terça-feira, fevereiro 28, 2006

Acabo sempre por voltar ...


Acabo sempre por voltar a este café. De preferência de manhã. Quase sempre aos sábados, quando a vida fervilha lá fora. Hoje voltei. Aqui o tempo pára. O silêncio impera. Por isso regresso sempre a este espaço. As grandes montras de vidro debruçam-se sobre um enorme largo. A água no lago artificial exibe uma coreografia vistosa. As cortinas de riscas castanhas e brancas ajudam a esta separação física do mundo. Privam-me do contacto com a cidade. Protegem-me da luz e do ruído.
Como me faz bem este hiato de tempo neste envolvente silêncio. Tempo que roubo à vida.
Estas cadeiras de palhinha acompanham o descanso do corpo. Convidam ao repouso. O silêncio incita o pensamento a voar. O livro agora pousado na mesa, já lido até meio.
Ao meu lado uma rapariga de longos cabelos castanhos fuma, e o aroma do cigarro acabado de acender conduz-me ao passado. Os cafés. O estudo. Outros silêncios. Ela, a rapariga de longos cabelos castanhos, lembra-me eu própria. Estuda. Um café já bebido sobre a mesa, um cigarro a queimar-se nos dedos, um caderno onde se debruça.
Aqui, no silêncio deste café, tudo é feito em bicos de pés, as chávenas pousadas com cuidado, as vozes sussurradas para não acordar o silêncio que se instalou.
Por isso volto sempre. Por isso aqui ficaria horas à volta de um livro, à volta das palavras que crio e escrevo, à volta dos pensamentos que embalo.
Lá fora, hoje é Carnaval! Vejo-as que passam. As crianças e as suas máscaras. Identificadas. Apenas um dia por ano para finalmente revelarem o que verdadeiramente gostariam de ser! Tantos os dias para se ocultarem atrás de outras máscaras - quase que uma segunda pele. E sempre assim pela vida fora.
Hoje é Carnaval! Desfilam as máscaras!
É dia de arrumar as minhas. Pelo menos aqui, onde o coração se mostra à flôr da palavra.

(Imagem: "A máscara (da loucura)" , Frida Khalo, Óleo sobre tela, in Catálogo da exposição sobre vida e obra da pintora, patente no Centro Cultural de Belém)

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

A invenção do Amor (excerto)

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisa da
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas

Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...
Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
...
Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A polícia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo

(mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

FILIPE, Daniel, "A Invenção do amor e outros poemas", Editorial Presença, Porto, pp.25/29, 30/31, 33/34, 42/43

domingo, fevereiro 26, 2006

...


"O desiquilíbrio, a desesperada consciência de não poder alcançar o que persigo, a beleza de um corpo vivo. Sentir isto como a verdadeira morte. Reconhecer uma vida dedicada ao que nunca foi possível. Continuar por inércia, por não poder de outro modo, com esforço, com dor. Tudo no passado. O futuro no passado."

PAIXÃO, Pedro, "Cala a minha boca com a tua", Livros Cotovia, Lisboa, 2002, p.48
(Foto minha)

sábado, fevereiro 25, 2006

Divagando ...

Estava sentada à secretária quando a luz faltou. A minha janela para o mundo, fechada subitamente.
A noite inundou a sala. Tacteei à procura da chávena de café ali ao lado e envolvi-a com as duas mãos, aquecendo-me. Recostei-me na cadeira. Aos poucos, os objectos que me rodeavam, de invisíveis passaram a difusos. Apenas eu, uma figura com espessura.
Reconheci o espaço.
Olhei a rua, também sem qualquer iluminação. Chovia ainda. Até há bem poucos anos teria ficado colada ao chão, aterrorizada pela escuridão. Mas já não agora. A noite deixa-me confortável, a escuridão é um abraço em que me aninho. Sem medos!
Levanto-me e passeio pela sala tocando ao de leve com os dedos nos móveis, acompanhando a curva dos sofás, tacteando o rebordo dos quadros. Elementos sólidos que me rodeiam. Olho as máscaras na parede. Olhos vazios de expressão. São outras máscaras que temo. São outras as máscaras que não quero encontrar aqui.
Fecho os olhos para a escuridão ser ainda maior e encosto-me à parede. Sinto o frio que passa através dela. Com os olhos ainda cerrados tento sentir as presenças do passado ... As minhas filhas ainda pequenas, numa altura semelhante encolhidas no sofá a cochichar com medo. E outras presenças que já não me acompanham mais.
Será que estão por aqui? Será que me observam? Que me tocam ao de leve? Que me rodeiam gesticulando e tentando comunicar? Ou apenas me olham – um sorriso vago no rosto – aguardando ... aguardando apenas que um dia me reúna a elas.
Agora, já sem receios, gosto de pensar que me acompanham de vez em quando, que visitam os lugares que antes percorriam apenas com o intuito de velar por mim. Com a intenção de ver como percorro este caminho que desbravo em cada dia. Olhando, sorrindo ou lamentando, as minhas pequenas alegrias ou as minhas desilusões. Mas fundamentalmente aguardando – com uma imensa paciência – aquela que lhes é dada por um saber secreto ... esperando por mim. Um dia! Quando chegar a hora ...
Encosto o rosto à janela e nos vidros embaciados fica desenhado o meu contorno.
Pressinto a luz de volta ainda antes de acontecer. A noite agora é só lá fora. Aqui tudo ganha a dimensão habitual. Só eu me esbato.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Nono

