sábado, dezembro 31, 2005

Fim de ano


Não gosto de balanços de final de ano. Não gosto de olhar para trás. Quase sempre sofro. Quase sempre choro.
Dizem de mim que pratico "a fuga para a frente". Talvez. Acho preferível enfrentar o amanhã do que recordar o ontem. Nâo o depois de amanhã ou a semana que vem, mas o Amanhã - o Futuro próximo.
Recordo a minha mãe quando me dizia que os problemas se punham para trás das costas. Cómoda esta atitude, poder-se-à dizer. Mas é o que faço também. Se não posso alterar nada, nada remediar, de que serve pensar nos problemas?
Vivo o tricentésimo sexagésimo quinto dia do ano de 2005. Um dia igual a tantos outros.
Um ano de alegrias, tristezas, desilusões e esperanças - tudo q.b.
O 2006 aguarda-me. Estou pronta!
Um bom ano para todos. Sintam o meu abraço!

(Foto de Fernando Almeida em www.olhares.com)

sexta-feira, dezembro 30, 2005

Contagem (ou apenas um ano que chega ao fim)



Há um relógio infalível que preside às nossas vidas. É dono do tempo. Carrasco de nós.

Obedece a uma lógica pensada no início do mundo. Os deuses antigos velavam por ele. Será Deus que hoje o manipula ou apenas a força inexorável da vida que se desenrola?

Uma enorme roldana, de início perfeita e silenciosa que com o tempo se torna enferrujada, gritando em cada anel, acusando em cada volta a sua idade.

Desfia-se a corrente/vida e é o peso do passado que a empurra para a frente - para o fim - sempre com a mesma cadência, sempre no mesmo ritmo que lhe imprimiram no princípio do mundo. Nós julgamos que ela anda cada vez mais rápido, mas não. O tempo já está contado. Apenas nós não o sabemos.

E um dia a corrente/vida chega ao fim. O tempo já não conta mais. Calam-se os gritos. O silêncio impera. O grande relógio infalível que preside às nossas vidas/correntes, obedecendo a uma lógica que ninguém entende, deixa de se ouvir.

E outra vida recomeça!

(Foto de João Espírito Santo em www.olhares.com)

quinta-feira, dezembro 29, 2005

...


"As horas de comer são as que mais custam porque olham para mim e a minha cara não pode estar como quiser, ter a tristeza que quiser."

PAIXÃO, Pedro, "Nos teus braços morreríamos", Livros Cotovia, Lisboa, 1998, p.75

(Foto em http://de:artring.net/fotografie/) Sylvie Blum

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Ânsia

Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo

Mia Couto, "Raíz de Orvalho e outros poemas", Caminho, Lisboa, 1999, p.47

terça-feira, dezembro 27, 2005

Se eu fosse um Poeta ...


Se eu fosse um Poeta, escreveria hoje algo muito poético e doce sobre o Natal.
Se eu fosse um Poeta saberia as palavras certas para descrever, nos versos certos, os meus sentimentos sobre o Natal.
Se eu fosse um Poeta a harmonia das palavras certas escorreria para o papel como a água fluida e límpida de uma fonte.
Se eu fosse um Poeta o poema seria criado de imediato na minha cabeça e a caneta seria o elo - o agente transmissor para chegar a quem me lê.
Se eu fosse um Poeta ...
Mas não sou! Nem quero escrever sobre o Natal - que já passou e que todos já referiram - e também não quero ainda formular os votos costumeiros desta quadra.

O que eu quero mesmo, é dizer que hoje a manhã se coloriu de cinza, mas o meu coração está límpido como o mar num dia de Verão.
O que eu quero dizer é que hoje, apesar da chuva que ameaça cair, as lágrimas não vão correr, e não vou permitir que pensamentos cinzentos me toldem a tarde.
O que eu quero mesmo dizer, é que é preciso às vezes muito esforço para se tentar ser feliz, e no entanto ... no fundo, no fundo, é preciso tão pouco ...
Um brilho no olhar, uma palavra de carinho e um beijo soprado no vento.
E os dias resplandecem.

(Foto minha)

segunda-feira, dezembro 26, 2005

O amor é um puro acontecer

O amor é um puro acontecer
É um misto de prazer e de ciúme
É querer-te loucamente e não te ter
(o amor é feito de água e lume)

O amor não se aprende, não se ensina
É resistir à saudade sem queixume
É não saber onde começa, onde termina
(o amor é feito de água e lume)

É procurar um desejo insatisfeito
Como quem se busca e não se encontra
É sentir quebrar dentro do peito

As amarras, as regras, o costume
É ousar a coragem de ser contra
(o amor é feito de água e lume)...

