reflectidas nas suas páginas as casas e os lagos que já não existem.

PROUST, Marcel, "O prazer da leitura", Editorial Teorema, Lisboa, 1997, p.5/6

(Foto em www.trekearth.com)

terça-feira, abril 25, 2006

25 de Abril


Aljube, 12-VIII-1939

Queridos Pais:
Sonhei que tinha sido posto em liberdade. Um seco: "Prepare as suas coisas" cortara de repente a monótona tranquilidade da Enfermaria e a maleta com a roupa era-me entregue, acompanhada de supérflua recomendação, regulamentar por certo, pois inúmeras vezes a tinha ouvido fazer, a tanto, tantos, que já nem conto tinham: "Agora despache-se depressa. Não demore, sim?" Foi como se uma chicotada me tivesse vergastado a sensibilidade, adaptada já ao morno ambiente, em que a curva das sensações melhor qualificada seria de recta das sensações. Seria lá possível? Voltar a ter família; voltar a viver momentos de tranquilidade entre os nossos; encher os pulmões à vontade de ar e luz; poder caminhar livremente, entre a balbúrdia azafamada dos passeios; voltar a encontrar seres humanos; poder concentrar a atenção, a um canto do escritório, em leituras agradáveis? Seria lá possível?
O mais depressa que pude, preparei as minhas coisas e, depois das indispensáveis formalidades, encontrei-me na rua. Não sabia o que fazer: se deitar a fugir, se apanhar um táxi ou meter-me num eléctrico. Depois de me apalpar bem como que a certificar-me de que era o próprio em carne e osso, resolvi que um táxi fosse o condutor da minha pessoa até penates, tendo pedido ao chauffeur o favor de rápido andamento.
... Nesta altura, um solavanco mais forte do carro fez-me acordar. Esfreguei com as mãos os olhos estremunhados e um reconfortante espreguiçar pôs ponto final na questão. Tinha sido sonho, afinal.
Levantei-me, lavei-me e aqui estou a escrever-vos este postal, chegado já ao fim do espaço em branco.
Então como vão de saúde? Eu, melhor.
Beijos para todos de seu filho muito amigo
José

(Se o meu tio tivesse sobrevivido à prisão, teria podido festejar connosco o 25 de Abril de 1974.
Preso político durante uns poucos meses, não resistiu aos maus tratos a que foi sujeito, e à doença que o levou à morte. Esta é a trancrição de um dos inúmeros postais que escreveu aos meus avós - e das poucas recordações que dele possuo. )

segunda-feira, abril 24, 2006

Liberdade

Sobre esta página escrevo
Teu nome que no peito trago escrito
Laranja verde limão
Amargo e doce o teu nome

Sobre esta página escrevo
O teu nome de muitos nomes feito
Água e fogo lenha vento
Primavera pátria exílio

Teu nome onde exilado habito e canto
Mais do que nome: navio
Onde já fui marinheiro
Naufragado no teu nome

Sobre esta página escrevo
O teu nome: tempestade.
E mais do que nome: sangue
Amor e morte. Navio

Esta chama ateada no meu peito
Por quem morro por quem vivo
Este nome rosa e cardo
Por quem livre sou cativo.

Sobre esta página escrevo
O teu nome: liberdade.

