terça-feira, janeiro 31, 2006

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"Eu estava deitada de costas sobre a relva e tinha os olhos fechados e sentia por debaixo de mim o peso húmido da terra e depois abri os olhos lentamente e vi um céu enorme sobre mim com algumas nuvens pequenas a passar e pensei: eu estou aqui.
E foi então, de seguida, que os lábios dele se aproximaram de mim, e a cara toda, e me obrigou a fechar os olhos outra vez para recolher aquele prazer tão estranho que vinha não sei de onde e eu pensei: eu estou aqui com o meu amor e nada de mal me vai acontecer enquanto estiver com ele e ele comigo por cima desta terra debaixo deste céu."

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.42
(Foto em www.olhares.com )

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Escrito ontem, domingo de má memória!!

O céu está carregado e cinzento. Ameaça tempestade. O rio ao fundo, cinzento escuro está, e os barcos que o sulcam são pequenas manchas de luz que deslizam sobre as águas.
Dormi mal. Os sonhos que me costumam embalar - perdidos. Busco-os em vão. Tento recriar uma voz amiga, uma festa nos cabelos, mas apenas as sombras da noite se avolumavam sobre mim.
Olhei o espelho em frente e nele não encontrei o reflexo dos meus sonhos. Apenas me espreitavam as diversas facetas de mim. Como um prisma que ao tocar a superfície espelhada se dividisse.
E pergunto-me: Quem sou eu? O que quero?
E pergunto-te a ti que me olhas com um sorriso gelado: quem és tu? Para onde vais?
E também a ti mulher, cujos cabelos brancos espelham a idade: o que queres fazer do resto da tua vida?
E a ti?
E a ti?
E a ti?
Que procuras?
O que queres mais ainda?
O silêncio é total. Nenhuma de mim respondeu.
Apontam-me o dedo - nos seus rostos um desafio. Remetem-se ao silêncio e deixam-me a tarefa de escolher.
Passam as horas e o sono não vem. Na minha respiração compassada procuro o conforto que me embale.
À beira da cama, como à beira da vida, procuro a derradeira solução. A que eu conheço e mascaro. A única que reuniria todos os meus Eus.

domingo, janeiro 29, 2006

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços , e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali ...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí ! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos ...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí ...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos? ...
Corre nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos ...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a , como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios ...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou ...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

RÉGIO, José, Antologia Poética, p.19/20/21

sábado, janeiro 28, 2006

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"É bom saber escutar o que dizem os silêncios"

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.192

(Foto minha)

sexta-feira, janeiro 27, 2006

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Ao longe a madrugada sempre me acena com a promessa de um dia novo.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Dulcineia

Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.

SARAMAGO, José, "Os poemas possíveis", Caminho, Lisboa, 1999, p.103

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

MOURÃO-FERREIRA, David, "Obra Poética"

terça-feira, janeiro 24, 2006

A corda tensa

Deixem-me! Deixem-me ser tantos quantos sou.
Cada um de vós agarrou uma das minhas faces – a que mais lhe agradava ou era mais sua; e começou a negar as outras do prisma.
Ou eu sou o prisma de não sei quantas faces ... não sei.
Bem me basta ser tantos, que já nem posso, às vezes, com tantos que sou!
Mas deixar de ser tantos também o não posso. Também não posso fechar todas as mais janelas, ficar-me a olhar só por uma.
Sei que o não posso, porque já o tentei. “Será um descanso” – pensava. Mas vinha o vento, vinha a lua, vinha a chuva, vinha o sol ... até a poesia vinha. Tudo batia nas janelas fechadas, e entrava pelas frinchas. Descanso? Não tinha nenhum.
Abri todas as janelas! Entre o que quiser.
E agora sois vós a querer, na mesma, fechar todas menos uma, cada um a que mais lhe agrada ou tem por mais sua.
Como poderei eu satisfazer a cada um de per si e a todos?
Prefiro satisfazer a todos e a mim próprio sem agradar a nenhum.

RÉGIO, José, “Antologia Poética”, Quasi, 2000, p.168

segunda-feira, janeiro 23, 2006

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"Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar. Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel."

PESSOA, Fernando, "O livro do Desassossego", Novis, p,224

domingo, janeiro 22, 2006

Não passam mais

Em nome dos nossos braços
em nome das nossas mãos
em nome de quantos passos
deram os nossos irmãos.
Em nome das ferramentas
que nos magoaram os dedos
das torturas das tormentas
das sevícias dos degredos.
Em nome daquele nome
que herdámos dos nossos pais
em nome da sua fome
dizemos: não passam mais!