Albino Santos Oliveira, ""Gotas de Luz", Editora Xerazade, 2005, p.19

domingo, dezembro 25, 2005

Natal


E a lama inundou as ruas
Molhou os sapatos da multidão em compras
Sujou os papéis coloridos
Os laços brilhantes das oferendas
Enlameou todos os enfeites natalícios
E tingiu de castanho as barbas brancas dos pais natal.
A lama escorreu pelas paredes das casas
Condicionou o trânsito nas avenidas
Escureceu lâmpadas que iluminam ruas que iluminam gente
E a lama era indiferença, egoísmo, esquecimento.
Eu, que não acredito no Natal
Que não acredito no Jesus nascido numa manjedoura
Que não acredito no fruto da imaculada concepção entre deus e
humanos
No Jesus salvação
No Jesus expiação dos pecados do pai
No Jesus redentor, libertador, salvador da humanidade
Vi surgirem da lama que inundou as ruas
Imaculados, limpos
Multidões de sem tecto, sem pão e sem Natal
Livres de pecado porque despojados de esperança
Que sabem que Jesus nasce todos os anos num centro comercial
E é oferecido embrulhado em papel colorido.

Encandescente
em http://eroticidades.blogspot.com
com uma foto muito mais adequada e que vale a pena ver. Espreitem lá!

sábado, dezembro 24, 2005

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
De lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
De perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
De meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
Como se de anjos fosse,
Numa toada doce,
De violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
A voz do locutor
Anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
E as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas,
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
E fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
Com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
Cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
As belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
Ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aqulo nos dissesse directamente respeito,
Como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bençãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
E compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
A sua comoção é tanta, tanta, tanta,
Que nem dorme serena.

Cada menino
Abre um olhinho
Na noite incerta
Para ver se a aurora
Já está desperta.

De manhãzinha
Salta da cama,
Corre à cozinha
Mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!!!

Na branca macieza
Da matutina luz
Aguarda-o a surpresa
Do Menino Jesus.

Jesus,
O doce Jesus,
O mesmo que nasceu na manjedoura,
Veio pôr no sapatinho
Do Pedrinho
Uma metralhadora.

Que alegria
Reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
Fuzilava tudo com devastadoras rajadas
E obrigava as criadas
A cairem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
Fingiam
Que caíam
Crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
De Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade,
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão, "Poemas escolhidos", Ed. João Sá da Costa, Lisboa, 1997, pp.43/47

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Natal/2005


BONDADE
AMOR
TOLERÂNCIA
PAZ
SOLIDARIEDADE



Estes valores caracterizam , quantas vezes forçados, a quadra que atravessamos. Para mim devem antes ser parte integrante de cada um dos dias das nossas vidas. Para todos os amigos que me visitam, desejo que este Natal seja pleno de harmonia.
Um beijo.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Ho! Ho! Ho!


Desta vez não ía viajar. Para quê, se agora havia a Internet? Mão no rato, buscou o ícone do telefone miniatura, sito na esquininha superior do ecrã de líquidos cristais. E, milagre, bastaram dois singelos cliques para a magia branca dos supercondutores pôr em marcha o dominó cibernético que doravante nos permite, sem deslocarmos o nadegal da poltrona, chegar ao mundo.
Não pôde, todavia, abster-se de cogitar um melancólico cogitar: a tecnologia era uma coisa curiosa, sabíamos usá-la mas não sabíamos, salvo alguns eleitos a que chamávamos técnicos informáticos, como funcionava. Técnicos informáticos? Mais justo seria chamá-los de santos, magos, neo-deuses.
Sim neo-deuses. Sócrates, Galileu, Decartes – até mesmo Leonardo! – tremeriam de pavor, como paisanos medievais, se confrontados com um ecrã de televisão, um carrinho de supermercado, um telemóvel de plástico, uma simples caixa de multibanco, quanto mais com um computador ligado ao mundo através de uma rede tão tentacular quão indolor e invisível.
Claro que havia outra forma de ver isto. De acordo, nós, habitantes do novo milénio, éramos ágeis, espertos. Mas convenhamos, éramo-lo tanto a usar os brinquedos do novo mundo como a disfarçar a nossa ignorância sobre o sentido deste mesmo mundo.
Já conectado à Internet, abriu a caixinha do correio. Criou um novo documento, escreveu nele a palavra “Merry Christmas” em várias línguas: “Feliz Navidad!”, “Glucklische Weinacht!”, Joyeux Noel!”, “Onnellista Joulva!”, etc, etc., etc.
E enviou-o, com um delicado toque de dedo no pequeno rato.

