sexta-feira, março 31, 2006

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"Faz muito tempo que não me sinto tão perto de mim, à distância de uma mão."

PAIXÃO, Pedro, "Cala a minha boca com a tua", Livros Cotovia, Lisboa, 2002, p.75

(Foto em www.trekearth.com)

quinta-feira, março 30, 2006

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"Assim os anos passam, e se envelhece, colados à máscara que nos foi imposta, ainda que nós próprios a tenhamos escolhido."

TABUCCHI, António, "Está a fazer-se cada vez mais tarde", Dom Quixote, Lisboa, 2003, p. 154
(Foto em www.trekearth.com)

quarta-feira, março 29, 2006

Canto lamento

Hoje quero as palavras tristes
Que as vogais como lágrimas
Humedeçam o papel
Que as palavras gemam, solucem
Que cada verso seja um lamento
Que rasgue o branco da página,
Branco solidão em que me deito.
E percorrerei os versos
E os trilhos de lágrimas
E direi as palavras e os versos lamento
E assinarei solidão
E datarei a dor que vai dentro.

Encandescente, Colecção Polvo, 2005, p.20

terça-feira, março 28, 2006

Navegando...

Neste mar foste barco
e as ondas a ti se renderam
desfeitas em branca espuma.
Neste mar te perdeste
para enfim te encontrares.

segunda-feira, março 27, 2006

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El teatro es uno de los más expresivos y útiles instrumentos para la edificación de un país y el barómetro que marca su grandeza o su descenso. Un teatro sensible y bien orientado en todas sus ramas, desde la tragedia al vodevil, puede cambiar en pocos años la sensibilidad del pueblo; y un teatro destrozado. donde las pezuñas sustituyen a las alas, puede achabacanar y adormecer a una nación entera.

El teatro es una escuela de llanto y de risa y una tribuna libre donde los hombres pueden poner en evidencia morales viejas o equívocas y explicar con ejemplos vivos normas eternas del corazón y del sentimiento del hombre.

Un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está moribundo; como el teatro que no recoge el latido social, el latido, histórico, el drama de sus gentes y el color genuino de su paisaje y de su espíritu, con risa o con lágrimas, no tiene derecho a llamarse teatro, sino sala de juego o sitio para hacer esa horrible cosa que se llama "matar el tiempo". No me refiero a nadie ni quiero herir a nadie; no hablo de la realidad viva, sino del problema planteado sin solución.

Yo oigo todos los días, queridos amigos, hablar de la crisis del teatro, y siempre pienso que el mal no está delante de nuestros ojos, sino en lo más oscuro de su esencia; no es un mal de flor actual, o sea de obra, sino de profunda raíz, que es, en suma, un mal de organización. Mientras que actores y autores estén en manos de empresas absolutamente comerciales, libres y sin control literario ni estatal de ninguna especie, empresas ayunas de todo criterio y sin garantía de ninguna clase, actores, autores y el teatro entero se hundirá cada día más, sin salvación posible.

Excerto de “ Charla sobre teatro” de Federico García Lorca
em http://www.fut.es/~pic/libros/glorca/gl000000.htm

(A lembrar o Dia Mundial do Teatro)

domingo, março 26, 2006

Escrito ontem

Texto retirado

sábado, março 25, 2006

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Onda a onda
ser a ser
a Vida
vai
e vem
mar
sem fim
de vidas.
LOPES, Teresa Rita Lopes, "Cicatriz", Editorial Presença, Lisboa, 1996, p.63

sexta-feira, março 24, 2006

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"O tempestuoso vento de Outono dispersa o clamor em rajadas alternadas de som e silêncio."

WOOLF, Virginia, "As ondas", Relógio d'Água, Lisboa, p. 75
(Foto minha)
(Música: Mafalda Veiga e Jorge Palma, "Tatuagens")

quinta-feira, março 23, 2006

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"Ela gostava dele como quem gosta muito de chocolates. O gosto ficava-lhe na boca e o prazer encontrado anseia logo por ser repetido."