E em nome dos milénios
da prisão adicionada
em nome de tantos génios
com a voz amordaçada
em nome dos camponeses
com a terra confiscada
em nome dos Portugueses
com a carne estilhaçada
em nome daqueles nomes
escarrados nos tribunais
dizemos que há outros nomes
que não passam nunca mais!

Em nome do que nós temos
em nome do que nós fomos
revolução que fizemos
democracia que somos
em nome da unidade
linda flor da classe operária
em nome da liberdade
flor imensa e proletária
em nome desta vontade
de sermos todos iguais
vamos dizer a verdade
dizendo: não passam mais!

Em nome de quantos corpos
nossos filhos foram feitos.
Em nome de quantos mortos
vivem nos nossos direitos.
Em nome de quantos vivos
dão mais vida à nossa voz
não mais seremos cativos:
O trabalho somos nós.

Por isso tornos enxadas
canetas frezas dedais
são as nossas barricadas
que dizem: não passam mais!

E em nome das conquistas
vindas nos ventos de Abril
reforma agrária controlo
operário no meio fabril
empresas que são do estado
porque o seu dono é o povo
em nome de lado a lado
termos feito um país novo.
Em nome da nossa frente
e dos nossos ideais
diante de toda a gente
dizemos: não passam mais!

Em nome do que passámos
não deixaremos passar
o patrão que ultrapassámos
e que nos quer trespassar.
E por onde a gente passa
nós passamos a palavra:
Cada rua cada praça
é o chão que o povo lavra.
Passaremos adiante
com passo firme e seguro.
O passado já é bastante
vamos passar ao futuro.

José Carlos Ary dos Santos, "Obra Poética"; Edições Avante, p.367/8/9

sábado, janeiro 21, 2006

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"Esqueço-me dos nomes todos. Tu não?
Eu esqueço-me das pessoas.
Mas eu não era assim.
Eu também não.
Eu lembrava-me de tudo.
Tudo é muito. Acaba por não caber. O importante é que te lembres de mim, sim?
Isso não posso. Como é que queres, se te trago comigo dentro de mim?

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu Amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p. 36

sexta-feira, janeiro 20, 2006

À noite ...

A noite cai. Também sobre mim.
É preciso parar e pensar. Parar e escrever. Sobre tudo. Sobretudo.
Nesta intensa sensação de felicidade espreita também uma intensa dôr. Neste calor que alastra em mim como uma carícia, espreita um nó na garganta, uma mão pesada que me empurra contra mim. E a dôr é física. Uma garra no lugar da ausência. Presente. Para além de mim.
Opressora. Lembra-me que existe. Lembra-me que há algo mais. Algo para além de mim.
Chorar. Uma cascata de sensações que é preciso soltar. Abrir as comportas e deixar espraiar este caudal que me afoga.
A vida passa por mim e eu imóvel à espera. Algo me prende a esta ilha. O paraíso à minha espera. Um oásis perdido que encontrei.
Tanto tempo à espera!
Tanto tempo de espera!
E no entanto, a noite cai ... e eu aqui à espera ... imóvel ... na expectativa do amanhã.
A minha ilha perdida na manhã!

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" - Olhe, a coisa de que eu mais gosto no mundo ... eu sinto aqui dentro, assim se abrindo ... Quase, quase posso dizer o que é mas não posso ...
- Tente explicar, disse ele de sobrancelhas franzidas.
- É como uma coisa que vai ser... É como ...
- É como? ... - inclinou-se ele, exigindo sério.
- É como uma vontade de respirar muito, mas também o medo ... Não sei ... Não sei, quase dói. É tudo ... É tudo."

LISPECTOR, Clarice, "Perto do Coração Selvagem", Relógio d'Água", Lisboa, 2000, p.54

quinta-feira, janeiro 19, 2006

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"Há qualquer coisa de longinquo em mim neste momento. Estou de facto à varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale. Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anónima, prolixa e incompreendida."

PESSOA, Fernando, "O Livro do Desassossego", Novis, p.237

quarta-feira, janeiro 18, 2006

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"Permitir que a mente voe é uma espécie de pequeno suicídio combinado com instantes de prazer profundo"

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.115

terça-feira, janeiro 17, 2006

Espuma dos dias

Entre nós
Há um mar de palavras
Que nos une
Há uma ponte de desejos
Escondidos
Há uma lágrima voraz
Feita de sal
Há um beijo escondido
Em cada rima
Há vagas de azul
E de ternura
Há marés de sonho
E aventura
Há um tempo nunca
Ultrapassado
Há um corpo nunca
Desvendado
Há o medo de não haver depois
Há a arte de saber amar somente
Como quem só por si ama por dois.