*****************
Não é um dado adquirido que os primeiros computadores a reagirem, obedientes como caniches amestrados, tenham sido os americanos. Podem muito bem ter sido os russos. Ou os franceses. Ou mesmo os chineses. Podem até ter sido os israelitas, pois afinal foi lá que o Menino nasceu, ou a Índia e o Paquistão, porque Buda e Alá também por lá andaram de candeias às avessas. De qualquer modo, pouco interessava quem começara, mas sim que começara, e em agradável conformidade com o que ele esperava. Até um pouco melhor do que esperava.
Certo, certo, é que o vírus era mesmo bom, pois alastrou com apreciável celeridade a todos os sistemas de defesa dos países (felizmente muitos) munidos de sofisticados (e completamente informatizados) sistemas de lançamento de mísseis terra-ar, terra mar e terra-terra.
Recostou-se na cadeira, olhou para o computador, admirou a obra. Não estava orgulhoso – antes pelo contrário, sentia-se assomado por alguma melancolia. Consolava-o apenas que, quase de certeza, nunca ninguém viria a saber que fora ele, ele, a dar corda a estes brinquedos teleguiados capazes de percorrer centenas de quilómetros até atingir o alvo. O alvo cirúrgicamente designado, bem entendido, que a cirurgia, como o respeitinho, é uma coisa muito bonita.
Nâo, não estava orgulhoso, só que ... o que poderia ele ter feito senão aquilo?
Primeiro, tinham sido as renas a adoecer, depois uma arreliante avaria na máquina de embrulhar presentes. E como se isso não bastasse, os duendes tinha-lhes dado para entrarem em greve.
A única solução, para poder servir atempadamente toda a gente, fora mesmo recorrer aos silos – esses armazéns onde, egoístas, os homens de boa vontade guardavam só para si os seus brinquedos favoritos.
*******************
Entrementes, na estação espacial MIR, três astronautas (dois americanos e um russo) sorriam, comovidos. Mas que lindo fogo de artifício, a Terra, nesta noite abençoada!

ZINK, Rui, "Outros Belos Contos de Natal", Ediraia, Castelo Branco, 2004, pp.53/55
(Desenho de Rui Zink incluído na mesma obra)

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Se não fosse ...


A praia está deserta. Apenas o mar e eu. Maré baixa. A areia por pisar, inviolada. Um bando de gaivotas agrupa-se à volta de um charco. Imóveis, aguardam. Reflectem-se os seus corpos esguios na água clara.
Ondas rebentam ao longe. Uma curvatura perfeita e lisa, progressivamente, quase calculadamente, desfeita em espuma. Umas atrás das outras numa sucessão perfeita. As pequenas gotas que flutuam sobre elas são a vida que delas se desprende.
Aqui onde estou frente a este mar imenso, tenho o sol que me aquece e o mar que me embala.

(Não fosse esta funda angústia que me assola, diria ser um dia perfeito)

O mar, a solidão, o som cavo e constante que se eleva até mim, profundo e vital.
Algo assustou as gaivotas. Levantam-se em bando e esvoaçam desencontradas, como num bailado mal ensaiado. Umas voam para longe, outras pousam na água e extasiam-se como eu a olhar o mar.
A linha do horizonte demarca claramente o céu e as águas. Ao longe o Bugio emerge do mar na sua forma arredondada, nítido no seu recorte. Apenas por detrás, a costa de Cascais e a serra estão embrulhadas em neblina. No lado oposto tudo brilha. O sol pousa nas águas e desenrola a sua esteira dourada.
Aqui onde me sento frente ao mar, olho as ondas e a sua curvatura perfeita e deixo-me envolver por esta luz mágica do meio-dia, por este sossego que me acolhe como um berço.

(Não fosse esta funda angústia que me assola, diria ser um dia perfeito)

(Foto minha)

terça-feira, dezembro 20, 2005

Balão esvaziado

Cansei os braços
a pendurar estrelas no céu.
Destino dos fados lassos.
Tudo termina em cansaços
braços
e estrelas
e eu.