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.33
(Foto em www.trekearth.com)

quarta-feira, março 22, 2006

Lição sobre a água


Este líquido é água.
Quando pura
É inodora, insipida e incolor.
Reduzida a vapor,
Sob tensão e alta temperatura,
Move os êmbolos das máquinas que, por isso,
Se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
Dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
E ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi nesse líquido que numa noite cálida de Verão,
Sob um luar gomoso e branco de camélia,
Apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
Com um nenúfar na mão.

GEDEÃO, António, “Obra Poética”, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 2001, p.120
(Foto em www.trekearth.com)

(Neste Dia Mundial da Água)

terça-feira, março 21, 2006

Poesia-Orgasmo


De sílabas de letras de fonemas
se faz a escrita. Não se faz um verso.
Tem de correr no corpo dos poemas
o sangue das artérias do universo.

Cada palavra há-de ser um grito.
Um murmúrio um gemido uma erecção
que transporte do humano ao infinito
a dor o fogo a flor a vibração.

A Poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um Poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?

Ouve como quiser seja o que fôr
fazer poemas é escrever amor
e poesia o que tem de ser é orgasmo.

ARY DOS SANTOS, José Carlos, "Obra Poética", Edições Avante, Lisboa, 1994, p.415
Foto em www.olhares.com)

(Hoje é dia Mundial da Poesia e Dia Mundial da Árvore. O meu post pretende lembrar estes dois eventos)

segunda-feira, março 20, 2006

Primavera



ontem
senti a
esperança!

Sobretudo
ontem, quando
bateu
rente
a
liberdade!

(Foto em www.olhares.com)

domingo, março 19, 2006

Ainda os sonhos ...

Gosto de me ver reflectida nas superfícies espelhadas. Vaidade de mulher ou não, é inevitável olhar para o meu reflexo quando passo ao lado de grandes montras. Gosto de me ver como os outros me vêem.
Gosto de notar a roupa a ondular ao ritmo dos meus passos ou à medida que a aragem a agita. Gosto de avaliar a minha figura esguia que avança com passo deslizante e seguro, quase sem levantar os pés do chão. Gosto de ver o cabelo que esvoaça. Gosto de me olhar nesse reflexo com os olhos dos outros. Momentos curtos estes em que me espreito com olhos que são simultâneamente curiosos e distraídos.
A maioria das vezes caminho com os olhos no chão e a expressão carregada. Rapidamente. Passos largos que em tempos ensaiei com o meu pai. É sinal de tristeza quando percorro as ruas lentamente e o olhar perdido em algo que não está lá. Os óculos escuros impedem que se veja a alma. Preservam a minha intimidade. Ocultam os meus sonhos.
São os meus companheiros de todos os dias: os óculos escuros e os sonhos. Os primeiros uma necessidade, os segundos ... impossível viver sem eles. Impraticável sobreviver sem eles.
Em criança sonhava com as bonecas que gostaria de possuir, com as brincadeiras que faria no dia seguinte; sonhava com um Natal numa única casa e com uma única família - eu que era repartida entre mãe e pai, entre estabilidade e medo. Sonhava com fins de semana sem trocas de casa e de roupas.
Adolescente, passei a sonhar com o príncipe encantado e com as festas a que gostaria de ir. Mais tarde, com o desabrochar da consciência social e política, sonhava com um mundo melhor em que também pudesse ajudar a fazer a diferença. Tempo do sonho por excelência, foi também o tempo das desilusões.
Quando jovem mulher os sonhos modificaram-se ao ritmo das mudanças da vida. Queria mais e melhor. Construir uma vida nova com grandes objectivos. Uma casa, uma família e dinheiro. Foi a época das grandes mudanças. O trabalho, o casamento, uma casa nova, uma família. Uma verdadeira construção. Vieram as filhas e passei a sonhar com o futuro - o delas - desejando-lhes o melhor. Viver em função delas colocou os meus sonhos num lugar subalterno. Acho que durante alguns anos até deixei de sonhar ...
O tempo passou entretanto. As filhas, adultas agora, constroem os seus próprios sonhos. Não coincidem com os meus. São os delas. O seu tempo chegou, e para mim é de novo tempo de voltar a ter sonhos. Menos grandiosos que antigamente mas igualmente importantes.
Já não desejo o Sol, apenas o seu calor.
Já não aspiro às estrelas, apenas a um pouco do seu brilho.
Já não sonho com o príncipe encantado, apenas com o encanto de um príncipe.
Continuo a sonhar com um mundo melhor, mas sem a luz utópica de outrora.
Hoje sonho com as pequenas coisas que me podem fazer feliz. Porque é de pequenas coisas - de breves momentos - que se constrói a felicidade. Um passeio à beira-mar. A carícia do Sol em cada manhã. Um livro à espera de ser lido. A palavra dos amigos. A presença do amor ... e a esperança.
Uma réstea de esperança brilhante e discreta, presente e vibrante, que me recorda que os sonhos não se abandonam. Abraçam-se. Agarram-se com ambas as mãos. Transformam-se, se preciso fôr para que subsistam, resistam e se concretizem.