OLIVEIRA, Albino Santos, "Gotas de Luz", Editora Xerazade, Dezembro 2005, p.67

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Quero tudo porque tudo posso querer

Quero tudo porque tudo posso querer.
Não quero as coisas comezinhas
Costumeiras, usuais.
Quero ser universo
Não casa.
Ser via láctea
Não estrada.
Ser grito
Não rumor.
Quero tudo porque tudo posso querer
Mesmo que em troca receba uma mão cheia de nada
Mesmo que seja pó e não estrada
Mesmo que seja só mesmo rumor.
Quero tudo porque tudo posso querer
Porque tenho o desejo dentro
De voar mais veloz do que o vento
De rugir mais que qualquer tempestade
E de deixar marcas
A minha
E que me lembrem quando não for
Como quem tudo queria porque tudo se pode querer
Como quem ninguém limitou dentro
Mesmo ouvindo dela só o rumor

Encandescente, Colecção Polvo, Novembro, 2005, p.59,60

domingo, janeiro 15, 2006

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"Os domingos são dias bons para a saudade"

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.40

(Foto em www.trekearth.com)

sábado, janeiro 14, 2006

Na Mesa do Santo Ofício



Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
É no vento que passa que a ouvimos,
É no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,
Que nos espreguiçaremos na fogueira.

José Carlos Ary dos Santos, "Obra Poética", Edições Avante, Lisboa, 1999, p.67

(Foto minha)

sexta-feira, janeiro 13, 2006

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"A impaciência é parecida com a erva que cresce nun jardim de que ninguém trata. Se um dia decidirmos arrancá-la e limparmos a terra dos tufos inoportunos, vemos que têm as raízes profundas."

JANER, Maria de la Pau, "As mulhres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.35

quinta-feira, janeiro 12, 2006

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"Gostava daquela sensação de me banhar na luz, como se a claridade fosse água"

JANER, Maria de la Pau, "As mulheres que há em mim", Dom Quixote, Lisboa, 2005, p.36
(Foto em www.olhares.com)

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Passeio


"Atravessamos o Tejo. Vamos sobre a água de brilhos metálicos em direcção a um clarão alaranjado que está do outro lado. Vamos à proa, contra o vento, mas não faz frio. Vamos agarrados. Ela dá-me um beijo na cara e sussurra-me: "O meu pai beijava-me assim". O amor é uma coisa do passado, muito longe. Temos pouco tempo. O barco faz com perícia a manobra para atracar. (...) Nós não temos pressa. Temos pouco tempo mas não temos pressa, não temos que chegar a nenhum lado.
Vamos de mãos dadas. Levam-nos os passos que damos. Neste preciso momento é o suficiente. (...) Ouvimos o coração um do outro, só isso, ou antes, imaginamos o barulho que faz o coração um do outro e é o suficiente. (...)"

PAIXÂO, Pedro, "A noiva judia", Livros Cotovia, Lisboa, 1998, p.35

(Foto minha)

terça-feira, janeiro 10, 2006

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"E tudo o que é bom na vida é vivido, não é dito, não é para se dizer, não precisa de dizer-se"

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.86

(Foto minha)

segunda-feira, janeiro 09, 2006

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As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Mar", Caminho, Lisboa, 2001, p.27

(Foto minha)

domingo, janeiro 08, 2006

Cartas ... que duram

Cartas. Sempre um retrato de algo. De alguém. Algo de nós viaja com elas. Leva-nos também até ao destino final.
Nelas se entrevêem as nossas esperanças. Nelas se escondem os nossos medos. Nelas espreitam as nossas ilusões e se espelham os nossos sonhos. Através delas nos revelamos.
E têm também essa característica extraordinária de permanecerem. Amarelecidas, com os cantos gastos de tantas leituras, a tinta desbotada, mas nunca perdidas - sempre revisitadas. Do fundo de uma gaveta recuperadas para a nossa memória futura.
Por vezes a única coisa que nos lembra o passado efectivamente vivido. Sempre um testemunho de vida.
Deixam-os um sorriso. Deixam-nos uma lágrima. Deixam-nos a saudade. Sempre nos deixam qualquer coisa. Nunca a indiferença. Nunca a apatia.
Numa vida que quase sempre termina envolta em silêncio e mágoa, são estas cartas também, a presença que às vezes nos falta, os fantasmas com quem conversamos nos dias vazios, os personagens que nos iluminam os sonhos.
Numa vida que quase sempre termina envolta em silêncios e mágoas, as cartas são Vida.