A vida flui (parece) como um novelo que se desenrola
como um leque silencioso que se abre,
enquanto, no ovo, um rumor se encaracola, se encaracola e desenrola,
até quando, num repente,
se dispara, incandescente,
como na dança do sabre.

Ó delírio de sentir,
doença de interrogar,
febre do nunca atingir!
Temperatura de partir
na esteira do insaciar.

Rescendem húmus as ancas,
terras morenas e brancas,
campo de jogo androceu.
Afrouxam os braços lassos.
Tudo termina em cansaços,
terras
e braços
e eu.

Estrelas, pântanos, abismos,
patamares da mesma escada,
dedos da mesma aliança.
Tudo morre em tédio e em nada.
Tudo maça.
Tudo enfada.
Tudo pesa.
Tudo cansa.

António Gedeão, "Poemas Escolhidos", Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1997, p.20,21

domingo, dezembro 18, 2005

Domingo

Nesta manhã não consigo ler.
Aqui. No meu café dos domingos.
Sobre a rua. Debruçada na paisagem.
O pensamento corre. Salta do dia de hoje para o de ontem. Viaja pelos dias que passaram. Antevê o dia de amanhã.
O livro aguarda ao meu lado. Um companheiro silencioso e fiel. Um amigo de sempre. Mas hoje as folhas não se desfolham, chamativas, a história não continua, presa num tempo que não avança.
Deixo o olhar perder-se. Demorar-se nas coisas que olho mas não vejo. O ontem já perdido, os dias do passado desfolhados levemente, como estas folhas deste livro que não leio.
Os ruídos à volta embalam-me, quase não os oiço; misturam-se num burburinho que o pensamento embrulha e joga para longe.
Hoje é dia de voar.

sábado, dezembro 17, 2005

No dia último


Um dia, no dia último,
Adormecerei.
Não adormecerei em paz
Mas em desafio
Não dando à vida tréguas
Que na vida, a vida
Não mas concedeu.
Não justificarei um minuto que vivi
Não justificarei um só acto que pratiquei
Não pedirei absolvição
Não perdoarei o imperdoável
O intolerável, o que não entendi.
No dia último
No dia em que adormecer em desafio
Sairei como entrei no mundo
Como vivi o mundo.
Lutando pelo direito de estar
Conquistando o direito de ser.
E adormecerei
Desafiando a vida a negar-me o direito
De no dia último
Adormecer.

Encandescente, Colecção Polvo, ed. por Rui Brito, Lisboa, 2005, p.54

(Foto em www.chromasia )

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Vozes


A voz ...
como a voz perdura!
Ecos do passado.
Timbres familiares.
Vozes estridentes,
impacientes,
ou a voz compassada
de quem recorda histórias
antigas.

As vozes ...
toadas monocórdicas
de quem recorda
um passado quase
esquecido.
Hesitantes,
semeadas de pausas
no intervalo das palavras.

As vozes ...
palavras sussurradas ao ouvido.
Os segredos.
Os amores.
Vozes doces,
trabalhadas,
roucamente ciciadas.

Vozes ...
vozes que se cravam fundo em nós,
que deixam sulcos.
Um dia percorremo-los
e é a nossa vida que encontramos
profundamente
desenhada com o estilete
dos sentimentos.

Hoje o meu silêncio
é povoado dessas vozes.
Amigas ...
Desesperadas ...
Impacientes ...
Zangadas ...
Doces.

E o silêncio
deixou de o ser.

(Foto em www.trekearth.com)

quinta-feira, dezembro 15, 2005

...

" O pior dos tormentos é a terrível actividade da imaginação"

WOOLF, Virginia, "As ondas", Relógio d'Água, p.212

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Dúvida

Perfilo-me à beira da vida
tentando
evitar o inevitável.
Dobro as esquinas com cuidado
evitando as surpresas.
Espreito os becos desertos
com a esperança de neles ver surgir
o in(esperado).
Fujo do confronto,
de olhar em frente
o que quero não ver mais.
Encolho-me no meu canto
e escolho
a imobilidade
pensando assim passar
despercebida.

A invisibilidade é o
que mais pretendo.
A instabilidade é o que possuo.
A paz é o que procuro
mas a desilusão espreita em cada passo.