ALEGRE, Manuel, "A praça da canção", Centelha, Coimbra, p. 149/150

domingo, abril 23, 2006

Dia Mundial do Livro


Os livros. Não sei viver sem eles. Presença constante na minha vida desde sempre.
O gosto pela leitura, fomentaram-no deste criança.
Em casa do meu pai, na pequena estante em frente da cama, alinhavam-se diversos livros de histórias. Ainda desse tempo possuo "A menina do Mar" de Sophia de Mello Breyner e um livro em francês que fazia as minhas delícias. "Noël" era o título, e apesar de não ler em francês encantavam-me as belas imagens de um Natal de sonho.
Em casa da minha mãe os livros estavam arrumados, vá-se lá saber porquê, nas prateleiras da dispensa. Eram um mundo à minha espera. Longas tardes de leitura passei estendida no sofá a ler "A morgadinha dos Canaviais", "As pupilas do senhor reitor" ou o "Amor de perdição" que me levou às lágrimas, e muitos mais que ía sucessivamente desenterrando do fundo das prateleiras.
Ninguém me dizia o que ler. Ninguém me impedia de ler fosse o que fosse.
Mais tarde, já na adolescência, entrei no mundo da poesia. Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Carlos de Oliveira ou Pablo Neruda. Lia. Lia tudo avidamente.
De Manuel Alegre comprei "A praça da Canção" na Livraria Portugal na Rua do Carmo, a minha livraria de eleição. Disfarçados a um canto, podíamos sempre encontrar alguns dos livros proibidos na época, e era uma emoção poder levá-los para casa para os ler às escondidas.
Foi lá também que adquiri alguns livros de Engels, Lenine, Mao-Tsé-Tung (ou Mao-Zedong, como li anos mais tarde), pequenas luzes naqueles anos de escuridão.
Nas viagens de comboio que fazia diariamente as páginas desfiavam-se na razão directa da velocidade a que me deslocava.
Nos cafés que frequentei ao longo da vida sempre há-de permanecer a recordação de uma certa mesa que preferia, e em que me sentava a ler e a escrver durante tardes a fio.
Nos jardins em que passeava, há sempre um banco que me recorda tempos antigos em que lá me sentei com um livro nas mãos, aproveitando o silêncio e o sol.
Livros e mais livros.
São imensos já, os que enchem as minhas prateleiras. Amontoam-se já, com alguma desarrumação, que eu confesso, até gosto.
Tentei em tempos organizar uma base de dados mas é um trabalho sempre incompleto. Todos os meses há mais para acrescentar.
O meu sonho foi sempre ter uma sala só para mim com os meus livros. Uma secretária, um cadeirão e um bom candeeiro. O silêncio completa o quadro de sonho.
O meu gosto é variado. Romance, Poesia, Temas de História, Crónica, ... e Enciclopédias e Dicionários. (podem rir-se ... cada um com a sua mania!!!)
Hoje é Dia Mundial do Livro. Comprei o jornal como em todos os domingos e, espantem-se ... nem uma referência à data.
No jornal Público, entre as páginas 3 a 6, pormenoriza-se longamente a conquista do 21º título do futebol clube do Porto. Quem sabe eram essas as páginas antes pensadas para falar deste dia! Gostaria de pensar que pelo menos tinham pensado em falar do assunto.
É pena! Preferiram outro tema.
Para mim, hoje é Dia Mundial do Livro. Um dia que eu comemoro.

(Foto da capa de um livro da minha infância)

sábado, abril 22, 2006

Mesa-Redonda: Webblogs: o autor/Editor

Ontem realizou-se em Lisboa no Palácio Galveias, uma mesa-redonda cujo tema de fundo incidia sobre os blogues.
A assistência composta de cerca de 25/30 pessoas (estou a calcular por alto pois verdadeiramente não as contei) não teve uma participação activa, tendo em conta que a maioria dos presentes provavelmente era autor de um ou mais blogues, e por isso também com opiniões sobre os temas versados.

Na mesa estavam seis pessoas, todas elas também autoras ou co-autoras de blogues.

Francisco José Viegas (http://origemdasespecies.blogspot.com)
Catarina Campos (http://100nada.weblog.com.pt e http://devagares.weblog.com.pt)
João Villalobos (http://prazeresminusculos.blogspot.com)
Rui Branco (http://adufe.weblog.com.pt)
Ana Cláudia Vicente (http://quatrocaminhos.blogspot.com)
Isabel Goulão - Moderadora (http://misspearls.blogspot.com)

Após as apresentações feitas pela Moderadora, saltou a primeira questão.

Porquê criar um Blog?

- para nos divertirmos
- porque temos algo para dizer
- porque queremos que nos leiam
- porque antes já escrevíamos e o blog passa a ser o depositário das nossas escritas.

Haverá limites para o que publicamos?

- escrevemos tudo o que pensamos?
- somos livres para publicar o que queremos dizer?
- exercemos algum tipo de auto-censura?
- escrevemos para alguém ou a pensar em alguém?

Qual o tempo que medeia entre a escrita e a postagem?

- utilizamos sempre o rascunho?
- escrevemos directamente no computador e editamos de imediato sem corrigir?
- revemos 5 ou 6 vezes para corrigir erros e gralhas?
- escrevemos primeiro em papel?
- aguardamos vários dias antes de publicar a postagem?

E sobre a postagem?

- é diária?
- é variável?
- postamos várias vezes ao dia?

E sobre quem nos lê?

- só nos lê quem nós lemos também?
- existe alguma relação directa entre quem nós "linkamos" e quem nos visita?
- Os que comentam de forma tão extensa que quase se forma um segundo "post"
- Os que entram em diálogo nos comentários, saindo por vezes totalmente do contexto daquilo que se postou.