(Texto que partiu da leitura das cartas publicadas em http://unchainedmelody.blogs.sapo.pt
Espreitem lá também e sintam a nostalgia de um passado que nos visita)

sábado, janeiro 07, 2006

(Re)construção

Sempre que és
e te dás,
sempre que sonhas
e partilhas,
sempre que ganhas
e repartes,
sempre que amas
e o mostras,
sempre que sorris
e é para os outros,
sempre que ouves
e é com a alma,
transformas alguém
num ser melhor.

(Re)constróis-te.

("Mano", este é para ti, com todo o meu carinho)

sexta-feira, janeiro 06, 2006

Soneto

Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?

Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.

Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética, Edições Avante, 5ª edição, Lisboa, 1999, p.35

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Manhã


Hoje saí de casa noite ainda. Ruas vazias de gente. Só os poucos carros que passavam provavam que o dia já se iniciara. Os cafés - janelas de luz e abrigo desejado. Ao balcão conversava-se. Alto. Das últimas notícias. Eleições e futebol, claro. O top-ten. O café fumegante aqueceu-me.
Na avenida que percorro, os meus passos ecoam. Rápidos, que se faz tarde. Aconchego o cachecol. Mãos nos bolsos. O friozinho na cara activa as lágrimas. Quentes.
Quando chego ao meu destino, paro e olho a distância. O dia nasce. Escrevo. O céu vai revelando as suas várias tonalidades de azul. Cada vez mais claro.
No horizonte, a serra confunde-se com as últimas réstias da noite. Num dégradée, todas as cores do amanhecer. Do cinza ao azul.
Os galos ainda cantam. Em frente, no jardim da escola, dois gatos espreguiçam-se. Cautelosos, olham em volta.
As luzes da cidade ainda acesas. Nem uma nuvem no céu onde se recortam algumas árvores nuas - náufragas de um Outono que já lá vai.
Gosto destas manhãs. Apesar do frio. Apesar da solidão das ruas. Apesar da noite.
Gosto destas manhãs. Pela solidão das ruas. Pela noite. Pela paz. Por participar de um dia que nasce.

(Foto em www.trekearth.com)

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Retrato de Manuel Alegre

Alegre Manuel alegre até à morte
Que lindo nome para um homem triste
Que lindo nome para um homem forte.

Alegre Manuel despedaçado
Pela espada da língua portuguesa:
A palavra saudade a palavra tristeza
A palavra futuro a palavra soldado
Alegre Manuel aberto cravo
Aos ventos da certeza.

Alegre Manuel aqui mais ninguém fala
Tão alto como tu ninguém se cala
Com essa dor serena e construída
Não apenas de versos mas de vida.

Alegre Manuel as línguas do teu canto
Ateiam-nos o fogo.
Neste lugar de lama e desencanto
Tornas vermelho o povo.

José Carlos Ary dos Santos, “Fotos-grafias”, Quadrante, Lisboa, 1970

terça-feira, janeiro 03, 2006

Fogacho


Para além de mim estará sempre algo que procuro. Algo que não se assemelha a esta explosão súbita de brilho e luz. Fogacho breve este. Também de fogachos breves tenho vivido. Momentos - apenas momentos felizes. Pequenas erupções de luz e côr que logo se perdem nesta noite longa. Dia que não amanhece. Procuro o seu rasto. Quero recuperar esse brilho perdido.
Além de mim. Escondido de mim. À minha espera.

(Foto minha)
(A música do Zeca que se ouve agora, devo-a, como a outra antes dela, ao Fernando do Fraternidade, um Amigo que sempre me mostra que Fraternidade não é mera palavra no papel.
Para ele todo o meu carinho)

segunda-feira, janeiro 02, 2006

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"Ela nada esperava. Ela era em si, o próprio fim"

LISPECTOR, Clarice, "Perto do Coração Selvagem", Relógio d'Água, Lisboa, 2000, p.76

(Foto minha)

domingo, janeiro 01, 2006

IX


Como é estranha a minha liberdade
As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio pra que eu passe
Como é estranho viver sem alimento
Sem que nada em nós precise ou gaste
Como é estranho não saber

Sophia de Mello Breyner Andresen, "No tempo dividido", Caminho, Lisboa, 2005, p.17

(Foto de César Luís em www.olhares.com)