sábado, março 18, 2006

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Basta estar vivo para correr riscos. Risco de fracassar, ser rejeitado, frustrar-se consigo mesmo, decepcionar-se com os outros, ser incompreendido, ofendido, reprovado, adoecer. Não devemos correr riscos irresponsáveis, mas também não devemos temer andar por terrenos desconhecidos, respirar ares nunca antes aspirados.
Viver é uma grande aventura. Quem ficar preso num casulo com medo dos acidentes da vida, além de não os eliminar, será sempre frustrado. Quem não tem audácia e disciplina pode alimentar grandes sonhos, mas eles serão enterrados nos solos da sua timidez e nos destroços das suas preocupações. Estará sempre em desvantagem competitiva.

CURY, Augusto, "Nunca desista dos seus sonhos", Pergaminho, 2005, p.31
(Foto em www.olhares.com)

sexta-feira, março 17, 2006

Em nome do amor puro

(...)O que eu quero fazer é o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Teixeira de Pascoaes meteu-se num navio para ir atrás de uma rapariga inglesa com quem nunca tinha falado. Estava apaixonado, foi parar a Liverpool. Quando finalmente conseguiu falar com ela, arrependeu-se. Quem é que hoje é capaz de se apaixonar assim?
Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão mesmo ali ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato. Por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à minima merdinha entram “em diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reunem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bioecológica da camaradagem. A paixão, que deveria ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas em vez de se apaixonarem de verdade, ficam praticamente apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há. Estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromisssos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o medo, o desiquilíbrio, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho” sentimental.
(...)
Amor é amor. É essa beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor é para nos amar, para levar-nos de repente ao céu, a tempo de ainda apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor á uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma conveniência assassina.
(...)
O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita. Não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que se quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar. O amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha –é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz.. Não se pode ceder, não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

CARDOSO, Miguel Esteves, ”Último Volume”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p.75/76/77

quinta-feira, março 16, 2006

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O casamento é um soneto. Cheguei a esta irrecusável conclusão observando que todos os remorsos líricos inspirados pelo amor conjugal saem em forma de soneto. Porque o soneto é o sistema estrófico do amor a definhar-se em procriação: duas quadras que se unem para fazer dois filhos que são os tercetos finais da catástrofe conjugal.
O casamento, dizem, é o desenvolvimento de uma ideia de harmonia, uma cadência perfeita, acabando no pensamento elevado da multiplicação dos corpos para desbravarem as selvas de cristal da via láctea. Mas a ideia subordina-se ao concreto dos cônjuges que são as estrofes rigorosamente contidas em seus limites farpados e o fim de cada estância de trabalho de gritos para reorganizar a solidão unânime dos amantes é marcada por uma vírgula de nítido rancor. Só de costas os cônjuges podem reassumir a fotográfica pose matrimonial fazendo nessa posição incómoda filhos que naturalmente se distinguem na guerra. Só de costas como as estrofes que no soneto simulam visar a unidade. Daí o casamento ser um soneto monotonamente recitado pelo código civil.
A Idade Média que é o casamento acabando em pouca vergonha foi genialmente inábil para compôr a música sonolenta do soneto.
A Renascença que é a pouca vergonha acabando em casamento teria que inventar o soneto pois que nele Petrarca inventava o casamento que não fez com a Laura. Um homem que queria casar, exasperando-se na proibição do doce ressonar do casamento, eis Petrarca, o chineleiro do sonho burguês da Renascença que de poético só teve as antigas deusas abandonadas à fúria das camas dos papas que eram os únicos que realmente não queriam casar.
Mas, ó contradição dos homens que no amor começam como o caminho acaba, quereis um amor impossível, vós que de Isolda e Tristão herdastes os melancólicos ademanes de flores batidas pela morte? Casai-vos! Encarnai no corpo que noutro toca a sua destruição diária! e então sim tereis a vossa dose de amor impossível, meticulosamente planeado pelo desastre.
É aqui que o soneto em sua clínica brancura enlouquece e se desprende na beleza à solta de um duplo suicídio.