Amor
faz de sol

adormece os pássaros
insones
no meu corpo

Amor faz de mar

e de mim um seixo húmido
nítido
brilhante

Amor
faz de lua

equilibra um barco
nos meus dedos
um nenúfar
a sombra de uma ponte

E sê a noite imensa
e sê o rio sem nome
o cavalo solto
a distância plena

LOPES, Teresa Rita, "Os dedos os dias as palavras", Figueirinhas, Porto, 1987, p.77

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Tus ojos

Cuando se han agotado los caminos
que la razón podría aconsejarnos
se abren tus ojos, y con ellos todo
vuelve a inundarse de la luz oscura
que da sentido al mundo y a mi vida.

BAUTISTA, Amalia, "Trípticos Espanhóis", 3º, Edição de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio d'Água, Lisboa, 2004, p.58

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Quarto


Estendo devagar a mão
para que a tarde se aninhe
nos meus dedos

Me ponho quieta imóvel
para que pouse
sem medo
nos meus ombros

me sinta coisa árvore
e não fuja de mim

LOPES, Teresa Rita Lopes, "Os dedos os dias as palavras", Figueirinhas, Porto, 1987, p.70
(Foto em www.olhares.com)

terça-feira, fevereiro 21, 2006

...

"É tão bom sentir o que sinto. Que alguém, e és tu, me quer com o maior cuidado para não se enganar, iludir, mentir a si próprio que não me está a confundir, sem querer, com o que desejava ver, sempre esperou alcançar, sonhou quando era criança num sonho que ficou, quer mostrar aos outros, ao pai em especial, a quem quer que seja, pouco importa. Não, do que tu gostas mais em mim é dos meus pecados, dos meus defeitos físicos, de tudo o que não consigo ser, onde falhei, onde não pára nunca de doer, é isso o que tu queres ver, o que queres ter perto de ti, queres aceitar e cuidar, só isso, e o resto, só se vier com isso, porque é isso que tu amas em mim. Será isso? Será assim? Será possível pela primeira vez? Pode ser, talvez seja disso feito o nosso amor. Pelo menos grande parte, meu querido."

PAIXÂO, Pedro, "Muito, meu amor", Cotovia, Lisboa, 2003, p.28

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Tejo


Aqui e além em Lisboa - quando vamos
Com pressa ou distraídos pelas ruas
Ao virar da esquina de súbito avistamos
Irisado o Tejo:
Então se tornam
Leve o nosso corpo e a alma alada.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Musa", Caminho, Lisboa, 2004, p.39
(Foto minha)

domingo, fevereiro 19, 2006

...

" - Viajas para reviver o teu passado? - era agora a pergunta do Kan, que também podia ser formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de Marco: - O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá."

CALVINO, Italo, "As cidades Invisíveis", Editorial Teorema, 6ª ed., Lisboa, 2003, p.31

sábado, fevereiro 18, 2006

Sonho

Percorro esta estrada esburacada. De cada lado, campos verdes sem fim, aqui e ali salpicados de amarelo e branco. É uma estrada sem fim esta por onde caminho. De mãos dadas com um sonho.
Olho o Sol de frente. Ilumina-me. Aquece-me. Há um perfume no ar que me atordoa. Uma música que acompanha os meus passos. Respiro fundo para melhor sentir este ar fresco. Para me impregnar da Primavera que se adivinha já. Esvoaçam as roupas e os cabelos. Páro e abro o corpo a este Sol em que renasço. Não há palavras para descrever esta felicidade que me invade. Sinto-me viva. Sinto-me feliz.
Inspiro várias vezes com profundidade como se quisesse abarcar todo este ar, como ele me fosse vital. Mas ... algo tolda o astro-rei. Algo se interpõe entre nós. Abro os olhos e vejo algumas nuvens negras. Percorre-me um arrepio. Sinto frio de repente.
Volto-me e corro. Há pássaros brancos que voam sobre mim gritando como se me chamassem. Há desespero nesse grito. Como um soluço imenso que me invade.
Tropeço. Corro e tropeço de novo. O sonho deixado lá para trás. A música perdida na paisagem. Apenas este lamento inexorável que me persegue ... Até ao fim da estrada ... Para além de mim.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

...