De tudo o que foi dito retirei o seguinte:

- Temos um blog porque nos diverte,

- porque queremos ser lidos,

- porque aplaca o nosso ego,

- porque melhora a nossa auto-estima.

- o autor anónimo, o que não é figura pública, até pode publicar o que lhe apetece, mas normalmente não o faz, sempre limitado por alguma coisa, sempre sabendo que quem o vai ler pode criticá-lo.

- a figura pública tem uma maior responsabilidade ainda, e penso que se auto-censura permanentemente.

- Há quem publique de imediato após a escrita, mas nesses casos dá-se azo a um texto com mais erros, menos trabalhado, o que é sempre de lamentar.

- a regularidade da postagem é variável, mas quando iniciamos um blog, torna-se quase uma obrigação editar. Porque sabemos que nos lêem e estão à espera. Porque para nós próprios sentimos uma espécie de responsabilidade e até uma premência em escrever.

- Existe uma relação entre os nossos links e quem nos lê. Ao fim e ao cabo é como na vida real: se não telefonamos aos amigos, eles também não nos telefonam (não é o meu caso!!) . Também aqui na blogosfera existe uma relação de contrapartida. Visita-me e eu visitar-te-ei. "Linka-me" e eu "linkar-te-ei".

- A blogosfera trouxe, para nós que aqui circulamos, uma nova forma de inter-agir: a "rede".

- Criou-se um novo tipo de amigos. Aqueles que nós escolhemos. Que nos lêem e a quem nós visitamos.

- Por vezes este círculo de amigos projecta-se para fora deste meio virtual, conseguindo-se assim novos conhecimentos (às vezes desilusões também).

A minha conclusão foi:

Gostei do Encontro. Espero que se façam mais, dado que este mundo da blogosfera já é tão vasto e com tanto peso, que merece que nos debrucemos sobre ele.
Para o próximo, aviso aqui neste cantinho, para que possam também comparecer se fôr essa a vossa vontade.

Para responder a um desafio


Este é desafio que a Wind me propôs. Apenas a colocação deste dístico que dá cara por uma campanha. Meritória. Importante.
Daí a minha adesão.
Daí o meu desafio a outras duas pessoas:
Luís Manuel do HELIASTA e Travessias do TRAVESSA LARGA.

sexta-feira, abril 21, 2006

Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

COUTO, Mia, "Raiz de Orvalho e outros poemas", Caminho, Lisboa, 1999, p.42

quinta-feira, abril 20, 2006

Paragem

Quando a manhã
entardece, doce,
suspende-se o tempo
para que a paixão renasça!

quarta-feira, abril 19, 2006

O silêncio


O silêncio é preciso.
Estar só, e dialogar comigo própria é fundamental.
Para pensar.
Escrever.
Ler.
Repousar.
Sonhar.
Chorar.
O silêncio é preciso.
Aquele que construimos no meio do bulício da cidade.
Aquele que envolve o turbilhão dos meus pensamentos.
Aquele que nasce do prazer de estar só comigo.
Caminhando pelas ruas, mal olho os que passam por mim apressados. Resvalam por mim - quase sombras.
O barulho desta cidade que desperta esbate-se nesta redoma que me protege do mundo.
O silêncio é preciso.
Quando passeio junto ao rio ou à beira-mar, abafo os gritos das crianças que ferem o meu recolhimento. Apenas o marulhar das águas penetra em mim - música de fundo que desejo.
Aqui neste café onde escrevo, as vozes sobrepõem-se umas às outras; há o barulho das chávenas, da máquina do café e de uma televisão que incessantemente toca uma música que não quero ouvir.
Eu escrevo no silêncio que consigo erguer à minha volta. Protector. Envolvente.
O silêncio é preciso.

(Foto em www.trekearth.com)

terça-feira, abril 18, 2006

Hoje sonhei ...

... que acordava junto a ti!
Sorri de imediato. Era dia de aniversário. O teu.
Respiravas pausadamente a meu lado, a mão abandonada sobre o meu corpo.
Virei-me com cuidado para ti e deixei-me ficar a olhar-te. As pálpebras cerradas ocultavam o olhar. O rosto estava sereno. O cabelo revolto. Gostei de sentir a tua respiração junto a mim.
Levemente passei um dedo pelo teu rosto, contornando-o. Desenhando-o. Beijei-te os lábios.
Estremeceste ao acordar e quando abriste os olhos já sorrias.
(só podes sorrir comigo ao teu lado amor!)
E foi a olhar os teus olhos de água que te murmurei: parabéns, meu amor!

segunda-feira, abril 17, 2006

...

Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de bruma
pelo direito de seguir de mãos dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor
Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sozinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

FILIPE, Daniel, "A invenção do amor e outros poemas", Editorial Presença, Lisboa, pp.62/3

domingo, abril 16, 2006

Páscoa


Não sei ao certo que idade têm estas memórias, mas penso que se inscrevem nos meus primeiros 7 ou 8 anos de vida.
Manhã de Páscoa. Bem cedo a casa era inundada pelo aroma do Folar acabado de cozer. Em cima da mesa ainda se perfilava um grande tabuleiro onde enfileirados, aguardavam cinco ou seis folares, todos bem decorados, a hora de irem para o forno.
Era a minha avó a obreira desta azáfama. Já no dia anterior a tinha visto de volta da farinha e do fermento, amassando vigorosamente o que hoje se transformaria neste manjar delicioso. Eu, cirandava à sua volta interessada, não em como se faziam, mas no detalhe final - o "passarinho" que colocava no topo do folar da Páscoa.
Ela chamava-lhe "passarinho". Depois de feita a bola e de colocados os ovos - dois ou quatro - passava umas tiras de massa em cruz, e na sua intercepção colocava o dito "passarinho" - uma tira fina de massa à qual dava um pequeno nó e que depois espetava com um palito para que não se soltasse, arrebitando-lhe as pontas. Depois de pincelados com ovo, lá ficavam todos bonitos e brilhantes, aguardando em fila a fase final - o forno.
Esta é a minha herança de Páscoas passadas. Esta, e as pequenas amêndoas com licor, compradas pela minha avó na Pastelaria Nacional, miniaturas perfeitas de ervilhas, favas, minúsculos bebés, estes últimos os que eu mais gostava. Não havia Páscoa que a minha avó não as comprasse para mim.
Hoje, quando passo nas pastelarias é para elas que o meu olhar foge, é dela que me recordo em cada ano.
Os folares de hoje - aqueles que se compram nas lojas - nada têm a ver com os da minha infância. Apenas se lhes assemelham no gosto a erva-doce. Os folares da minha avó eram pesados, com uma massa consistente que se esfarelava na boca, nada como estes que são leves e parecidos com qualquer bolo.
A primeira vez que a minha mãe os fez esqueceu-se de lhes pôr açucar e recordo a sua atrapalhação quando se apercebeu disso. Tínhamos que os polvilhar sempre que comíamos uma fatia.
Eu ainda não me atrevi a fazê-los. Por comodismo, e porque acho que certas coisas têm uma "marca" - algo que definitivamente as liga às pessoas que as executavam. Fazê-las é sempre uma imitação barata, é descontextualizá-las, é apoderar-me de um segredo que tem dono. É querer recuperar uma coisa que teve a sua época. Muitas vezes é estragar a recordação antiga.
Hoje, domingo de Páscoa, é destas coisas doces que me lembro. Apenas delas e das mãos que lhes davam forma.
Generosa era o seu nome. Hoje acompanha-me. Se calhar sorrindo por eu ainda me lembrar.
(Foto em www.trekearth.com)

sábado, abril 15, 2006

Folhas ao vento


Hoje queria ser folha e deixar-me levar pelo vento. Abandonar-me à sua vontade e pairar acima da Vida, acima da tristeza. Deixar-me levar nas suas asas e não pensar em nada, nada sentir. Ser folha apenas . Ora poisaria levemente no chão, ora me elevaria nos ares à medida da sua vontade. Os pássaros cruzariam o meu caminho, roçando-me com as suas asas. Olharia a cidade lá do alto - minúscula e iluminada - povoada de pequenas formigas em incessantes percursos. A vida lá em baixo reduzida a uma miniatura, enquanto eu estaria mais perto do sol. Mais perto do céu. Enquadrada no azul e rodeada destas nuvens de algodão.
Arrastada por uma corrente mais forte, percorreria a terra, vendo o mundo mas não fazendo parte dele.
Nestes dias de vento e já desde muito jovem faço sempre a mesma coisa. Caminhando contra o vento, fecho os olhos e percorro alguns metros assim, embalada no sonho de ser folha. Quando posso, abro os braços, jogo a cabeça para trás e sinto aquela emoção de criança voltar, deixando-me voar na corrente que me arrasta.
Hoje gostaria de novo de ser folha. Levada pelo vento. Retirada à vida. Acima da tristeza e especialmente longe de mim.
(Foto em www.trekearth.com)