CORREIA, Natália, "A mosca Iluminada", Quadrante, pp.32/33

(Hoje faz 13 anos sobre a morte de Natália Correia)

quarta-feira, março 15, 2006

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Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

PESSOA, Fernando, "Livro do Desassossego", Novis, p.222

terça-feira, março 14, 2006

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"O desejo que se vive de longe torna-se um misto de dor e de incredulidade. É a dor de não se poder tocar no ente querido. É a dúvida ao imaginarmos que nunca nos vai ser possível tocá-lo. Quando o desejo tem de realizar-se no olhar, no olfacto, na percepção distante do gosto (que gosto tem o ar que o outro respira?), apenas satisfaz uma parte do seu potencial. Restam as mãos: os dedos orfãos de pele. Os dedos só existem para poder tocar outros dedos. Senão, passam demasiado frio. Este desejo vivido de fora alimenta o espírito de saudades."

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, 2005, p.75/76

segunda-feira, março 13, 2006

Hibernação

No regaço do tempo me conchego:
Passam e passam os dias em modorra
E bolor, que os gestos entorpece.

Não há nesta dormência outro sossego
Que estar ciente o corpo da desforra,
Se a hora prometida lhe amanhece.

SARAMAGO, José, "Os poemas possiveis", Caminho, Lisboa, 1999, p.54

domingo, março 12, 2006

Domingo!

Hoje é domingo. Dia de saudade. Dia de reflexão. Também dia de sol a que me entreguei logo bem cedo quando a maioria das pessoas ainda dorme ou descansa, aproveitando esta pausa semanal. Para mim, o domingo é também um dia especial, mas de uma outra forma – com outros contornos.
Cedo abro os olhos como todos os dias e circulo pela casa adormecida como um fantasma, tentando não fazer barulho, deixando que os minutos resvalem sem eu dar por eles. Encostada à janela da cozinha, pareço um gato à procura de calor. Olho a estrada quase vazia a esta hora matinal; as árvores praticamente não mexem; Há uma neblina ténue no ar; ao longe, o rio é prata em estado líquido. E há o sol.
Encosto-me ao balcão e deixo-me ficar por ali alguns momentos, absorvendo, respirando este calor e esta vida, mas depressa o sol foge, escondido agora atrás dos prédios. Tomo o pequeno almoço e saio. As ruas também não escondem como é cedo ainda. O movimento é pouco. O café onde espreito para o meu café da manhã ainda não abriu. Desço as escadas e sento-me num banco virado para o relvado.
O verde é a côr dominante. A luz a presença principal. Mais uma vez me desembrulho e desabrocho para este calor que me deseja.
Fico ali a olhar o que não está lá. A sonhar o que não possuo. A lembrar recentes viagens e a recordar palavras e amigos.
Como são importantes os amigos ... Como têm força certas palavras ditas nos momentos certos. E às vezes não apenas as palavras, mas os pequenos gestos, os olhares de compreensão e de carinho. Aqueles olhares que lêem dentro dos nossos olhos aquilo que não revelamos. Aquelas palavras que não esperamos ouvir em dado momento, mas que de súbito nos atingem e transbordam, vibrantes de uma amizade que sabemos que existe, mas que sempre nos surpreende. Aquela mão que se estende para nós e nos ampara quando estamos mais frágeis. E tudo isto sem nada esperar em troca, sem exigir uma contrapartida ... ou então ... esperando sim, mas desinteressadamente, porque me sabem também presente, porque me sabem companheira, amiga, disponível.
O que acontece na vida real, acontece também por aqui neste mundo virtual, em que todo um grupo se conhece, desconhecendo-se, em que eu e tu, partilhamos palavras, oferecemos atenção, estamos presentes em cada comentário, extenso ou sucinto, mas estamos aqui. Também isso se pode considerar uma forma de amizade, uma forma alterada, em consequência desta vida que hoje vivemos, cada vez mais urgente, cada vez mais individualista, e também cada vez mais só.
É em vocês que penso quando escrevo estas palavras ou quando partilho os pensamentos de outros; é a vocês que aguardo em cada manhã quando acedo a esta página que é também a minha casa. Expomo-nos todos cada vez mais, apesar de protegidos ou não por um nick, mas sempre resguardados, quando revelamos em cada dia o nosso pensar, quer através das nossas palavras, quer através das nossas escolhas.
E assim nos vamos conhecendo ... desconhecendo-nos.
Um bom domingo para vocês.