Mãe é como a água
como pão
só quando falta
temos a dimensão
da sua ausência
da nossa dependência

Só quando a Mãe morre
a infância verdadeiramente acaba
Antes a Mãe existia como a Natureza
forçosamente

De repente
o eclipse

Ou melhor:
em vez do Sol
a Lua

Mas esse luar insacia
de uma fome
que
sabemos
não poderemos
nunca mais
matar.

LOPES, Teresa Rita, "Cicatriz", Presença, Lisboa, 1996, p.84

A minha Mãe faria hoje 90 anos.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

...

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

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"Só quando te deres a ti próprio poderás entender o verdadeiro Amor"

in "Conversas com Agostinho da SIlva", de Víctor Mendanha, Pergaminho, 1997, p.91

terça-feira, fevereiro 14, 2006

...


"(...) Pareciam o sol e a lua ao encontrar-se, depois de se procurarem durante dias e noites. "

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.219

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Escrevo-te para devolver tudo o que não deste


Escrevo-te do lugar onde nos encontrámos e separámos. A velha estação de comboio. à beira das árvores despidas pelo vento. ao cair da tarde. ao cair de Setembro. O comboio que te trouxe e levou.
Escrevo-te daqui. Do lugar onde disseste:ficarei para sempre. E partiste. A marca da despedida na ultima página do teu diário. Do lugar onde estragámos a festa. espantámos a caça. atrapalhámos o trânsito. O lugar onde nos encontrámos e separámos: o Outono. Escrevo-te do lugar onde marcámos o nosso desencontro.
Íamos de viagem e o comboio parou. durante dois anos. na estação mais sinistra do percurso. Ficámos ali sozinhos no centro do nada. Onde está o maquinista. os outros passageiros? Nenhuma explicação. ninguém a quem apresentar queixa.
Encalhámos no Outono. Conhecemo-nos em Julho e já era Outono. Nunca saímos do Outono. Não houve Primaveras nem Verões nos anos do nosso amor. Ficámos suspensos a ver as árvores despirem-se. Olhei-te. confundido: porque nos atiraste para aqui?
Mas tu eras muito jovem e não ouvias. Estavas deslumbrada com a tua força. Paraste o mundo no Outono.
Ergueste uma barreira e conseguiste deter o próprio movimento do planeta.
Uma barreira de mentiras e ardis. de perfídias e cobardias. acinte e frio e vazio. tu que gostavas de brincar com palavras com muitos iis.
Escrevo-te do lugar onde humilhámos o Universo.
Para te devolver tudo. As carícias que esqueceste. As cartas que não escreveste. E as que nunca abriste.
Escrevo-te para devolver tudo o que não deste. E as horas de desespero. de olhos fechados em frente ao mar. A espera inexorável e mesquinha. junto ao telefone. Escrevo-te para devolver a marca da esperança louca. na última página do meu diário. Escrevo-te. Para devolver o Outono.

Paulo Moura, in Revista Pública de 12 Fevereiro/2006
Fotografia de Rui Gaudêncio

domingo, fevereiro 12, 2006

Hábitos e Manias - Resposta a um desafio!

A minha amiga Su do Xanax convidou-me a participar numa corrente na qual ela também foi apanhada. Não é costume meu aderir a estes desafios muito comuns aqui na blogosfera, mas vindo de alguém que tão simpática e alegremente me tem acompanhado aqui neste meu percurso, alegra-me também poder responder-lhe.
Então aqui vão aguns hábitos e manias:

1 - O meu café da manhã! Imprescindível, senão fico com uma telha que nem imaginam ....

2 - Nunca sair de casa sem um livro debaixo do braço! Às vezes nem se abre, mas está sempre presente para o que der e vier!

3 - Desenhar círculos à volta da boca! Sempre que estou pensativa acabo sempre a fazê-los.

4 - Anéis! Desde a adolescência e desde que conheci os Porfírios nos anos 70, fiquei com a mania dos anéis. Aos 14 anos usava um em cada dedo. Hoje, um pouquinho mais velha :-) não resisto a ver e comprar - grandes, pequenos, coloridos, mais ou menos excêntricos - para ir mudando à medida dos meus desejos.