sexta-feira, abril 14, 2006

Nevoeiro

Hoje a manhã acordou enevoada. Não aquele nevoeiro denso e esbranquiçado que tudo encobre e mascara, mas aquela névoa leve e translúcida apenas, que como cortina de tule, atenua o horizonte.
O nevoeiro associo-o ao esquecimento - à turvação da memória.
O nevoeiro, associo-o também aqueles dias de Verão na praia, cada vez mais frequentes em cada ano que passa, em que um dia de sol radioso se transforma lentamente - subrepticiamente - no seu oposto. E como o esquecimento, o nevoeiro quando chega é de mansinho, ocultando lentamente as formas, até deixar delas apenas o que conseguimos ainda imaginar.
Têm uma certa beleza esses dias de Verão na praia. Acima de nós o Sol ainda brilha. O céu ainda é azul, mas do mar deixamos de ver primeiro a linha do horizonte e, sempre avançando, avançando, aquela névoa quase sólida acaba por tudo cobrir. Primeiro é uma mancha branca rasteira que depois se avoluma até tapar o céu e o Sol. E aquela sensação de frio que se apodera de nós. Um arrepio que se estende a todo o corpo, apesar do calor de momentos atrás.
Depois ... se tivermos paciência para esperar, o Sol volta a aquecer, o céu fica azul de novo e o mar, visível e luminoso.
Estranho é ainda aquele nevoeiro que se estende por "bancos", zonas de ocultação que se intercalam com zonas de visibilidade. Aqui no Tejo, em dias assim, é frequente passar-se a ponte em direcção a Lisboa e nada se descortinar abaixo dela, enquanto sobre nós o céu azul resplandece e o Sol brilha. Quase a chegar a Lisboa, abrem-se por vezes janelas nessa brancura densa que permitem ver bocados de rio ou pequenas partes da cidade que o Sol ilumina.
Fenómenos estranhos estes, que a natureza nos oferece. Belos, se tivermos olhos para ver e sensibilidade para descobrir a beleza oculta das coisas.
O esquecimento surge também de mansinho, ocultando fases antigas da nossa vida ou incidindo aleatoriamente sobre certos períodos. Inconscientemente esquecemos coisas menos boas - protegendo-nos - ou talvez uma forma de passarmos por um crivo os momentos que queremos esquecer.
Depois na velhice, acontece aquele facto curioso de lembrarmos em pormenor momentos da nossa infância que antes havíamos esquecido, e esquecermos outros muito mais recentes. Tal como o nevoeiro, o esquecimento tapa e destapa o amontoado de memórias, até que no final nos conduz a um pequeno círculo inundado pela luz primordial.

quinta-feira, abril 13, 2006

Inicial

O mar azul e branco e as luzidias
Pedras - O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, "Mar", Caminho, 2001, p.109

quarta-feira, abril 12, 2006

Viagem


O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
de minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos.

COUTO, Mia, "Raiz de orvalho e Outros Poemas", Caminho, Lisboa, 1999, p.70

(Foto minha)

(Música de Fausto - "Num sonho de águas claras")

terça-feira, abril 11, 2006

...

Amar-te
é sempre a melhor de todas as travessias.
De cada margem,
ficam as memórias e os futuros
e no leito
que assim cavamos,
renasço sempre dum abismo,
trazendo do fundo,
algo de fantástico e libertador.

José C.
(Meu querido amigo, e autor de um livro que um dia espero ainda ver publicado)

segunda-feira, abril 10, 2006

Grito calado


Está belo o dia! O Sol brilha, deslumbrante ...
... mas a mim, só me apetece gritar!
O céu está de um azul intenso como naqueles dias de Verão que eu tanto gosto e desejo ..
... mas a mim, só me apetece gritar!
Deixo-me aquecer pelos raios deste Sol que tanto amo, absorver esta energia de que tanto preciso ..
... mas hoje, a mim só me apetece gritar!
É segunda-feira e como vocês já sabem, é um dia que eu gosto ao contrário da maioria das pessoas
... mas apesar disso, a mim só me apetece gritar!
Ontem escrevi um texto com a intenção de aqui o colocar hoje. Um texto escrito ao som do piano. Um texto que me fez sonhar. Mas hoje ...
... hoje só me apetece gritar!
e assim não posso colocá-lo aqui hoje, porque hoje ele não tem nada a ver comigo e com o que eu sinto. Hoje apetece-me ouvir a violência de um solo de bateria, ou o som de um intenso desafio de saxofone, porque hoje ...
... hoje só me apetece gritar!
Por isso desculpem-me os que me lêem. Habituados a embalar-se em belas palavras que tento escolher, envoltos numa aura de paz, por vezes também em profunda tristeza, mas tudo muito suave, muito doce ... muito como eu.
Desculpem-me porque o meu tom hoje é outro ...
hoje ... hoje só me apetece gritar!