sábado, março 11, 2006

Companheiros de Viagem

Companheiros de viagem são aquelas pessoas nas quais, ao nos encontrarmos, sentimos um olhar semelhante para o que nos rodeia e acontece à nossa volta. Um espécie de corrente que, ao fazer nascer algo entre nós para lá das roupagens de cada um, nos confirma na forma como respiramos. Corrente essa que reforça a convicção com que acolhemos o sopro da vida que, continuamente, nos empurra para a frente e vai despertando para a essência do que somos.
Sem nenhum de nós abdicar de nada que lhe seja importante, aquilo que em cada momento tem para dar ao outro sempre por ele é acolhido e aproveitado.
E o intercâmbio afectivo que entre ambos assim acontece – ao sabor das oscilações da vida individual e colectiva – vai-se desenvolvendo para lá dos episódios que constituem a espuma da história de cada um.
Encontramo-nos através dos mais variados atributos que permitem que nos destaquemos do seio da multidão anónima, no pano de fundo em que decorre o nosso dia-a-dia. Mas olhamo-nos sobretudo através da alma, porque nada escondemos das também variadas falhas que nos fazem ser tudo o que somos.
(...) Ao olharmos um para o outro, não nos fixamos em conquistas, vitórias, fracassos, que cada um obteve, nos ganhos e nas perdas que lhe enriquecem ou empobrecem o nome pelo qual a sociedade o reconhece.
Nada mais vemos do que algo que permaneceu imune para lá de todo esse vivido.
E, nesse olhar recíproco, sentimo-nos iluminados por uma luz maior do que qualquer um de nós.
Querer agarrá-la será pretender reduzi-la. Não aproveitar o convite que, através desse encontro nos está a ser feito no sentido de olharmos para mais longe e mais alto.
O que então, nos variados recantos do nosso ser se acende, pertence ao domínio do misterioso.
É como que o vislumbre de uma pátria comum. Um lugar de chegada que, estando para lá do tempo e do espaço, coincide com o do outro, por muito diferente que, para cada um deles, este lugar seja.
E deixamos de nos sentir sós, embora sabendo com grande nitidez que, no fundo, nenhum de nós tem a ver com o caminho do outro, com a forma como ele o percorre ou os acidentes desse seu percurso – e, portanto, está sozinho. (...)

COSTA FÉLIX, Maria José, in Xis, Suplemento do jornal Público de 11/03/2006, p.37

sexta-feira, março 10, 2006

...