Desilusão.
A ilusão desiludida.
Instabilidade.
Instável estabilidade.
Escondo-me do futuro
escudada na ilusão,
e à beira da vida, aguardo.
Imóvel.

Salto?

terça-feira, dezembro 13, 2005

XLIX

Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites,
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva.
Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Ser ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

CAEIRO, Alberto, "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 87

segunda-feira, dezembro 12, 2005

...

"Por vezes gosta-se de uma mulher por não haver outra por perto de que se possa gostar.
Por vezes gosta-se de uma mulher por se ter gostado muito de um homem que deixou de gostar de nós e precisamos de tudo tentar para o esquecer.
Por vezes gosta-se de uma mulher por lembrar outra mulher de quem se gostou e não descobrimos quem possa ter sido.
Por vezes gosta-se de uma mulher por se estar muito cansado de se gostar muito de outra mulher.
Por vezes gosta-se de uma mulher só por gostar.
(...)
Por vezes gosta-se de um homem só porque faz falta para ir ao cinema.
Por vezes gosta-se de um homem só porque o corpo tem intermitentes exigências.
Por vezes gosta-se de um homem só porque não se gosta de outro.
Por vezes gosta-se de um homem só porque nos faz rir.
Por vezes gosta-se de um homem só."


PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p. 50

domingo, dezembro 11, 2005

Princípio e Fundamento

Quem rega com amor não morre.
Rebentam flores.
Os frutos esplendem.
Rompe a semente
tecido vivo.

Quem rega com amor não morre.
Conhece o início
e os fins do tempo.

Quem rega com amor não morre.
Adianta-se à terra
e serve.

Ruy Cinatti, "Corpo-Alma", Colecção Forma, Lisboa, 1994, p.41

sábado, dezembro 10, 2005

Casa


Manhã de azul.
Manhã de esperança.
Aqui nesta casa vazia
olho os meus retratos antigos.
Sorrisos puros de criança
que ainda não viveu.
Sorrisos ternos de uma mulher
em momentos únicos.

Aqui nesta casa vazia
onde procuro o silêncio
e a paz
encontro o passado
que me olha de revés
como se dissesse
- o que fizeste?

Manhã de azul.
Manhã de luto
nesta casa vazia.
Os meus passos ecoam perdidos
ao encontro de outros passos
já mortos.
Olho aquele canto do sofá
antes ocupado por ti.
E já lá não estás.
Tento imaginar-te e falar contigo
encostar a cabeça no teu colo
para que me afagues.
Mas é o vazio que encontro.
Ainda ouço a tua voz,
o teu timbre ríspido
e a tua sonora gargalhada.

Aqui nesta casa vazia
onde só eu ando,
que eu procuro,
que eu preciso que me envolva
como um abraço.
Aquele abraço que já não me podes dar.

(Foto em http://www.trekearth.com)

sexta-feira, dezembro 09, 2005

...

"Custa tanto ser sincero quando se é inteligente. É como ser honesto quando se é ambicioso"

PESSOA, Fernando, "Aforismos e Afins", Assírio & Alvim, 2005, p.16

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Amar

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui ... além ...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente ...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente! ...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder ... para me encontrar ...

Florbela Espanca

Passam hoje 75 anos sobre a morte da poetisa.
De toda a poesia que dela conheço, este continua a ser para mim, o seu mais belo poema.

terça-feira, dezembro 06, 2005

Em silêncio


À noite
no momento en que a porta do quarto
se fecha -
o silêncio.
Respiro profundamente,
e gozo o infinito prazer
de estar só.
Dispo as roupas e as máscaras
e viajo pela noite
apenas envergando o meu Eu,
protegida por este silêncio que me envolve.

Na rua
há um outro tipo de silêncio.
Aquele com que me visto
e me protejo do bulício
da cidade.
E também estou só.
As gentes que me rodeiam
nem me tocam, nem me afectam.
Estão como que num mundo paralelo -
um mundo por vezes feio,
por vezes frio.
Que não quero.
Do qual me protejo.

O silêncio de uma casa vazia
de ocupantes.
A minha, algumas vezes.
Protector.
Inspirador.
Um café bebido à janela
em dias de chuva.
Os vidros brilhantes e frios.
Embaciados.
As gotas de chuva são como
pequenas pérolas de prata
que iluminam a noite.
O calor da chávena nas minhas mãos.
O embalo do silêncio.
A paz.