(Foto em www.trekearth.com)

domingo, abril 09, 2006

...

"Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos."

CALVINO, Italo, ""As cidades invisíveis", Teorema, Lisboa, 2003, p.31

sábado, abril 08, 2006

Parece que estou sempre a falar do mesmo...

Há um prazer especial em viver cada manhã.
Como se de outra oportunidade se beneficiasse.
Como se de um recomeço se tratasse.
Em cada dia ...
Como se uma nova etapa se pudesse vir a desenrolar.
Como se se pudesse mudar de vida.
Em cada novo dia...
É este o encanto das manhãs. Um convite em cada dia Que se aceita ou se recusa.
Que se ignora, na maioria das vezes.
Recordo um dos meus filmes de culto - "All that Jazz". O protagonista, num permanente diálogo com a Morte, inicia cada novo dia de dupla forma: enfrentando a sua morte eminente com um sorriso e encetando em cada manhã um novo diálogo com a Vida. "It's show time!!", repetia em frente ao espelho, como se a vida fosse um permanente espectáculo. Em cada dia um novo desafio.
O que nos faz correr todos os dias? O que nos faz viver de um modo leviano e breve os pequenos grandes momentos das nossas vidas? O que nos faz desejar sempre mais e mais, enquanto o tempo passa por nós, cada vez mais rápido, fazendo-nos desconfiar até do bom funcionamento dos relógios?
Ainda ontem era Natal. Ainda ontem passeava com a minha mãe pelas rua. Ainda ontem tinha 40 anos.
Ontem. E do ontem dá-se um salto para a Morte - tão mais perto em cada dia que passa.
E tanta coisa por fazer ... e tanto sonho por realizar ainda ...
Ainda me falta plantar uma árvore. E a Morte à espreita.
Ainda me falta escrever um livro. E a Morte à espreita.
Ainda me falta ... E a Morte à espreita.
"It's show time!!!!!"

sexta-feira, abril 07, 2006

...


"Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê."

PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, 2000, p.247

(Foto minha)

(Como podem ver no link abaixo do perfil, tenho casa nova. Espreitem. São bem vindos)

quinta-feira, abril 06, 2006

Vento


As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras,

OLIVEIRA, Carlos de, "Quinze Poetas Portugueses do século XX", Assírio & Alvim, 2004, p.192

(Foto em www.trekearth.com)

quarta-feira, abril 05, 2006

Ainda os amigos...