"O primeiro beijo. Sabe a café, a vinho, a pasta de dentes ou a tabaco. Tudo deveria estar nele. Tudo está nele. Sabe-se tudo já no primeiro beijo. Se o amarás. Se te amará. Como fará e não fará amor. Tudo está na linguagem dos primeiros lábios. Se te tratará mal, como será o fim. Todo o abismo entre as almas está aí, a infinita distância entre duas línguas, o precipício entre as bocas. Se poderá ser ou não será. A história está escrita nos nossos lábios. Emociona-nos tanto que nos esquecemos de a ler."

RICO, Eugénia, "A idade secreta", Casa das Letras, Lisboa, 2006, p.30

(A autora recebeu Prémio Azorín, 2002, Finalista do Prémio Primavera de Romance, 2004 com este romance, e Prémio Espiritualidade, 2005)

quarta-feira, março 08, 2006

Diz-me tu

Diz-me tu como te quero.
Tu.
Que me calaste as palavras
Num beijo tão longo
Que foste a minha boca
Que foste respirar
Que foste a minha voz.
Diz-me tu como te desejo.
Tu.
Que me ardeste no corpo
Num abraço tão apertado
Que me tornaste e me deste
Um desejo maior
O desejo de nós.
Diz-me tu como te amo.
Tu.
Que me tomaste as palavras
Que me tornaste desejo
E a quem em silêncio chamo
E a quem ardendo amo.
Diz-me tu, meu amor.
Diz-me tu de nós.

Encandescente, Colecção Polvo, 2005, p.57/58

Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

GEDEÃO, António, "Obra Poética", Edições João Sá da Costa, Lisboa, 2001, p.62/63

(Hoje é Dia Internacional da Mulher ou Dia de Limpeza das Consciências?)

terça-feira, março 07, 2006

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"Minha querida, se fosse possível voltar de novo ao princípio, nada havia que quisesse mudar, só queria ficar mais tempo nesse tempo em que ainda sabíamos tão pouco um do outro, em que os nossos corpos desconheciam tanto de si próprios, em que entrávamos num mundo novo que nós dois fazíamos sem saber como, mas fazíamos com gestos e palavras enquanto o mundo todo morria à nossa volta."

PAIXÃO, Pedro, "Amor portátil", Livros Cotovia, 1999, p.52
(Foto em www.olhares.com)

segunda-feira, março 06, 2006

Viagem

Persegue-me na noite a voz do impossível,
Rebentam-me aos ouvidos as ampolas de sangue.
Avanço devagar para a hidra intangível
Que dorme no horizonte do lado do levante.
Fascinam-me o mistério do seu rosto sem nome,
O muro de silêncio que a separa de mim,
A jornada no escuro, os perigos, os escombros,
As barreiras de sombra a que vou pondo fim.

Avanço devagar para a hidra que dorme
O seu sono latente na véspera de mim.

E percorro países como esqueço palavras
E atravesso rios como desprezo leis
E pairo nas alturas com as costas voltadas
Aos séculos de pasmo que para trás deixei.

Avanço devagar para a hidra que dorme
O seu sono de pedra num abismo sem fundo.

É a hora em que a terra não gira,
Em que o vento não corre.
É o tempo do homem descobrir o mundo.

ARY DOS SANTOS, José Carlos, "Obra Poética", Edições Avante, Lisboa, 1999, p.77

domingo, março 05, 2006

O primeiro dia

A princípio é simples anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo e dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se e come-se se alguém nos diz bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vem cansaços e o corpo frequeja
molha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso por curto que seja
apagam-se duvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Entretanto o tempo fez cinza da brasa
outra maré cheia virá da maré vaza
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Sérgio Godinho

(Ontem fui assistir a um concerto do Sérgio Godinho. A última canção que interpretou foi esta que transcrevi, e que é também uma dos temas que me acompanha desde os meus 18 anos. Gostaria de poder colocar a música, mas não a sei pôr aqui. Espero que a tenham de ouvido, e se não tiverem, vale a pena ouvi-la.)

sábado, março 04, 2006

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"Pensou em como era bonita a geografia de uma mulher,é fácil, quando a conhecemos e amamos, e pensou até que ponto os homens são estúpidos, e enquanto assim pensava sentiu que também o seu corpo começava a respirar ao ritmo do corpo que abraçava, e pensou: não podes adormecer, espera, agora não adormeças."