5 - Amendoins e tostas integrais! Como-os compulsivamente, enquanto preparo as refeições e antes de começar a comer.

E pronto! E acreditam que me fartei de pensar para me lembrar destes pequenos hábitos!
Agora falta passar a bola a outros.
Desculpem-me os visados, mas já que respondi, agora são vocês. (Se quiserem e puderem, claro!)

Alexandre de Sais Minerais
Elsa de Delírios 2004
Vera de Momentos de Evasão
Luís Manuel de Heliasta
Wind de WebClub

sábado, fevereiro 11, 2006

Confissão

Escrever pode ser uma óptima desculpa para quem na vida não tem qualquer esperança. É uma maneira de preencher uma sombra e há momentos em que um beijo escrito vale por muitos.
É sempre a vida, é claro, mas com a distância limpíssima das palavras. E tudo sofre de uma insuficiência que a arte tenta reparar, e falha.
Eu espero que a esperança um dia venha e tudo isto não seja mais do que um exercício de gramática.

PAIXÃO, Pedro, "Nos teus braços morreríamos", Livros Cotovia, Lisboa, 2000, p.47

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Sonhos


O autocarro percorre veloz a noite chuvosa. Reflectido no vidro da janela o meu rosto olha-me.
Apenas um contorno rodeado de trevas aqui e ali ponteado de minúsculos pontos de luz. Conversas à minha volta desenrolam-se em surdina. Falta a música para me embalar os pensamentos.
Fecho os olhos e sinto aquela trepidação suave que adormece. Respiro fundo uma e outra vez e ajeito o corpo no banco.
Sonho. Outros dias perfeitos, algumas noites mágicas - um mundo paralelo criado à minha medida.
No vidro embaciado desenho o Sol. A Lua procuro-a no céu mas não a encontro. Apenas a noite de breu.
Do outro lado do vidro, procuro o meu reflexo. Vejo-o ainda, confusos os contornos, distanciar-se aos poucos, sorrindo, sonhando um sonho só seu. Livre, enfim.

(Foto minha, transformada)

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Dá-me o silêncio

Dá-me o silêncio da minha com a tua boca
Silencia-me num beijo silêncio
Cala-me.
Para não me ouvir.
Cobre-me com o teu corpo
Faz comigo amor silêncio
Apaga do meu corpo
As palavras que retêm
E no momento do orgasmo
Num grito
Ou num sussurro
O teu nome será
A única palavra que direi

Encandescente, Colecção Polvo-Poesia, Lisboa, 2005, p.8

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

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"O sol baixava no horizonte. O dia estilhaçara-se como uma pedra dura e a luz derramava-se pelas suas fendas. Como rápidas flechas emplumadas de trevas, os raios vermelhos e dourados trespassavam as ondas. Cintilações luminosas erravam no espaço como sinias de ilhas que se afundavam ou dardos lançados através das folhas de um loureiro por rapazes sorridentes e desavergonhados. Mas as ondas revestiam-se de claridade quando se aproximavam da praia e desfaziam-se com um ruído prolongado e surdo, como o de um muro desabando, um muro de pedras cinzentas que nenhuma luz poderia atravessar"

WOOLF, Virginia, "As Ondas", Relógio d'Água, Lisboa, p.166

(Foto minha)

terça-feira, fevereiro 07, 2006

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"Para quem é guiado pelo sentimento, a solução de qualquer questão é fácil"

PESSOA, Fernando, "Aforismos e Afins", Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, p.54

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

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Ele volta a acariciá-la. Ele volta a adormecer. Ele olha para ela. Olha para essa que lhe entrou em casa, uma visita caída das mãos de Deus, essa criança branca da Ásia. A sua irmã de sangue. A criança dele. O seu amor. Já sabe que sim.
Olha para o corpo, para as mãos, para o rosto, toca. Respira o cabelo, as mãos ainda manchadas de tinta, os seios da menina.
Ela dorme.
Ele fecha os olhos e com uma doçura magnífica, chinesa, encosta o corpo dele ao corpo da criança branca e muito baixo diz que começou a amá-la.
Ela não ouve.
Ele apaga a luz.
O quarto está iluminado pela luz da rua.