Lembro-me bem de ti. Do teu rosto redondo. Do teu cabelo alourado, escorrido e curto, a acompanhar a linha do rosto. Lembro-me bem dos teus olhos - doces e expressivos. E tu lembrar-te-às de mim ainda?
Graça, era o teu nome. Fomos amigas durante anos. Colegas de turma primeiro, e depois amigas inseparáveis. Adolescentes ainda. Partilhávamos o amor pela vida, pelas novas experiências, pela música. Nas aulas sentávamo-nos lado a lado, e nos intervalos, percorríamos o pátio conversando e fumando o nosso cigarro, muitas vezes afastadas das outras colegas, em conversas infindáveis.
Fora da escola, frequentava a tua casa, íamos ao cinema, passeávamos. Dos teus namorados ouvia longas histórias (tu eras mais dada às novas experiências) e dos meus amores contava-te também amíude. Lembro uma noite em casa de J.A., depois meu namorado, em que sentados no chão ouvimos música até às tantas. Tu nessa altura namoravas com o D. e o romance andava no ar. Afastados de nós, que ainda estávamos a tactear-nos, vocês estavam num mundo só vosso, completamente alheios ao que vos rodeava. Lembro-me da música que ouvimos nessa noite: Rod Stewart - Maggie Mae, um tema que me acompanha até hoje. Devia estar na moda nessa altura.
Mais tarde integrámos um grupo de esquerda que actuava no meio estudantil, e distribuíamos jornais na escola - uma forma de chamar a atenção para os problemas que o país, e a educação em particular, atravessava. Eram tardes de discussão, leituras e análises de livros, distribuição de panfletos e autocríticas. O nosso mundo alargava-se, tornava-se mais abrangente. Já não eram só conversas de adolescentes, eram outros os temas que abordávamos.
Um dia mais tarde, decidi afastar-me desse grupo. Não porque tivesse mudado de lado, não porque não concordasse com as actividades que desempenhávamos. Hoje já nem me lembro porquê. Namorava com aquele que veio a ser mais tarde meu marido, e não sei se a minha decisão teve a ver com alguma opinião adversa da parte dele.
Quando te disse, não supus que o preço a pagar fosse o teu afastamento completo. A amizade que construíramos não valera de nada. Passámos de uma relação de proximidade absoluta para uma de total indiferença. Nem uma palavra me dirigias quando passavas a meu lado. Nem um sorriso.
Entretanto casaste e eu também. Mudámos de casa, mudámos de vida. Nunca mais soube nada de ti. Nunca me esqueço do dia dos teus anos - uma semana depois dos meus.
Não sei onde moras, o que fazes, se tens filhos, se te lembras de mim.
Nunca conheceste a dimensão do teu acto em mim. Só 25 anos mais tarde voltei a saber o que era ter um amigo. Só 25 anos depois consegui de novo entregar-me a alguém como me havia entregue a ti.
Estas são as palavras que ficaram por dizer. Apesar de tu não as leres. Ficam escritas - registadas aqui. Mais um exorcismo que pratico. Porque ainda hoje as marcas da tua presença estão em mim.

(Foto minha)

terça-feira, abril 04, 2006

Amizade...

Pergunto-me porque estou triste.
Pergunto-me porque este repentino nó na garganta.
O que estava a pensar há momentos para que o semblante se transformasse?
Que estranha mutação esta que se opera ao som de uma música ou pelo aflorar de um determinado pensamento ...
Lembrava-me dos Amigos e de como a amizade é preciosa. Se ao amor temos que ir buscá-lo à beira de um precipício, a amizade, cultivada em terrenos instáveis, tem que ser regada e cuidada para que floresça e medre.
E depois ... há aqueles Amigos – Amigos com A maiúsculo – aqueles com quem não havendo mesmo um contacto diário, permanecem sempre no nosso pensamento. Sabemos que podemos contar com eles e eles connosco, não nos cobrando uma maior ausência de palavras. Amigos a quem nós falamos com intimidade, como se de irmãos se tratasse (às vezes mais que irmãos). Amigos com quem brincamos, a quem aconselhamos quando precisam, a quem ralhamos ou corrigimos quando necessário. Porque ser Amigo não implica apenas abraços e palmadinhas nas costas. Há toda uma responsabilidade implícita. Há a obrigação de dizer e ouvir aquilo que por vezes não gostamos de dizer e ouvir.
Para os Amigos somos o ombro, a mão estendida, o abraço carinhoso. Para os Amigos somos o poço para onde lançam os seus lamentos, somos o eco dos seus sonhos, somos o espelho das suas alegrias. Se não pudermos ser tudo isto, não vale a pena ... não somos verdadeiros Amigos ... somos apenas seus conhecidos, alguém a quem dizemos bom dia com um sorriso de fachada, alguém a quem presenteamos as palavras de conveniência.
Porque para os Amigos, os sorrisos – mesmo que entre lágrimas – são sinceros, e as palavras – mesmo que amargas – sentem-se doces.

segunda-feira, abril 03, 2006

...

"O amor é uma flor delicada, mas é preciso ter a coragem de ir colhê-la à beira de um precipício."

Stendhal, in Do Amor, Editora Pergaminho, citado na Revista Xis, suplemento do Público de 1/04/2006

domingo, abril 02, 2006

O mar


Hoje acordei a pensar em mar. Não concerteza por estar um céu azul, que não está, não concerteza pelo brilho do Sol, que hoje ainda se esconde atrás de uma neblina alta que o torna difuso e estranho.
Acordei a pensar em mar, talvez porque é Abril e o Verão se aproxima a passos largos. Talvez porque a hora, agora alterada, transforma os dias, acrescentando-lhes mais luz, dando-lhes outra dimensão.
E depois, comprei o jornal habitual e naquela crónica fantástica de "Perdidos no Correio" e através das palavras sempre intensas de Paulo Moura, fui transportada também para a visão do mar. O texto de hoje intitula-se "A minha namorada de Verão", e fala de mar, e de Sol, e de sonhos. E fala ainda de momentos fugazes que deixam marcas para toda a vida.