TABUCCHI, António, " "Está a fazer-se cada vez mais tarde", Dom Quixote, Lisboa, 2003, p.199
(Foto em www.olhares.com)

sexta-feira, março 03, 2006

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"É a minha intenção quando digo que gostaria de remontar o curso do tempo: gostaria de apagar as consequências de certos acontecimentos restaurar uma condição inicial. Mas todos os momentos da minha vida acarretam um montão de factos novos, e todos estes factos novos acarretam as suas consequências, pelo que quanto mais tento voltar ao momento zero de que parti, mais dele me afasto; embora tendo todos os meus actos a intenção de apagar consequências de actos precedentes e conseguindo até obter resultados apreciáveis neste apagamento, que me abrem o coração a esperanças de alívio imediato, contudo tenho de considerar que cada uma das minhas acções para apagar acontecimentos precedentes provoca uma chuva de novos acontecimentos que complicam ainda mais a situação anterior e que terei de tentar apagar por sua vez. Por isso tenho de calcular bem todas as acções de modo a obter o máximo de apagamento com o mínimo de recomplicação."

CALVINO, Italo, "Se numa noite de inverno um viajante", Público, Colecção Mil Folhas, p.17/18
(Foto em www.olhares.com)

quinta-feira, março 02, 2006

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"(...) há dores que são punhaladas. Desfolham-nos a pele como se fôssemos ramos de uma árvore na Primavera, até não restar mais do que o esqueleto da árvore florida. Costumam ferir e ser rápidas. A intensidade é proporcional à duração: quanto mais breves, mais intensas."

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", p.33




"Há quem pense que a vida descreve círculos. Por isso nos é complicado renunciar a certos aspectos que nos tocaram a alma. Outros pensam que a existência é uma linha que avança não se sabe bem para onde. Sâo os que deixam para trás fragmentos de história vivida. Eu acredito que a vida é uma espiral: avança, mas também vai e vem."

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há e mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.301

(Foto de Nelson Afonso)

quarta-feira, março 01, 2006

Exorcismo

I

Dizer não
a esta ruga
ao canto
da boca
sulco de
tristeza
goteira
de zinco
escorregadia
à melancolia
do dia
Reconheço
este rosto
antigo
que não quero mais comigo
este sorriso amargo
estes ombros desistindo
estas noites sem sono
este dormir sem dono
nem uma pedra sequer por travesseiro
este acordar forçada
debruçada tão para nada
à amurada
da madrugada

Ah renego
deste rosto
deste gosto
na boca
Deito sal
e cinza
e cal
neste espelho
nesta imagem
de mim

II

Olho-me procuro espanto-me Serei
aquela ali? Serei aquilo?
Não sei se sou
não posso ser
Só sei que não sei aonde está
aquele espelho vagabundo que guarda o real
rosto em que me reconheço
Este não é!
Partir? Pra onde? Fazer a mala?
Levar o quê na mala? Ah! partir sem mala
ao encontro de um rosto o meu que me
sonegam
Aonde procurá-lo? Onde recuperá-lo?
sobretudo agora que os espelhos começaram
a trair-me a cochichar de mim cúmplices
Que idade tem o meu rosto verdadeiro? Quem
me reteve aonde? a minha cara?
Alguém
a terá posto no Prego em dia de aflição?
Mas quem? aonde? Irei de penhor em penhor
espiar os espelhos
Talvez alguém quem sabe
eu própria a tivesse metido um dia numa garrafa
e atirado ao mar
Visitarei todas as praias
solitárias descerei ao fundo de todos os abismos
à procura de mim
Ah! abalar desta cara mercenária!
Sem destino sem armas nem bagagens para longe
abalar
hoje mesmo amor vamos fazer visita
ao ar
tua pátria teu elemento de nascença

LOPES, Teresa Rita, " Os dedos os dias as palavras", Figueirinhas, Porto, 1987, 231/233