DURAS, Marguerite, "O Amante da China do Norte", Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p.76

domingo, fevereiro 05, 2006

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"Talvez ela duvide de que seja preciso fazer aquilo ou talvez não saiba que já atravessou o espaço da rua que os separa.
Começa por não se mexer.
Dirige-se lentamente para ele atrás do vidro.
Fica ali.
Olham um para o outro muito depressa, só o tempo de ver, de se terem visto.
O carro está no sentido contrário ao dela. Ela pousa a mão sobre o vidro. Depois afasta a mão e pousa a boca sobre o vidro, dá um beijo ali, deixa a boca ficar ali. Tem os olhos fechados como nos filmes.
Foi como fazer amor na rua, disse ela.
A intensidade era a mesma.
O Chinês olhou.
E depois foi ele quem baixou os olhos.
Morto pelo desejo de uma criança.
Um martírio.

A criança atravessou a rua outra vez.
Não se voltou e foi-se embora para o liceu.
Ouviu o carro sair sem fazer barulho por uma estrada que era agora de veludo, uma estrada nocturna.

Nunca, durante os meses que se seguiram, falaram dessa dor lancinante do desejo.

DURAS, Marguerite, " O amante da China do Norte", Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, pp.56,57

sábado, fevereiro 04, 2006

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"Banhado pela pálida luz da lua, o meu corpo perdera todo o sopro de vida, como uma figurinha de barro. Como se alguém me tivesse lançado um feitiço, como fazem os feiticeiros das ilhas das Índias Ocidentais, e insuflado de vida - a minha efémera existência - aquele pedaço de barro. A centelha vital extinguira-se. A minha verdadeira vida estava algures, adormecida, e uma pessoa sem rosto enfiara-a numa mala e preparava-se para fugir com ela.
Senti um calafrio tão violento que me deixou quase sem respiração. Algures, num local desconhecido, alguém trocara a ordem das minhas células, soltando os fios que mantinham a minha mente a funcionar. Não conseguia raciocinar. A única coisa a fazer era regressar o mais depressa possível ao meu refúgio habitual. Enchi os pulmões de ar e mergulhei no mar da minha consciência. Afastando as pesadas águas com a força das mãos, fui até ao fundo e agarrei-me com ambos os braços a uma pedra enorme. A água fazia uma pressão violentíssima sobre os meus tímpanos. Fechei os olhos, semicerrei as pálpebras com toda a força, sustive a respiração, tentando a todo o custo resistir. Uma vez tomada a decisão, não foi assim tão difícil. Aclimatei-me aos repetidos sinais de caos - à pressão da água, à falta de ar, à escuridão gelada. Era algo que eu me habituara a dominar, vezes sem conta, desde criança.
O tempo invertia-se, andava para trás, desaparecia, reorganizava-se. O mundo expandiu-se infinitamente - sem por um momento deixar de estar definido e limitado. Imagens nítidas - apenas imagens - passavam ser fazer barulho por corredores escuros, como medusas, almas à deriva. Evitei olhar para elas. Se desse sinal de tê-las reconhecido, nem que fosse por um breve instante, começariam de imediato a fazer sentido. O sentido estava ligado à temporalidade, e a temporalidade obrigava-me a regressar à superfície das águas."

MURAKAMI, Haruki, "Sputnik meu amor", Notícias Editorial, Lisboa, 2005, p.189,190

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

...

"Tocar não é simples. Há quem afirme que se trata de uma arte"

JANER, Maria de la Pau, Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.74

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

...


"Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma"

SOARES, Bernardo, in "Aforismos e Afins" de Fernando Pessoa, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, p.15

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

A.

Apago as estrelas. A Lua esconde-se no brilho que o Sol anuncia.
Respiro profundamente. Espreguiço-me.
Lá fora um novo dia espreita. E sou eu, A., que sorrio a mais este dia novo.
Penso já no que farei. No que direi. No que escutarei.
Olho para trás para a cama vazia de mim, e entrevejo as minhas marcas nos lençóis amarrotados. Bem à pontinha da cama, naquele equilíbrio perfeito entre o não e o nada.
Daqui a pouco, as palavras brotarão vibrantes, semeando carícias na manhã.
Daqui a pouco, o Sol e a Lua, eternos viajantes desencontrados, cruzar-se-ão em mais um percurso perfeito.
Caminho ao Sol e o frio intenso faz saltar as lágrimas, mas é a sorrir que estou.
O café já tomado. As palavras revisitadas.
Volto a casa. Leve como um pássaro. Ofereço o rosto ao Sol e fecho os olhos para melhor o receber. Doce calor.
Súbito percorre-me um arrepio. Aquela desagradável sensação de ser observada. Desconfortável, olho em volta. É ao erguer o olhar para a minha janela que a vejo. Olha-me. Mais! Acusa-me. Na boca uma pergunta. Nos gestos o desalento.
Dispo-me e entro em casa.
À beira do passeio brilham ainda o Sol e a Lua, e os restos do calor e das palavras que na pressa deixei cair a um canto ...