Uma dádiva, este silêncio com que me visto ...
Em silêncio ...

(Foto em http://www.trekearth.com)

segunda-feira, dezembro 05, 2005

(Des)esperança

Planto árvores
de esperança
e semeio ninhos
nos seus ramos orvalhados,
pedaços de sonho
que escorrem molhados
pelas folhas secas
de um tempo a correr ...

Planto arbustos
de brisa
na aridez
de um caminho aberto
no granito,
pingos de amor
que salpicam o grito
de um inverno
que teima em permanecer ...

ARRIMAR, Jorge, "Secretos Sinais", Instituto Cultural de Macau, 1992, p.81


Jorge Arrimar nasceu em São Pedro da Chibia, Planalto da Huíla, Angola, em Junho de 1953. É licenciado em História e especialista em Ciências Documentais. De sua autoria (ou co-autoria) foram publicados oito títulos de Poesia e três de História. Encontra-se representado em várias Antologias de Poesia e em Actas de Encontros/Congressos de História e Biblioteconomia. Tem participação dispersa por variados jornais e revistas.
Estreou-se nas letras em 1975 com o livro de poemas Ovatyilongo, a que se seguiram mais seis títulos, Poemas, 20 Poemas de Savana, Fonte do Lilau, Murilaonde, Secretos Sinais e Confluências.
(http://www.campo-letras.pt/autores/jorge_arrimar.html )
(http://www.loriente.com/biografias.html)

domingo, dezembro 04, 2005

6.

Na mesma ordem de ideias, embora abrangendo um período de tempo mais curto (alguns meses em vez de vinte anos), um outro amigo, R, falou-me de um livro marginal que ele tentava localizar sem sucesso, esquadrinhando livrarias e catálogos à procura daquilo que devia ser uma obra admirável que ele ansiava ler; e contou-me como, uma tarde em que fazia o seu caminho pelo centro da cidade, tomou um atalho para a Grand Central Station, subiu o lanço de escadas que levava à Vanderbilt Avenue, e viu de repente uma jovem ao lado do friso de mármore com um livro à frente dela: o mesmo livro que ele tão desesperadamente tentava encontrar.
Embora não tivesse por hábito dirigir a palavra a desconhecidos, R. estava demasiado atordoado pela coincidência para ficar calado. "Acredite ou não", disse à jovem, "tenho andado à procura desse livro por toda a parte."
"É maravilhoso", respondeu a jovem, "acabei agora mesmo de o ler."
"Sabe dizer-me onde poderei encontrar outro exemplar?" perguntou R. "Não consigo explicar-lhe o que isso significaria para mim."
"Este é para si" respondeu a mulher.
"Mas é seu" replicou R.
"Era meu," disse a mulher "mas agora já acabei de o ler. Vim aqui hoje para lho dar."

AUSTER, Paul, "O Caderno Vermelho", Edições Asa, Porto, 2002, pp.31/2

sábado, dezembro 03, 2005

Silêncio

Não esperem que responda
à pergunta que não conseguiram formular.
As palavras são escravas do silêncio
que a minha voz deixou libertar.

Não queiram ouvir-me de novo
cantando canções que jamais saberei:
a pauta é longa no sono
que em toda a noite busquei.

Venham sem me trazer
eu já não sei de onde sou ...

Vão sem me levar
eu não sei para onde vou ...

ARRIMAR, Jorge, "Secretos Sinais", Instituto Cultural de Macau, 1992, p.127

sexta-feira, dezembro 02, 2005

...

Olhar para a frente sem saber o que vai ser de nós. Olhar para trás sem nada poder reviver, corrigir, emendar sequer. Não conseguir fixar o presente, bom ou mau, tanto faz, o presente que não será mais. Sentir-se transportado para a frente e depois para trás, ficar tonto, prestes a cair, sem ter mão no que pensar. Levantar, andar, voltar e depois parar num mesmo sítio, sempre diferente. Desistir, recomeçar, deixar cair, agarrar por momentos e depois abandonar. Sentir-se feliz, absolutamente feliz, e logo depois desesperar, sem esperança alguma de voltar a acreditar, e depois voltar a acreditar, e sentir a felicidade, aos poucos, a voltar. Tudo isto à volta de um amor, tudo isto e muito mais, meu amor, que te tenho de esconder. Senão dizia-te.

PAIXÃO, Pedro, "Muito, meu amor", Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p.31