"Está provado que o mar existe nas montanhas. sob as dunas de neve. nas florestas e até no deserto. onde encontrei uma concha."

A água que em tempos antiquíssimos cobriu o planeta, recuou depois, deixando a lembrança da sua presença, assim como o mar, presente em toda a minha vida, deixou também a sua marca na minha memória. Avalanche de sensações que me soterram e das quais não quero vir à superfície.
O mar no Verão e o mar no Inverno. O mar na Primavera e no Outono. Sempre o mesmo e eternamente diferente.
De Verão chegada à praia cedo em cada manhã, é indiscritível aquele respirar de vida, é indescritível o prazer do olhar que se espraia no horizonte, é indescritível a felicidade que me inunda - um prazer quase físico que transborda em mim. Só, caminho pela areia, e a partilha inicia-se. Nela deixo os pés enterrar-se e, quando à beira mar, é a sua frescura que me revigora.
Depois, deitada na areia, preparo-me para uma verdadeira osmose entre o meu corpo e o Sol. Entre o meu espírito e o mar.
No resto do ano, quando o mar é menos azul e as ondas se multiplicam com violência, é ainda de osmose que falo. O sol, ainda que encoberto, é sempre protector e envolvente. O mar, ainda que bravio, sempre um êxtase para o olhar. A maresia, sempre o melhor aroma.
E depois, há os passeios à beira-mar. Pés nus sobre a areia molhada, ou o passeio vagaroso sobre o paredão, de quando em vez salpicada pelas ondas mais atrevidas.

"Prometo encontrar-te na praia que ao pôr-do-sol passeia em nós."

Eu encontro-te. Em mim.

"A praia que levamos às voltas na cabeça. pregada nos olhos. despedaçando-se-nos o coração."

Os passos que ainda não dei e que me esperam. As conversas que ainda não tive e que me aguardam.

"A praia só nossa. fechada na mão. emaranhada nos cabelos. à solta nos raios de sol. Lá estarei."

(Os textos em itálico e entre aspas são excertos da crónica acima citada, publicada hoje, no suplemento Pública, do jornal Público)
(Foto minha)

sábado, abril 01, 2006

Caminhos...


Muitas vezes na vida temos que alinhar a direcção. Os caminhos que havíamos escolhido tornam-se pedregosos e algumas vezes, abruptamente interrompidos, sem bem percebermos porquê. São estes percalços que nos tolhem a marcha que nos obrigam a parar e a pensar qual o melhor caminho alternativo.
Olhamos para um dos lados, e uma bela estrada se abre para nós. O piso bem alinhado, as bermas repletas de flores primaveris. Focamos a distância, mas alguma bruma a meio do caminho nos impede de ver bem, parecendo até que se esbatem as cores e que o piso se esconde atrás de sinuosas curvas e contra-curvas.
Do outro lado, o caminho ramifica-se ainda, deixando perceber de um dos lados, uma estrada nova e bem calcetada e do outro, uma mais pobre, onde a erva rebenta teimosa nos interstícios da calçada. Ao fundo tímidos raios de Sol desenham clareiras luminosas, pequenos charcos de luz.
Tão difícil por vezes escolher o caminho ... O medo de errar, de fazer uma má opção, convida-nos a longos momentos de reflexão, obriga-nos a pesar prós e contras, vezes sem conta.
Parece tão fácil escolher o caminho mais luminoso e melhor delineado, e é para lá que os nossos passos, tornados autónomos, se dirigem para além da nossa vontade.
Atrás de nós, se nos atrevermos a olhar, se tivermos a coragem para fazer o balanço, está um caminho longo em que os dias de Sol se alternaram com os de nevoeiro e sombra. Um caminho em que a erva um dia já foi verde e em que as flores despontavam viçosas. Agora debruçam-se sem vida sobre o pó da estrada.
Voltar para trás não. Apenas olhar em frente. Mas qual dos caminhos seguir? Correr decidida para onde me leva o coração, ou ficar aqui banhada por esta luz baça que mal me aquece, neste tempo suspenso? E até quando?
É sempre difícil dar o primeiro passo - sair da inércia que nos envolve fortemente com seus laços.
É sempre doloroso mudar de rumo!

(Foto minha)